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Termos ‘gêneros’, ‘orientação sexual’ e ‘educação sexual’ são retirados do PME de São Paulo

Retrocessos também estão presentes nos debates relacionados ao financiamento da educação paulistana

Na manhã do dia 10 de junho, dezenas de pessoas se aglomeravam em frente à porta de uma das salas de audiência da Câmara de Vereadores de São Paulo, na esperança de entrar ao plenário, já ocupado em sua capacidade máxima. Representantes de grupos cristãos, munidos de bíblias, terços e crucifixos, misturavam-se, disputando espaço, a ativistas pelos direitos das mulheres e da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (LGBTT), vestidos de violeta, com bandeiras coloridas e cartazes nas mãos. A proximidade, entretanto, parou por aí.

No plenário, prevaleceu a polarização entre os dois grupos que, de tempos em tempos, interrompiam a fala dos vereadores e, entre as exposições, cantavam palavras de ordem. Em pauta, a discussão da Comissão de Finanças e Orçamento sobre o Plano Municipal de Educação de São Paulo, já em sua terceira audiência. O debate sobre o financiamento da educação paulistana, porém, foi coadjuvante.

O protagonismo coube às estratégias presentes sobretudo na meta 3 do PME, que tratam de temas como educação sexual nas escolas e diretrizes relacionadas à igualdade de gêneros, e combate ao preconceito contra diferentes identidades e orientações sexuais.

 

De acordo com o vereador Toninho Vespoli (PSOL), relator do PME na Câmara, todas menções a “gêneros”, “sexualidade”, “educação sexual” e “orientação sexual” foram retiradas do texto. O vereador afirma que a redação suprimida refletia um longo debate existente na cidade de São Paulo e, portanto, sua exclusão pela Comissão de Finanças e Orçamento, é arbitrária. Vespoli explica que há anos o PME vem sendo discutido, com a realização de inúmeras audiências públicas. A resistência a temas relacionados aos direitos das mulheres e da comunidade LGBTT nunca haviam aparecido nesse processo.

“Eles têm todo o direito de manifestar uma opinião contrária, mas chegaram tarde. Fizemos inclusive uma audiência que debateu especificamente educação e direitos humanos e esses grupos religiosos nunca apareceram. Além do mais, dão uma justificativa totalmente descabida”, defende o vereador.

Vespoli se refere ao termo “ideologia de gênero”, que vem sendo utilizado por esses grupos religiosos. Seus seguidores afirmam que essa ideologia visa a educar crianças de forma a serem assexuadas para que decidam apenas quando maiores qual será sua identidade de gênero ou orientação sexual. A “ideologia de gênero” seria, ainda, responsável pela destruição das famílias.

“Isso é uma distorção que tem como objetivo confundir a cabeça da sociedade e também dos vereadores. Sinceramente, acho que os parlamentares que fizeram menção a esse termo, hoje, referindo-se ao conteúdo do PME, ou não leram o plano, ou leram e não entenderam”, completa Vespoli.

O vice-presidente da Comissão de Finanças e Orçamento, o vereador Paulo Fiorilo (PT), foi o único a votar a favor de seu parecer, que apesar de alterações relacionadas às finanças, mantinha o texto, sem excluir os temas relacionados a gêneros. Todos outros vereadores votaram contra o parecer, embora alguns tenham afirmado, em plenário, estarem de acordo com as alterações relacionadas ao financiamento.

 

Atraso

Denise Motta Dau, secretária municipal de Políticas para as Mulheres, em São Paulo, lamentou o retrocesso. “Nos preocupa essa visão de que defender o direito das mulheres é um ataque às famílias”, pontua. A secretária acredita que a escola é um espaço privilegiado para educar as crianças a respeito dos temas relacionados à igualdade de gêneros e à diversidade sexual. “É importante manter a formação sobre esses temas nas escolas para que meninos e meninas cresçam com visão de igualdade entre homens e mulheres; isso ajuda a evitar que eles sejam futuros agressores e que elas se submetam a situações de violência; não adianta só atuar na ponta, punindo agressores, mas também devemos trabalhar com a prevenção, educando as crianças”, resume.

Para Denise, o acirramento do debate ao redor do PME é reflexo de um debate mais geral que vem ocorrendo na sociedade. “Dentro dessa discussão, os parlamentares, também os do Congresso Nacional, vêm mostrando uma tendência ao conservadorismo no que tange a qualquer legislação que trate de igualdade de gêneros, direitos dos homossexuais e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, entre outros”.

Sônia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres, aponta que os grupos conservadores, “que possuem representação em diversos partidos” procuram travar o avanço em relação a esses direitos desde a elaboração do Plano Nacional de Educação, onde metas similares também  foram retiradas do texto final. “Agora, a estratégia é travar nos municípios”, alerta.

Denise Motta Dau cita o caso recente de Guarulhos, na Grande São Paulo, onde grupos religiosos pressionam para que um livro que trata da igualdade entre meninos e meninas seja recolhido das escolas. “Trata-se de uma história em quadrinhos que fala dos papéis construídos socialmente para meninos e meninas, futuros homens e mulheres; na história, um time de futebol masculino precisa de mais um jogador e só surge uma menina; o debate que o grupo faz é se aceita ou não a garota no time. Ela, ao final, é aceita. Isso é mostrado de forma lúdica, para marcar a importância de tratar ambos gêneros de forma igualitária. Acontece que esse debate sobre essa suposta ‘ideologia de gêneros’ está sendo feito de uma forma tão equivocada que até livros como esse podem ser recolhidos”, lamenta.

