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Setembro Amarelo: os suicídios dizem muito a respeito da sociedade em que vivemos

“Não dá pra falar de saúde mental quando pessoas não têm garantido acesso a direitos básicos como saúde, cultura, educação, lazer, entretenimento”, diz psicóloga

“Toda morte que ocorre em uma sociedade diz algo sobre essa sociedade. E a gente precisa refletir sobre o processo que a gente vive, a fragilidade dos nossos vínculos.” A reflexão é da psicóloga Ana Sandra Fernandes, vice-presidenta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a respeito do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, celebrado em 10 de setembro, e também em referência ao Setembro Amarelo, campanha brasileira iniciada em 2015 no mesmo sentido.

“O problema do suicídio é sério, complexo, multideterminado e precisa de políticas públicas efetivas para dar conta desse fenômeno. É muito importante a existência do Setembro Amarelo mas a gente compreende também que não é suficiente para abordar os aspectos que envolvem o suicídio. É preciso falar de saúde mental e da prevenção ao suicídios todos os meses e todos os dias do ano”, diz Ana, em entrevista aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual.

O contexto atual, que impõe praticamente uma inversão de prioridades na vida das pessoas, é um dos fatores que pode agravar o problema. “A sociedade capitalista exige cada vez mais, que a gente trabalhe, consuma, e parece que as relações vão ficando relegadas a um segundo plano. Temos observado de uma forma assustadora como a necessidade de atenção e afeto está muito presente na vida e no relato das pessoas e dos jovens. E estas relações vêm trazendo a gente algo que precisamos efetivamente pensar. Talvez seja urgente que retomemos conceitos de humanização”, propõe.

Fatores políticos
Uma publicação do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, intitulada Políticas de austeridade e seus impactos na saúde, de 2018, chama a atenção para a relação entre o número de suicídios e m um contexto de crise econômica e soluções ancoradas no chamado “ajuste fiscal”.

“Um aspecto bastante destacado na literatura revista é o papel das políticas de proteção social como fator mitigador dos efeitos do desemprego e/ou redução da renda do trabalho. Países ou províncias que mantiveram ou reforçaram o seu acervo de políticas de assistência social, incluindo transferências monetárias para populações pobres e extremamente pobres, apresentaram níveis menores de doenças mentais e suicídio. Na Itália, no período de 2000 a 2010, observou que as políticas de proteção social funcionaram como fatores de proteção ao aumento do suicídio associado ao desemprego”, diz o texto.

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“A relação entre crise econômica e transtornos mentais está bem documentada na literatura. A perda de emprego, dívidas, moradia e problemas financeiros são situações de estresse que se agravam ainda mais quando associadas às medidas governamentais de redução dos orçamentos e gastos com saúde”, aponta o texto.

“Os fatores políticos estão totalmente relacionados com a questão do suicídio, não dá pra considerar o suicídio como um fenômeno individual, é um equívoco quando fazemos isso”, ressalta a psicóloga, citando como exemplo o aumento no número de suicídios em Brumadinho. No primeiro semestre de 2019, 39 moradores tentaram o suicídio, um aumento de 23% em relação ao mesmo período no ano passado, quando uma pessoa do município tirou a própria vida, sendo que este ano foram três.

“Não dá pra falar de saúde mental quando as pessoas não têm garantido o acesso a direitos básicos como saúde, cultura, educação, lazer, entretenimento, e sempre que o acesso a esses direitos é negado temos uma alteração significativa de condições de vida digna, o que influencia no fenômeno do suicídio”, pontua.

Ana também fala a respeito de como políticas em áreas distintas podem afetar a vida das pessoas, contribuindo para um quadro de desalento. “Temos assistido cortes muitos significativos em políticas públicas importantes, como educação, por exemplo. Quando você vê muitos jovens que construíram planos para a sua vida toda, ancorados na perspectiva de concluir o ensino médio, fazer faculdade, uma pós-gradução e de repente os sonhos são frustrados. Obviamente, não podemos dizer ‘isso é a causa’, mas vamos compreender que esses fatores, atrelados a tantas outras questões, influenciam no número de mortes por suicídio”, explica.

“É como sentíssemos uma espécie de desalento, e nossos governantes têm um papel simbólico muito importante. Essas pessoas precisam ter cuidado com o que falam porque garantem para a população que é governada por eles uma espécie de norte, de direcionamento, e é inadmissível, inaceitável, quando parte dessas figuras apologia, incitação ou ódio a quem quer que seja”, alerta a psicóloga.

“E chamo a atenção que corremos um risco grande de naturalizar esse fenômeno. Não é natural que as pessoas saiam por aí repetindo algumas atrocidades que temos escutado cotidianamente. Bertolt Brecht dizia que tudo que a gente naturaliza passa a ser imutável e não podemos achar que é natural conviver em uma sociedade em que figuras de autoridade têm esse tipo de comportamento.”

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