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A culpa da mãe

Em seu 20º filme, Almodóvar fala de relação entre mãe e filha marcada por mágoa, impossibilidade do diálogo, mas também pela busca de reparação

Filmado com base em três contos do livro Fugitiva (Biblioteca Azul, 2014), da escritora canadense Alice Munro, ganhadora do Nobel de Literatura de 2013, Julieta é – entre outras coisas, como sempre são os filmes – uma história sobre culpa e de como esse sentimento pode ganhar várias faces, em especial quando se acredita que ele de fato se justifique. O diretor espanhol Pedro Almodóvar, indicado cinco vezes à Palma de Ouro, vencedor do prêmio de direção por Tudo sobre minha mãe, de 1999, volta-se mais uma vez para o universo feminino, tão frequentemente abordado em sua obra. Existem homens, claro, mas são as mulheres as protagonistas – embora as participações masculinas sejam cruciais e confiram matizes trágicos ao desenrolar da trama. A personagem que dá nome ao filme, vivida por Emma Suárez, nos dias atuais, e Adriana Ugarte, no passado, carrega e enfrenta o peso emocional em razão das mortes de dois homens pelas quais se julga de alguma maneira responsável e por uma escolha da filha, Antía, interpretada pela menina Priscilla Delgado e por Blanca Parés na fase adulta. O afastamento voluntário da jovem, ao completar 18 anos, parece incompreensível para a mãe e a atira em um redemoinho de emoções, fazendo-a rememorar o passado, ainda tão presente e dolorido. 

A despeito das cores fortes, marcantes em grande parte dos filmes do diretor – e que em Julieta explodem aqui e ali, num vestido, numa echarpe ou num detalhe do cenário – também se fazem presentes os tons escuros, carregados. Assim como no semblante severo de uma curiosa personagem, ligeiramente trágica e até um tanto cômica, encarnada pela amiga de Almodóvar, a atriz espanhola Rossy de Palma, que já trabalhou em vários de seus filmes. Dessa vez ela vive uma empregada doméstica com participações bastante pontuais. Talvez haja nela algo de superegoico, mas também não seria descabido dizer que sua presença faz alusão a aspectos psíquicos soturnos que, vindos do inconsciente, revelam facetas desagradáveis, com as quais tentamos não entrar em contato, mas terminam por se mostrar por meio de sonhos, chistes e atos falhos. 

Não por acaso, há trechos no filme em que prevalece a ausência de palavras, algumas cenas são impregnadas de frases suspensas, explicações não dadas e conversas evitadas, o que abre nichos para que o não dito se torne maldito. “Silêncio”, aliás, era o título originalmente cogitado para o filme, o 20º da carreira de Almodóvar. Por vezes, a vida dos personagens parece transcorrer por entre brechas do que não pode ser partilhado, sem lugar para reverberar. 

A relação entre Julieta e Antía se molda justamente pela disfarçada impossibilidade do diálogo. Cada uma termina por viver o luto da perda do marido/pai solitariamente, embora fisicamente tão próximas, vivendo na mesma casa. Há por parte da mãe a ilusão do encontro, mas o engodo não se sustenta e o conflito logo se revela. É possível pensar que haja uma culpa partilhada entre as duas e no comportamento da filha expresse uma formação reativa, mecanismo de defesa que a psique usa para se proteger de estímulos ansiogênicos ou conflituosos. Antía cuida da mãe, enquanto a raiva e a agressividade são disfarçadas, acalentadas ao longo do tempo e a princípio só transparecem sutilmente, num sorriso ou esgar. A hostilidade e a culpabilização se expressam, num primeiro momento, em um comportamento compensatório, marcado pela atenção e aparente cuidado em relação ao outro. Entretanto, o desconforto e a angústia invariavelmente terminam por transparecer de uma forma ou outra. 

E é o que acontece quando Antía simplesmente desaparece de um dia para o outro.  A mágoa da mãe é guardada até que chegue o tempo da vingança. O adiamento forçado desse momento, uma espécie de recuo tático, parece funcionar para que a jovem reúna forças e amadureça seu projeto de punição da mãe. Nietzsche escreve: “O ressentido sofre de uma memória reiterada, de um impedimento de esquecer”. Para o filósofo, a memória assume neste caso ares de patologia. 

Não há dúvida de que, em Julieta, a culpa é um substantivo feminino. “Numerosas pesquisas mostram que as mulheres se sentem, em geral, mais culpadas, em particular no que se refere às relações interpessoais”, afirma o doutor em psicologia Itziar Extebarria, da Universidade dos Países Bascos em San Sebastian, que há anos pesquisa as implicações psíquicas da culpa. Ele relaciona essa constatação não só a questões de caráter social e cultural, mas também ao fato de que as mulheres tendem a ser mais empáticas. “Mas é importante notar que a culpa feminina tem forte componente ansioso e agressivo, ligado a sentimentos de raiva muitas vezes não expressos, não só a estados ansiosos”, ressalta. Essa intensa culpabilização das mulheres evoca uma pergunta: por onde anda a responsabilidade masculina em relação às próprias escolhas e, em última instância, sobre as próprias vidas? Almodóvar oferece, nas entrelinhas, uma resposta intrigante: os homens estão mortos. Mas isso não é tudo: há indícios de que, ao fim da estrada tortuosa por onde Julieta transita nas últimas cenas, surjam possibilidades de aproximação e reparação – embora mais uma vez sob a sombra da perda e do luto.

Serviço

Julieta
99 min – Espanha, 2016
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Adriana Ugarte, Emma Suárez, Rossy de Palma

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