Sonia Coelho defende a urgência de que as escolas trabalhem educação sexual com enfoque em gêneros. “É preocupante a violência que vemos hoje nas escolas. Claro que ela tem múltiplas causas, mas uma delas é o fato da escola não se adequar à realidade, não ser um espaço democrático para o diálogo, não discutir o racismo, a homofobia, a questão de gêneros. A educação deve ser livre, aberta, construir valores emancipatórios e democráticos, não é para alienar e reproduzir violência e preconceito”, define. E continua: “a gente tanto se indignou com o caso de estupro coletivo na Índia, e a Índia é aqui; tivemos um estupro coletivo dentro de uma escola estadual em São Paulo e os gestores e a direção fingem que nada ocorreu. Vemos a ação desses grupos conservadores aqui [na Câmara de Vereadores] e verificamos na prática como isso é daninho para a comunidade educativa”.

Finanças e outras metas

Discussão igualmente importante é a forma como o município de São Paulo irá financiar a educação na próxima década. O relator do PME, Toninho Vespoli, aponta que houve mudanças importantes em relação ao que se discutiu ao longo do processo de elaboração do documento. “A supressão do que se havia proposto mostra um desrespeito aos debates feitos na construção do plano”, avalia o vereador.

No texto levado à Comissão de Finanças e Orçamento, falava-se em aumentar em 30% a destinação dos recursos obtidos através de impostos. Uma estratégia estabelecia como objetivo “combater de forma intransigente a sonegação e a renúncia fiscal para alcançar a plena capacidade de arrecadação da carga tributária e, quando concedido isenção ou subsídio fiscal, deverá haver compensação equivalente para a educação”. Ambas definições foram suprimidas pela Comissão.

No texto substitutivo, definiu-se que o município irá esperar a regulamentação da meta 20 do PNE, para definir o aumento dos recursos. Em outras palavras, o município não se compromete com o financiamento da educação em seu PME. “Há um risco de que as coisas fiquem como estão, o que é insuficiente para atingir as metas que nos propomos; além do mais, não temos garantia de que o Congresso Nacional irá regulamentar essa lei, assim como as diversas leis da Constituição Federal de 1988 que até hoje não foram regulamentadas”.

Para o vereador, sem contrapartida do município, a educação em São Paulo se ampliará sem qualidade e sem possibilidades de criação de uma política de valorização docente efetiva. “Sem recursos, o PME se torna apenas uma carta de intenções”, finaliza.

Uma série de organizações da sociedade civil, como o Grupo de Trabalho de Educação da Rede Nossa São Paulo, a Associação Cidade Escola Aprendiz, Ação Educativa,  Geledés, Cenpec e Instituto Paulo Freire, entre outros, emitiu uma nota de repúdio ao texto substitutivo da Comissão de Finanças e Orçamento, levantando diversos pontos problemáticos das alterações.

“Reafirmamos nossa indignação com o conteúdo do substitutivo de Plano de Educação da Cidade de São Paulo, aprovado pela Comissão de Orçamento e Finanças, e solicitamos que o plenário da Câmara de Vereadores reverta a situação, recuperando os avanços apresentados no projeto substitutivo aprovado pela Comissão de Educação, Cultura e Esportes.

Entendemos que só assim o Plano de Educação poderá se constituir em um eficaz instrumento na superação das desigualdades nesta cidade, orientando o planejamento de médio e longo prazo, a avaliação e o controle social de políticas educacionais.

Contamos com a consideração e apoio dos vereadores para aprovar um plano de educação que responda de fato as necessidades educacionais e os anseios da população da cidade de São Paulo”, diz a nota.

Antes de passar pela Comissão de Finanças e Orçamento, o PME havia sido debatido pelas comissões de Educação, Cultura e Esportes e pela de Administração Pública. Agora, o texto irá para a Câmara, onde deverá ser votado até dia 24 de junho, prazo limite para a aprovação dos PME.

Falsa Discussão

O SinPsi lamenta a “violência” contra a abordagem sobre gênero no texto do PME. Trata-se de grave erro na condução do debate, já que a argumentação contrária ao texto tem sido basicamente a da chamada “ideologia de gênero”, que seria responsável pela não diferenciação entre sexos e outras bobagens.

O presidente do sindicato, Rogério Giannini, ressalta o baixo nível da discussão, inclusive nas redes socias.

“As afirmações são absurdas, como as de que os professores ensinarão sexo para crianças, de que ninguém poderá mais ser chamado de menino ou menina, de que as aulas serão dadas com as pessoas peladas e de que será retirado o poder de família dos pais!”, exclama.

E a questão não parece ser exclusiva da cidade de São Paulo. O SinPsi tem recebido notícias de que Brasil afora outros Planos de Educação estão tendo problema no mesmo item. Algo como uma articulação de forças políticas conservadoras, como a bancada da bala e fundamentalistas religiosos. São grupos que tentam impor uma pauta moralmente conservadora, muito menos preocupada com a qualidade do ensino e de avanços da sociedade e mais focada em dar resposta às suas bases. No fundo, uma falsa discussão.

“Apelar para mentiras e para terror social não parece atitude fundamentada em nenhuma religião. Tenho a impressão de que se bate em uma coisa mirando outra. É como se o conservador pensasse: ‘pra quê educar com base na tolerância e no respeito, se eu, religioso, fui educado com base no medo, na culpa, na intolerância e no fundamentalismo?’”, analisa Giannini.

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