Primeiro dia de atividades da bienal da entidade, em Salvador, debateu também ameaças à autonomia das universidades federais e formas de resistência ao pensamento reacionário
Em meio às ameaças do governo Bolsonaro contra as universidades públicas e sua autonomia, o diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, afirma que a educação deve ser a principal arma para desarmar o ódio, acabar com o medo e trazer esperança para a população. O intelectual português participou, nesta quinta-feira (7), de umas das conferências da 11º Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), na capital da Bahia.
Ao lado de João Carlos Salles, reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – onde é realizado o evento –, Boaventura falou sobre como um governo autoritário pode trazer consequências diretas para o modelo de educação que o governo tentará impor ao país ao país pelos próximos quatro anos. Na sua visão, projetos como o Escola Sem Partido e a ideia de o próprio governo escolher os reitores das universidades públicas mostram que a educação está totalmente ameaçada. “Eles querem liquidar todo o processo educacional que construímos ao longo deste século”, lamenta.
De acordo com o português, o governo Bolsonaro aplica uma dupla “disciplina” contra a sociedade: a da economia anti-povo e a do medo. “As medidas econômicas que serão impostas vão destruir o mínimo do bem-estar e a expectativa de vida da grande maioria da população brasileira. É o neoliberalismo desenfreado que será imposto no Brasil.”
Porém, na sua visão, são políticas que não se sustentam em argumentos racionais, então é aplicada a disciplina ideológica, mostrando que não há alternativa para o que eles apresentam. “Eles utilizam três fábricas a todo vapor: a do ódio, do medo e da mentira. O ódio para destruir qualquer narrativa contrária. O medo para levar insegurança econômica e física para classes sociais. Já a mentira é usada porque não são capazes de confrontar outras ideias. Isso é a logica do pensamento reacionário”, afirma.
Na encruzilhada
Falando a milhares de estudantes, Boaventura afirmou que a educação brasileira está numa encruzilhada. Para ele, o sistema pode se tornará uma linha de montagem dessas “fábricas de reacionários”, ou resistir e destruir esse método de pensamento, impedindo que as “fábricas” se transformem em políticas públicas educativas.
O sociólogo também pediu para que os jovens se mobilizem para proteger o que é deles por direito e lembrou que a ofensiva é mais do que necessária para frear qualquer retrocesso. “Estudantes, chegou a hora de vocês defenderem as universidades, numa luta contra a máquina do ódio e da mentira. Contem aos seus netos que, aqui, começou a nossa luta.”
“A educação é o antídoto do ódio. A partir dela se criam novas formas de conhecimento. A educação deve ser uma fábrica contra a mentira, para florescer o saber. Não há um saber válido sem ser o universitário”, acrescentou.
Elites
Boaventura também criticou o ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, que chegou a declarar que a universidade não é para todos. “Ministro, você está equivocado, porque eu também não nasci aqui no Brasil, mas conheço melhor aqui do que o senhor. As universidades sempre serviram às elites, mas elas não conseguiram fazer nada, porque são as elites dos atrasos. E são eles que o senhor representa neste momento.”
Em janeiro, o MEC retirou do ar vídeos da TV Ines, do Instituto Nacional de Educação de Surdos, que abordavam a biografia de personagens como Marx, Engels e também Boaventura. “Me sinto ofendido pelo senhor ao aprovar a censura dos meus livros. Sempre lutei contra todas as ditaduras, de esquerda ou direita, mas a minha obra está censurada”, lamentou.
Em defesa da autonomia
Não são só os estudantes que resistem contra a cultura da irracionalidade e o retrocesso, a luta também passa pelos reitores das universidades públicas. João Carlos Salles lembra que as instituições federais estão sob ameaças desde o governo de Michel Temer (MDB).
Segundo o reitor, a ideia de expansão da universidade para alcançar todas as classes sociais, em todos os estados, cria um sentimento de rejeição por parte elites. Ele lembra que, enquanto o espaço de ensino superior serviu ao alto clero econômico, as salas de aula só reproduziam discriminações, o autoritarismo e exclusão.
Entretanto, ele frisa que a universidade deve ser um espaço progressista. “Ela serve para emancipar o pensamento crítico. Apesar de servir a tanto tempo às elites, ela não serve à elite. A universidade quebra privilégios, formando novas elites, criando condições de autorização da fala”, lembra ele.
Salles também criticou a ideia do atual governo de mudar o método de escolha de reitor. Um parecer assinado em dezembro, ainda na gestão Temer, diz que a “votação paritária ou que adote peso dos docentes diferente de 70% será ilegal, e deve assim ser anulada, bem como todos os atos dela decorrentes”.
Anteriormente, a lei determinava a realização de consultas informais à comunidade acadêmica, mesmo que paritária e anteriores ao conselho, eram válidas. Só neste ano, o governo Bolsonaro poderá escolher 11 novos reitores de instituições federais.
“Eles imaginam que a escolha do reitor deveria ser com comitê de busca, como se fosse um gerente da universidade, não um representante”, critica João Carlos. “Essa ameaça diz que a comunidade não é autônoma e madura para ter a decisão de escolha. Podem colocar bons profissionais, mas que não representam os anseios do projeto emancipador”, lamenta.
Em outubro do ano passado, a equipe de Bolsonaro sugeriu instituir a cobrança de mensalidades em universidades federais para alunos de maior renda. Pela proposta, recursos arrecadados formariam um fundo para ajudar no financiamento das vagas para estudantes carentes. A medida também foi criticada pelo reitor, para quem se criará uma espécie de apartheid no campus.
“As pessoas não sabem a gravidade disso. Seria dividir cidadãos de um lado e clientes de outro. A ideia da gratuidade não é orçamentaria, é um compromisso dos governos com o financiamento do ensino publico superior. O papel dela não é produzir riqueza, mas conhecimento”, acrescentou João Carlos.