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A nova velhice

Oficina de memória e acompanhamento terapêutico são algumas das abordagens que veem o idoso como protagonista do seu lugar social

Seu Lino chega no Pateo do Collegio trazido por sua filha, que escutou sobre o projeto no rádio. “Sou pobre, negro e velho”, pensou: “Não vão me aceitar”. Os critérios para participar das oficinas, no entanto, eram a disposição de ir aos 10 encontros, capacidade auditiva e lucidez. Seu Lino estava dentro. Aquela foi a primeira intervenção aberta da Oficina Memória Viva. Tendo como matéria prima a memória autobiográfica de pessoas idosas, a oficina propõe o resgate da história de cada um, de suas memórias afetivas, como uma técnica de inclusão e de criação de redes de relacionamentos.

No início, Seu Lino dizia que achava que não tinha muita coisa para contar “já que não era nenhum doutor”. “Mas ensinou, e muito, na voz e na coragem de compartilhar o saber-fazer, a experiência”, descreve a gerontóloga e psicóloga Patrícia Cabral, que junto com a antropóloga Vera Brandão e com a pedagoga Rita Amaral, criou a Oficina Memória Viva. “Hoje olho na face de cada um e me sinto o mais feliz da face da terra. Simplesmente, ser”, declarou Seu Lino ao final dos encontros quando recebeu um livro com as memórias dos 15 participantes. Feliz, abraçou Dona Pérola, que estava ao seu lado. Ele foi morador de rua. Ela, moradora dos Jardins.

Seu Lino e Dona Pérola são duas das 810 milhões de pessoas espalhadas pelo planeta que têm mais de 60 anos. E esse número só tende a aumentar. De acordo com o IBGE, estima-se que entre 1950 e 2025 a população brasileira terá crescido cinco vezes. No mesmo período o aumento da população idosa vai ser de quinze vezes. Se em 2000 os idosos no Brasil eram de cerca de 15 milhões de pessoas (8,6% da população do país), a prospecção é que esse número em 2020 alcance os 30 milhões.

“A transição demográfica refere-se a um aumento gradativo da longevidade paralelo a uma diminuição das taxas de fecundidade. Haverá mais velhos do que jovens no mundo em algumas décadas”, explica Maíra Peixeiro, psicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica do Ger-ações – Centro de Pesquisas e Ações em Gerontologia. “Este fenômeno dá visibilidade à velhice e a torna alvo da atenção das mais distintas áreas. Encontramo-nos neste período de transição”, aponta.

A transição não é simplesmente demográfica, mas também da própria forma como os idosos atuam na sociedade e são vistos nela. Ao longo dos últimos dois séculos, com o valor da pessoa associado à sua capacidade produtiva, a velhice esteve atrelada a uma imagem de doença e margem. O Ger-ações, segundo Peixeiro, tem o objetivo de “contribuir para a construção desta nova imagem da velhice, de um idoso que é protagonista na construção de seu lugar na sociedade; que tem sustentada sua participação política e social; que tem garantidos seus direitos em uma sociedade que deve reconhecer as necessidades relativas a esta fase da vida. Esta velhice tem voz, tem potência, tem enlaçamento social e singularidade”.

Junto com o aumento do número de idosos e de suas demandas, aumenta também a variedade de serviços e trabalhos voltados para esse setor social. A Oficina Memória Viva e o Ger-ações se assemelham na ideia de trazer propostas que fujam de perspectivas infantilizadoras (existem até creches para idosos) e do que chamam humoradamente de BBB: baile, bolo e bingo. “Claro que, sem preconceitos, para muitos essas atividades são ótimas”, esclarece Patrícia Cabral: “Mas só isso? E os desafios? E aprender algo novo? E o envolvimento político? E…e…”

Memória autobiográfica

O método das oficinas não é rígido, por ser construído com os participantes e de acordo com o contexto. O número de participantes é de no máximo 15 pessoas, que fazem em média 10 encontros de duração de cerca de duas horas. “A gente busca a cada encontro temático memórias afetivas, prazerosas. Não focar no que não foi feito, mas no que é possível ainda fazer. A construção da narrativa exige uma atividade psicossomática em vários níveis”, conta Cabral. As lembranças são registradas em cadernos de memória que ao final são entregues a todos os participantes. “Essa memória compartilhada quebra barreiras, mostra coisas em comum e permite a comunicação entre diferentes pessoas, diferentes gerações, diferentes grupos sociais, diferentes condições físicas”, observa. A Oficina Memória Viva já fez trabalhos no SESC, na Casa Simeão, na Sociedade Beneficente Rosália de Castro, em Instituições de Longa Permanência para Idosos, entre outros.

