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Criança Feliz: o Estado volta ao passado

Psicólogos denunciam que programa retira recursos da assistência social e retoma práticas assistencialistas

É a ideia de infância que determina as políticas de um governo para essa faixa da população. No Brasil, a opção do governo federal tem sido por uma definição defasada, se considerarmos que, entre 2016 e 2017, os municípios deixaram de receber mais de R$ 471 milhões para políticas públicas da assistência social, área que, a partir da Constituição de 1988, adquiriu caráter de política pública, deixando para trás o viés assistencialista.

Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), o corte orçamentário foi de 19% no período. As reduções nas políticas da assistência social são contrastantes com outras ações do governo federal, pois, no mesmo período, o então Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário criou o Programa Primeira Infância (Criança Feliz) no Sistema Único de Assistência Social (Suas), com orçamento de R$ 328 milhões em 2017.

Os municípios, que já enfrentavam dificuldades para manter os atuais programas, em razão da insuficiência de recursos e da falta de reajustes anuais dos pisos de cofinanciamento, ficaram, então, com os orçamentos mais comprometidos.

“Esse corte de recursos e a proposta do Programa Criança Feliz são muito preocupantes, pois comprometem determinantemente a execução dos princípios, diretrizes e objetivos do SUAS, bem como das garantias estabelecidas no Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016)”, afirma Fabiana Itaci, psicóloga integrante do Conselho Federal de Psicologia (CFP).

Retirada de recursos da rede de assistência social

De acordo com as informações do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) o Programa Criança Feliz repassa recursos e apoio técnico às prefeituras a 2.547 municípios para desenvolvimento de ações de proteção à primeira infância. Até agora, segundo o MDS, R$ 93,4 milhões foram repassados aos municípios para acompanhar crianças beneficiárias do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). O ponto central do programa é a visita domiciliar de técnicos para mostrar às famílias a maneira correta de estimular o desenvolvimento dos filhos nos primeiros mil dias de vida.

O problema de gestão da política, como aponta o psicólogo Joari Carvalho, que atua em Suzano (SP), é que as prefeituras já desenvolvem ações socioassistenciais e, em busca de mais recursos, em período de orçamentos reduzidos ou congelados, acabam aderindo ao Criança Feliz sem analisar o que terão de investir ou reordenar dos serviços atuais para que o programa funcione e cumpra suas finalidades. Aí reside o problema, pois as equipes municipais já estão comprometidas com ações previstas para os serviços atuais da assistência social, que poderiam ser aprimorados e cobrir adequadamente o atendimento a crianças no período da primeira infância, conforme a lei que regulamenta a Política Nacional da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016). “Bastariam reforço de recursos e apoio técnico das esferas estaduais e federal”, afirma Joari.

Recursos municipais que deveriam ser utilizados em políticas, programas e ações de assistência social estão sendo aparentemente desviados para o cofinanciamento do Criança Feliz. Joari explica: “É um desvio da finalidade da Política de Estado para uma ação pontual de um governo”. Em vez de investir na estruturação do acompanhamento e no atendimento nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), criou-se um programa paralelo, que concorre com ações sociassistenciais ou as sobrecarrega. Apesar de ter objetivos e procedimentos diferentes, o Criança Feliz atribui a gestão dos acompanhamentos às equipes do Cras, em particular à coordenação.

Direitos civis ameaçados pelo Criança Feliz

Na opinião da psicanalista Ilana Katz, a luta pelos direitos civis sempre perde quando se tenta hierarquizar e decidir qual direito é prioritário ou fundamental. “Direitos não se negociam. Nenhum, e para ninguém”, afirma Katz, que enxerga proposição assistencialista nos discursos do governo sobre o programa. Na apresentação do Criança Feliz no portal do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) há referências à inibição do comportamento agressivo e violento na adolescência, ao acompanhamento para famílias beneficiadas pelo Bolsa Família com bebês ou crianças até 3 anos, por meio de assistentes sociais que vão orientar “como criar as crianças em melhores condições”.

Katz vê semelhanças entre os pressupostos do Criança Feliz e os conceitos de infância anteriores à Constituição de 1988. Ela volta no tempo e lembra a história recente do Brasil. Em 1927, a criação do Código de Menores Mello Mattos se baseava em doutrina que afirmava ser dever do Estado assistir os menores abandonados ou de famílias consideradas inaptas ao cuidado do filho. Essa categoria era aplicada às famílias pobres, negras e excluídas dos direitos de cidadania. O saneamento social era a proposta desse código do início da República, que atribuía à infância dos pobres o sentido de periculosidade, como escreveu a pesquisadora Isadora Simões Souza em “Determinantes da institucionalização de crianças e adolescentes em tempos de doutrinação da proteção integral”, sua dissertação de mestrado na Universidade Nova de Lisboa, em 2017.

