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Ditadura tentou esconder militantes enterrados como indigentes em Perus

Administrador do cemitério Dom Bosco, em São Paulo, estranhou falta de registros, mas foi orientado a nunca falar no assunto

O ex-administrador do cemitério Dom Bosco (em Perus, zona noroeste da capital paulista) Antônio Pires Eustáquio afirmou nesta segunda-feira (24), em audiência pública das comissões estadual e nacional da verdade, na Assembleia Legislativa de São Paulo, que foi orientado a não falar sobre indigentes e não mostrar a ninguém os registros de sepultamento do local. Isso teria ocorrido no início dos anos 1980, durante reunião com toda a administração de cemitérios da cidade de São Paulo.

Os gestores públicos temiam que familiares de vítimas começassem a procurar por militantes dados como desaparecidos durante a ditadura (1964-1985). Segundo Eustáquio, estava reunida toda a diretoria do departamento de cemitérios da capital. “Orientaram a gente que não desse entrevista, não mostrasse os registros, não mostrasse o local. Nem desse os livros de registro nas mãos de ninguém. Me foi pedido que não desse muito alarde ou que falasse muito sobre indigentes sepultados naquela época”, contou.

Ele disse ainda que recebeu ameaças por ter se engajado no auxílio às famílias que buscavam militantes desaparecidos durante a ditadura. “Eles ligavam no cemitério, mandavam recado pelos funcionários. Não sei quem era. A (ex-prefeita) Luiza Erundina garantiu minha segurança. Eu morava bem na frente do cemitério, tinha filhos pequenos. Fomos para longe”, relatou.

Eustáquio administrou o cemitério entre 1976 e 1992. “Os funcionários mais antigos tinham medo de falar no assunto. Mas ouvi algumas coisas sobre o período em que os chamados terroristas eram trazidos para o Dom Bosco.”

Segundo os relatos, não havia separação onde eram sepultados os militantes assassinados e os indigentes de verdade. “As quadras I e II da gleba I foram os primeiros lugares destinados para enterro de indigentes”, disse.

Não havia uma vala comum. Eram enterrados normalmente como indigentes. O que mudava era a forma como os corpos chegavam. Não em caminhões com cinco ou seis corpos, mas um por um. “Quando chegavam essas pessoas que chamavam de terroristas, vinha de forma diferente. Vinha um só. Acompanhado de militares, de carros oficiais. Fechavam o local e só podia entrar no cemitério depois que fossem enterrados. Isso é relato de funcionários da época”, descreveu.

De acordo com Eustáquio, os militantes vinham descritos em condições mínimas em uma certidão de óbito. O número do documento vinha gravado na perna ou outro membro da pessoa, com ‘canetão’ azul. “Alguns indigentes vinham com uma grande letra T em vermelho, no topo da página, que depois soube ser de terrorista. Registrávamos isso no livro de sepultamentos e a certidão ia para o arquivo”, relatou o ex-administrador.

“Eu não sabia que eram terroristas. Só depois em contatos com familiares e com a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Vala de Perus é que fiquei sabendo que a marcação no documento era de terrorista. Não havia nada diferente neles, além da letra T”, completou.

Eustáquio percebeu outro problema com a documentação do cemitério, que acabou chamando a atenção dele para a existência de uma vala oculta. “Eu descobri a vala porque meu levantamento dos livros de sepultados comuns demonstrou que havia exumados e reenterrados. No livro de indigente constava só a exumação. Não havia reenterro ou destinação.”

“Comecei a perguntar, mas ninguém queria falar. Eles tinham muito medo, porque ali estavam terroristas. Depois de muito tempo, fora do ambiente de trabalho, em uma pescaria com o Pedro Batista, operador da retroescavadeira, ele me conta que os ossos dos terroristas estavam numa vala perto do barranco, fora da área de sepultamentos.” Batista ainda está vivo e deve ser procurado pela comissão.

Decidido a encontrá-la, Eustáquio pegou uma sonda utilizada para procurar restos mortais ou construções enterradas e fez sondagens no solo. “Eu descobri que havia algo ali. Mas não mexi porque podia ser violação.”

Gilberto Carvalho Molina, irmão do militante desaparecido Flávio Carvalho Molina, do Movimento de Libertação Popular (Molipo), procurou por Eustáquio nos início dos anos 1980, em busca de informações. “Eu descobri que o irmão dele estava na vala, de acordo com o registro. Ele perguntou se podia mexer e eu disse que ele precisava de autorização. Ele conseguiu uma e nós abrimos coisa de um metro. Descobrimos os sacos de plástico destinados a ossos. Retiramos alguns e não tinha identificação. Ele tentou continuar, mas não foi autorizado”, contou.

A vala tinha 30 metros de comprimento, por três de profundidade e 30 centímetros de largura. Todos as ossadas dos indigentes haviam sido colocadas ali, então não era possível saber quem era quem. Junto com elas foram as dos militantes assassinados. E esse era o motivo de não haver registro nas documentações de exumação dos ossos.

A então prefeita Luiza Erundina (1989-1992) mandou abrir a vala e catalogar as ossadas. Ela selecionou a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a equipe do perito Badan Palhares para analisar o local. “Já na saída da vala recebia uma identificação e era colocada no salão de velórios, onde não tinha velórios. A Unicamp criou uma espécie de laboratório ao lado da administração para fazer as identificações. Era tudo filmado e catalogado. Ia para um saco de pano e ganhava uma nova etiqueta de identificação”, disse Eustáquio.

As ossadas foram enviadas à Unicamp, onde permaneceram durante quase 20 anos. Depois foram levadas de volta a São Paulo, para o ossário do cemitério do Araçá, que foi atacado em 3 de novembro do ano passado, logo após um ato interreligioso do Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça.

Eustáquio não soube dizer quantos dos registros de sepultamento continham a letra T, que identificava os militantes. E afirmou que os registros para arquivo eram encaminhados a uma sede da administração de cemitérios, no viaduto Dona Paulina, região central da cidade. Ele disse também não ter detalhes sobre os administradores anteriores a ele. O cemitério Dom Bosco foi inaugurado em 3 de março de 1971, quando Paulo Maluf era prefeito nomeado da capital. Segundo Eustáquio, era um local muito usado para enterros de indigentes.

“Fui o terceiro administrador. Só sei o primeiro nome dos outros. Guilhermano foi o primeiro. Rubens foi o segundo. Este tinha qualquer ligação com o João Brasil Vitta (ex-vereador e prefeito interino de São Paulo) e o Maluf. Me disseram que houve divergências políticas e ele saiu. Eu administrava o cemitério da Consolação e fui mandado para lá”, concluiu.

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