“Naquele tempo tinha baile na tulha quando os fazendeiros despachavam café para Santos. Os rapazes iam no sítio e foi assim que eu conheci o Teodoro*. Namoramos 5 anos. (…) Nos casamos e fomos morar na cidade. Resolvemos mudar para São Paulo. Viemos com a cara e a coragem. Fomos morar no Tucuruvi”, escreve a senhora Amélia* em um dos cadernos feitos em oficinas de um asilo em São Paulo: “No mês que vem vou fazer 92 anos. Moro aqui há três anos e meio. Já me habituei. A vida é assim mesmo. (…) O que me dá bastante alegria é quando meus filhos vêm me visitar. Só de ver eles eu já fico contente”.

“Lembrar não é estar preso num passado rígido, é falar do passado hoje, num presente, portanto é recriar”, aponta Patrícia Cabral, concordando com a frase do psicanalista Contardo Calligaris, de que “o ato biográfico é constitutivo do sujeito”.

Acompanhamento terapêutico

Também com um trabalho que envolve o ato da escuta e do não silenciamento do idoso, um dos grandes focos do Ger-ações é o acompanhamento terapêutico (AT): “um dispositivo clínico que surgiu no Brasil em meados dos anos 1980 a partir dos movimentos que buscavam humanizar o tratamento da loucura. É uma criação latino americana que teve seus primeiros personagens na Argentina e se espalhou pela América Latina”, contextualiza Maíra Peixeiro.

“O AT no envelhecimento surge quando se observa que muitos idosos vivenciam intenso sofrimento psíquico atravessados por questões subjetivas e também sociais relativas ao lugar da velhice na nossa cultura”, salienta Maíra, para quem esses idosos não demandam uma terapia, “mas alguém que possa acompanhá–los nesta travessia do tempo que envolve mudanças relativas ao corpo, ao lugar social, à imagem e que coloca em perspectiva a finitude”.

O acompanhamento em atividades ou passeios pela cidade, por exemplo, são fundamentais para o objetivo de favorecer o enlaçamento na comunidade e na cultura. Mas o núcleo de AT do Ger-ações destaca ainda uma série de elementos éticos relacionados à intervenção em situações de submissão violenta ao outro (seja à família, ao saber médico ou ao Estado) e à construção de projetos singulares que apontem para algum futuro, mesmo que a curto prazo – sejam eles de vida, ou em alguns casos, de morte. “Nossa experiência mostra que o AT é um dispositivo muito potente na construção de redes no envelhecimento”, constata Maíra.

O longeviver

“O longeviver deve levar em consideração todos os aspectos, e talvez a nossa luta seja autorizar e permitir, não nos assustar com as perdas e também dar voz e espaço às aquisições que a idade pode trazer. Velho tem sexualidade, libido, dor, amor, rancor, medo, trauma, capacidade de elaborar, aprender, doenças, possibilidades, mesmo que as dificuldades em relação à autonomia comecem a aparecer”, reflete Patrícia Cabral, e em seguida se recorda de uma senhora de 81 anos que conheceu: “Em pleno processo de elaboração do luto do parceiro de mais de 50 anos, ela verbaliza ‘sinto que eu hoje sou uma pessoa, coisa que nunca achei que era’. Forte, né?”

Patrícia se lembrou também de uma senhora analfabeta que participou da oficina de memória e construiu o seu caderno com a ajuda de uma neta, tendo o processo inclusive proporcionado uma aproximação na relação intergeracional. Ao final da oficina, do alto de seus 86 anos, disse: “Agora vou aprender a ler, pois quero ler muitas vezes esse meu caderno”. 

* Nomes fictícios, por privacidade

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