Cinthia Vilas Boas – Vice-presidenta do SinPsi
Aproveitar o Treze de Maio para falar de racismo institucional contribui para propiciar mudanças de olhar sobre o que é liberdade. Lembrando que, atualmente, é consenso considerar que o racismo envolve três grandes âmbitos, são eles: o intrapsíquico, o interpessoal e o institucional, como citado acima.
O intrapsíquico, que se refere a como pessoas negras e brancas consciente ou inconscientemente vivenciam os efeitos do racismo. Nesse caso, invariavelmente, há marcas de humilhação social, já entre as pessoas brancas, de modo geral, há experiências de afirmação identitária pelo simples fato de a pessoa ser branca. O interpessoal, que diz respeito ao racismo tácito ou explícito que ocorre nas relações cotidianas estabelecidas por pessoas brancas contra as negras. E o institucional, que transcende essas duas dimensões e as determina.
Por ser uma modalidade de opressão que gera desigualdade social, o racismo institucional refere-se às ações de discriminação baseadas em raça/cor realizadas em toda e qualquer instituição, inclusive dentro das engrenagens do próprio Estado, em corporações empresariais privadas e universidades, sejam públicas ou privadas. Notadamente, diz respeito ao nível político-programático institucional, às ações e decisões amplas que envolvem e decidem o acontecer cotidiano institucional. Nessa direção, o racismo institucional concerne às prioridades de gestão que, explícita ou implicitamente, privilegiam o grupo social branco em detrimento do grupo racial negro. Logo, ele é um dos principais responsáveis por mazelas institucionais vividas por esse grupo, tais como: ter os piores cargos profissionais e salários e as piores condições de trabalho. Dessa forma, ele perpetua o privilégio material e simbólico da população branca e a inferioridade concreta e simbólica da população negra.
É nesse sentido que esse conceito é importante quando se pretende discutir liberdade, pois, se liberdade é o direito de se agir segundo o seu livre arbítrio, de acordo com a própria vontade, desde que não prejudique outra pessoa, então, podemos dizer que liberdade é o oposto de escravização, de sujeição e subordinação.
Tendo em vista o que foi escrito sobre racismo institucional, e ainda que o Treze de Maio tenha significado abolição jurídica do escravismo, é notório que, do ponto de vista sociocultural, político-ideológico, histórico-relacional, dentre outros, a população negra ainda vivencia cotidianamente situações de rebaixamento e sujeição, pois está submetida às piores condições de vida. A população negra sabe disso, não por acaso desde o período escravista até hoje em dia tem lutado por dignidade.
A propósito, no colonialismo brasileiro, pessoas negras livres, libertas e escravizadas orquestraram movimentos contra o escravismo. O que nos faz entender que a abolição da escravatura não é fruto simplesmente da assinatura da Lei Áurea. Isabel, a princesa, assinou aquilo que já era reivindicação de parte da população negra e que, igualmente, era vindicação de países capitalistas nascentes, como a Inglaterra, que se beneficiaria economicamente com o fim do escravismo nas Américas. Por assim dizer, a pressão dos povos negros e a pressão capitalista, levou Isabel a assinar a Lei Imperial n.º 3.353.
Desde então, formal e oficialmente não se pode mais escravizar pessoas. Não por acaso, nesse contexto, emergiu outro dispositivo que passou a ter poder de lei, de dizer o que é certo e o que é errado: a (pseudo)ciência e com ela as teorias sobre o racismo foram sistematizadas, instituindo-se o que chamamos de racismo científico. Assim sendo, a abolição foi, em parte, uma luta conquistada pela população negra, seguida de uma grande derrota, já que, com ela nenhuma política pública de reparação foi feita. Aliás, não ter nenhuma política pública dessa natureza significa justamente a efetivação do racismo institucional.
Como o capital permaneceu nas mãos das mesmas famílias, negras e negros tinham liberdade (jurídica), mas não dispunham de terras para plantar, hospitais ou escolas, além de tudo o que ainda eram obrigados a comprar das mãos dos antigos senhores, as mercadorias que eles mesmos produziam. Obviamente, o resultado dessa exclusão foi a perpetuação de sua condição de subalterno como parte da classe trabalhadora.
Por ser explorada economicamente, tratada como inferior, transgressora, danosa, incivilizada, objeto de estudo, responsável pelas problemáticas existentes no país… essa população notou que, aos poucos, as senzalas foram sendo trocadas por cortiços nas favelas, o chicote foi sendo trocado por jornadas absurdas de trabalho, as humilhações dos feitores foram sendo substituídas pelas regras do patrão, para poder sobreviver. Assim, a luta até hoje se faz no dia a dia. Querendo ou não, para a população branca, esse é um processo histórico de salvação, inclusive porque está liberada de ter de se responsabilizar por ele.
No Brasil, o racismo ganhou máscara “democrática”, enquanto que, na prática, a população negra, em sua grande maioria, segue até hoje, sendo a classe trabalhadora que ocupa os piores cargos, recebe os piores salários, dispõe de serviços públicos mais precários e sente na pele a repressão dos “novos capatazes”; as polícias e forças militares, em especial nos bairros proletários. Quando há um recorte de gênero, a condição piora: as mulheres negras, que muitas vezes organizam a estrutura da família, realizam jornadas triplas de trabalho. Contudo, mais uma vez, a população negra reúne forças em mobilizações políticas pela defesa de seus direitos. Mas ter de lutar o tempo todo também cansa.
O Conselho Nacional de Saúde frente às questões do novo coronavírus, publica ações para combater o racismo estrutural e institucional em saúde. Esta pandemia nos coloca para refletir a saúde da população negra, uma vez que é a população situada nos territórios mais vulneráveis, é a população que possivelmente não conseguirá seguir algumas regras da OMS. É impossível pensar as estratégias de enfrentamento da COVID 19, sem levar em condição às doenças prevalentes na população negra, as comorbidades e o quesito raça/cor, muitas vezes omitidos no sistema de saúde.
A atuação de profissionais de serviços de atenção à saúde, incluindo gestores e prestadores, deve ser realizada de maneira antirracista em todo o manejo com os pacientes em situação de vulnerabilidade, diz a recomendação 29 do Conselho Nacional de Saúde, do dia 27 de abril de 2020. A Comissão Intersetorial de Promoção de Políticas da Equidade do Conselho Nacional de Saúde (CIPPE/CNS), a qual a FENAPSI faz parte, acompanha com extrema preocupação situações de racismo no sistema de saúde e colabora com a nota de recomendação.
O enfrentamento é possível e a nossa caminhada, enquanto SINPSI, se faz caminhando !