Em 1979, o Brasil viu segundo Código de Menores nascer. Apesar de alterar o primeiro, manteve as bases jurídicas do documento de 1927. Somente em 1988, a Constituição Federal modificou a compreensão do conceito de infância e da responsabilidade que o Estado tem em relação aos brasileiros dessa faixa etária. Dois anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) propôs tomá-los como sujeitos de direitos e cidadãos plenos. A categoria “menor” foi abandonada nessa época, e também a doutrina de “situação irregular”, substituída pela de “proteção integral”.

Incapacitação pela pobreza

O programa Criança Feliz propõe acesso a políticas públicas para a infância como norteador da intervenção do visitador domiciliar encarregado do cuidado. Nesse sentido, a psicanalista Ilana Katz avalia que a condição de cidadania da infância estaria sendo respeitada. No entanto, além das políticas públicas para a infância estarem sofrendo impactos do desinvestimento do Estado, a proposição central da tutela presente no discurso sobre o Criança Feliz representa um retrocesso.

Como explica Katz, a dimensão assistencialista do programa do governo federal – ensinar os pais das famílias pobres a zelarem por seus filhos – sustenta a hipótese da “incapacitação pela pobreza” e retira da criança e do adolescente sua condição de sujeito de direitos. Na visão de Ilana, essa abordagem de “um agente do Estado se propor a dar dicas para os pais das famílias pobres sobre como cuidar da criança para que ela não se transforme num adolescente violento” fere os princípios da proteção integral e reassume caráter tutelar da política para a infância.

Joari Carvalho concorda que um dos principais problemas de concepção do programa é a focalização, que beira o discriminatório, em grupos muito específicos – apenas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) com gestantes ou crianças. “Parece que o Criança Feliz parte do pressuposto de que basta dizer para a família o que tem que ser feito para garantir magicamente o pleno desenvolvimento da criança”, afirma.

Para a formulação de políticas públicas destinadas à infância, na opinião de Joari Carvalho, é necessário pensar as questões culturais, a relação das pessoas com o ambiente, os papéis de pais e mães, a violência nos grandes centros urbanos e, sobretudo, a falta de acesso às políticas sociais básicas a que as pessoas teriam direito, mas o próprio Estado não garante. “Não se discutiu nada disso, somente se mamães e papais estão cuidando da água, se passam repelente na criança. Pode até ter alguma pertinência, mas é uma simplificação grosseira diante da qual não podemos calar. Se a criança não se desenvolve direito, como eles preconizam, a culpa é da família? No meu entendimento, e de outros atores sociais, o desenvolvimento da criança deve ser pensado como resultado de um conjunto de responsabilidades a serem cumpridas também pela sociedade e pelo Estado, e não só das famílias, que acabam sendo culpabilizadas e ficam sem condições de se defender de mais uma violência contra quem já é vítima de inúmeras omissões do poder público”, avalia o psicólogo.

Controle social ignorado

Joari Carvalho ressalta também que não houve o devido diálogo com a sociedade para a criação do Programa Criança Feliz. “O debate ficou restrito aos formuladores.” Segundo Carvalho, muitos setores da sociedade civil foram ignorados ou pouco ouvidos na implantação súbita e verticalizada do Criança Feliz por questionarem o sentido ético e político da promoção, por parte da União, estados e municípios, de práticas inadequadas e praticamente fiscalizadoras do cuidado das famílias com suas crianças.

Exemplo de instituição que se posicionou contrária ao programa foi o Conselho Municipal de Assistência Social de São Paulo (Comas/SP). Em decisão publicada no Diário Oficial de São Paulo no dia 24 de fevereiro, o Comas deliberou pela não adesão de São Paulo ao programa alegando que o governo federal não havia fornecido informações suficientes em relação às questões técnicas operacionais, metodológicas e conceituais da iniciativa encabeçada pela primeira dama Marcela Temer. O Comas/SP também questionou a origem dos recursos federais e considerou que a falta dessa informação poderia “onerar ações continuadas da Política Municipal de Assistência Social existentes”.

Apesar da orientação contrária, a Prefeitura de São Paulo manteve a defesa da implantação do programa, insinuando que não precisava da aprovação pelo Comas/SP. Em agosto, conseguiu a aprovação do Criança Feliz, em processo que implicou alterações de composição do conselho, radicalização dos debates e polarização das opiniões.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apoia as entidades (coletivos de usuárias/os e trabalhadoras/es; conselhos municipais e estaduais) que se posicionam criticamente em relação ao Programa Criança Feliz e ao desrespeito ao controle social das políticas de Assistência Social.

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