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Brasil do golpe: comunidades terapêuticas são perversas e custam mais – Parte 1

A partir de uma abordagem punitiva para a questão da dependência em álcool e outras drogas, o governo golpista vai abrindo caminho para uma espécie de legitimação dos antigos manicômios, na figura das eufemisticamente chamadas “comunidades terapêuticas”.

Sanidade não é o forte do golpe em curso. Entre os recuos registrados pelos dois anos de Temer, a política pública de saúde mental dá passos firmes rumo à pré-história da luta antimanicomial, que na última sexta-feira completou trinta anos no Brasil.

A partir de uma abordagem punitiva para a questão da dependência em álcool e outras drogas, o governo golpista vai abrindo caminho para uma espécie de legitimação dos antigos manicômios, na figura das eufemisticamente chamadas “comunidades terapêuticas”.

Para os entrevistados ouvidos pela reportagem, estamos diante do risco real de um retorno aos manicômios como política oficial, caso a sociedade não se oponha aos rumos traçados.

Evidência desse risco foi o repasse de R$ 87 milhões anunciado pelo governo federal às comunidades terapêuticas, em abril deste ano. Segundo divulgado pelos ministérios da Saúde e da Justiça, esse valor será aplicado para atender sete mil leitos ao longo do ano.

Mais que o dobro de São Paulo
É mais que o dobro investido em saúde mental pela prefeitura de São Paulo, maior cidade brasileira. Em 2017, de acordo com prestação de contas da administração tucana, R$ 40,3 milhões foram aplicados na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município. RAPS é o conceito de atendimento sem internação como primeira receita para casos de transtornos mentais, entre os quais se incluem a dependência química.

Nesta rede destacam-se os Caps (Centro de Atenção Psicossocial), os hospitais-dia – de portas abertas – e casas de acolhimento. Internação, confinamento, só em casos em que os pacientes põem suas vidas e de outrem em risco.

Para efeitos de comparação, em 2015, segundo dados da prefeitura, foram atendidos apenas nos Caps da capital mais de dezessete mil pacientes. Procurada, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde não respondeu ao nosso pedido por dados atualizados.

Mesmo assim, é possível concluir que até usando um conceito bastante questionável quando se fala em saúde, o de custo/benefício (tão ao gosto dos que, como os golpistas, defendem produtividade e eficácia no serviço público) o emprego de comunidades terapêuticas é mais dispendioso. O custo de cada um desses sete mil leitos atendidos pelo repasse federal ultrapassa os R$ 12 milhões ao ano.

Porém, o cálculo apresentado pelo próprio governo federal quando do anúncio do repasse de R$ 87 milhões fala que o custo mensal por paciente adolescente é de R$ 1.596,00, e de R$ 1.172,00 por paciente adulto. Isso porque, segundo os ministérios, esses leitos vão funcionar em forma de rodízio e atenderão vinte mil pacientes por ano.

Internação: vai e volta
Essa conta causa desconfiança nos especialistas quanto ao tempo de internação. Tais períodos podem ser muito mais prolongados que os quatro meses utilizados nos cálculos golpistas. Um de nossos entrevistados, psicanalista com experiência na Raps, apresentou exemplo de um paciente que, aos 40 anos, já havia experimentado mais de quarenta internações ao longo da vida, em virtude de dependência química.

Para além dos cálculos monetários, o principal prejuízo embutido nas comunidades terapêuticas é o da própria luta antimanicomial. A reforma psiquiátrica, conquista de um movimento organizado que reúne trabalhadores da saúde, pacientes e familiares, tomou forma institucional e foi acolhida pela legislação brasileira no bojo da Constituinte.

A experiência terapêutica, os avanços científicos e o próprio conceito de democracia embasam a nova abordagem, de resto acolhida internacionalmente. Suas principais bandeiras são o fim da internação compulsória para quem sofre de transtornos mentais e a abolição de técnicas como o choque elétrico (orgulhosa e estranhamente exibida no último capítulo da novela global “O Outro Lado do Paraíso”). Em 2001, a lei Paulo Delgado, encaminhada pelo então deputado petista que lhe dá nome, consagrou a reforma psiquiátrica. A liberdade do paciente é um de seus princípios.

Nada comunitárias
As comunidades terapêuticas, em sua maioria, não são o que o nome que lhes é atribuído faz parecer. São propriedades privadas que não contam com equipes de saúde interdisciplinares, não têm dependências adequadas, recorrem ao trancafiamento de pacientes, frequentemente usados também para tarefas de manutenção e limpeza da propriedade, e têm na religião – sempre aquela escolhida pelos proprietários da entidade – seu princípio terapêutico.

O quadro descrito acima foi confirmado por vistoria realizada, entre os meses de outubro e novembro, em trinta comunidades terapêuticas, de dez estados diferentes, conduzida pelo Conselho Nacional de Psicologia, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, do Ministério dos Direitos Humanos.

Além da clausura, nas comunidades terapêuticas, quase sempre localizadas distantes de centros urbanos, a falta de acompanhamento individual dos pacientes é uma marca. “Não há nem prontuários dos pacientes”, relata Rogério Giannini, presidente do Conselho Nacional de Psicologia. “Eles são medicados quase sempre com um sossega-leão dado indistintamente a todos”, conta.

Em uma das comunidades visitadas, Giannini conta ter presenciado o castigo dado a um paciente, obrigado a permanecer sentado em uma cadeira, no centro do pátio, por mais de seis horas.

De joelhos
Outro paciente, ouvido pela reportagem, conta a sua experiência em uma comunidade terapêutica. Dependente de álcool, em uma de suas recaídas, no início do ano, decidiu buscar internação. Procurou uma comunidade indicada por alguém da igreja que frequenta. Mesmo comungando da mesma fé, não aceitou a rotina de castigos, cuja principal ferramenta era obrigar pacientes “irrequietos” a se ajoelhar durante até mesmo horas, sob a alegação de necessidade de orar.

Horários rígidos e luzes desligadas às 22 horas eram comuns. Tarefas como limpeza e reformas, uma obrigação. Apesar de a associação que representa essas entidades dizer que a internação não é compulsória e que a qualquer hora o paciente pode deixar o local, nosso entrevistado conta que havia seguranças, funcionários da comunidade, para impedir a saída.

“Tive que conversar com a dona e dizer que não concordava. Pedi para sair. Tive de convencê-la”, conta. Atualmente ele frequenta um Caps Álcool e Drogas na Zona Sul de São Paulo. Conta estar há quatro meses sem beber.

Leia a continuação amanhã.

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