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A difícil tarefa de ser protagonista

Assumir protagonismo é assumir uma imensa responsabilidade: a de decidir que tipo de história estamos criando com nossas escolhas

Protagonismo é uma palavra que entrou para as conversas, não apenas aquelas que tratam de personagens da ficção. Mais que uma palavra, aliás, tornou-se uma busca, que existe para além de quando o termo é invocado como arma de luta – que, ao ser disparada, soa como “ei, estou falando sobre algo importante aqui, escutem!”

A busca pelo protagonismo está presente mesmo quando não é vocalizada. Silenciosa, escorre por entre nossos dias e por entre nossos pequenos gestos para sermos notados.

É se ver numa frase genérica escrita por alguém e querer mostrar aquilo para o mundo: “nossa, isso é totalmente eu!”. Até em um gif animado com um cachorro arrastando uma criança pelo quintal, lá estará nossa necessidade de ser protagonista ao destacar o cachorro como “a vida” e a infortunada criança como “euzinha!”.

Sete bilhões de pessoas no mundo e às vezes é esmagadora a sensação de que somos pequenos demais para alguém se importar. É o medo de que, no fundo, não teremos papel determinante nessa grande história, e que os acontecimentos vão nos atropelar, indiferentes às nossas ações.

Não era esse também o pavor daqueles que, até por volta do século XVI, recusavam-se à ideia de que é a Terra que gira ao redor do Sol e não o contrário? Absurdo não sermos protagonistas nem do nosso próprio Sistema Solar.

A ideia de protagonismo é, portanto, maior e mais constante em nossas histórias do que pode parecer ao vê-la propagada pelos impulsos frenéticos da internet. Não é possível impor um ou outro significado, ou ainda limitar seu uso para tratar deste ou daquele assunto.

Mas, como pessoa que trabalha com a ficção, vou puxar a sardinha para o meu lado. Lidar com protagonistas na escrita, esses seres imaginários que coloco para fazer coisas absurdas e ver como se saem, formou em mim uma percepção bastante peculiar da coisa toda. 

Por essa razão, não vejo protagonismo só como um microfone, um palanque ou um espaço para poder dizer “eu existo!”. Não que não seja isso (também). Mas, como escritora, entendo que protagonista é aquele que, através de suas ações, vai conduzindo o rumo de uma história.

Aí protagonismo deixa de ser algo bacana, quase um “status” ou um selo de quem é mais ou menos merecedor de estar no centro, e se transforma em um papel revestido de responsabilidade.

No filme Stranger than Fiction (em português: Mais estranho que a ficção), lançado em 2006, um pacato auditor da Receita Federal descobre ser o protagonista do livro de uma famosa escritora. Imagine isso da forma mais literal possível: tudo o que ele vive, faz e pensa é controlado e narrado por essa autora, enquanto ela escreve.

O problema é que Harold Crick, o protagonista, realmente existe. Ele escuta essa “voz do além” narrando sua própria vida. Uma voz que não fala com ele, mas sobre ele – e com um melhor vocabulário, como ele mesmo define.

Doideira? Com certeza. Mas há um ou dois detalhes que deixam o filme mais interessante: a escritora é alheia ao fato de que Harold existe na realidade, de que ele é uma pessoa. E a escritora, em seu livro, tem a ideia de matar seu protagonista.

O filme então se desenrola brilhantemente pelo caminho da metalinguagem, numa jornada de Harold para retomar o controle de sua vida e impedir que a autora dê um final trágico para sua própria história. Quem gostaria de ser protagonista nessas condições?

A história de Harold acaba nos apontando para uma incômoda percepção: ser o personagem principal de alguma coisa não é uma glória, mas sim uma difícil tarefa. Protagonismo não é apenas um holofote brilhando mais forte sobre sua cabeça, mas principalmente um peso a se carregar sobre os ombros.

Em tempos de disputa narrativa em todos os campos possíveis, onde cada um quer falar mais alto e por mais tempo para garantir que a sua versão é a que seja contada, o protagonismo é peça chave – que talvez estejamos encaixando de cabeça para baixo na fechadura.

Porque a busca pelo protagonismo é algo humano e sempre esteve aqui: a nível individual ou coletivo; agora, em tempos de selfies e vlogs, ou desde o início da humanidade. Há o medo de não sermos especiais o suficiente, de que sejamos dissolvidos entre essa multidão de gente; mas, se pensarmos bem, cada pessoa com quem cruzamos é protagonista de sua própria história.

Talvez até com uma voz vinda do além narrando cada um de seus passos. Vai que.

Nesse cenário, a busca por ser o protagonista não deveria ser tão importante quanto o questionamento: ser protagonista para contar qual história? Qual o tipo de história estamos criando com nossas escolhas? Para onde estamos conduzindo essa narrativa? Do que adianta ter as rédeas da história se deixamos ela correr desembestada rumo ao abismo?

Para Harold Crick, personagem de Will Ferrell no filme, perceber-se protagonista significou assumir um papel ativo na construção de sua história. Porque o protagonismo não deve nos deixar perder de vista que o que importa é o tipo de história que estamos ajudando a construir. 

E esquecer disso é o que pode nos deixar, no final das contas, numa realidade ainda mais estranha que a ficção.

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