A ação casada do prefeito João Doria (PSDB) e Geraldo Alckmin (PSDB) na região da Cracolândia, iniciada no último dia 21, que tem entre seus principais eixos a internação compulsória de usuários de crack, aponta para a possibilidade de conflitos de interesses entre a política e a iniciativa privada, conforme acreditam especialistas e entidades.
No último sábado (27), o secretário municipal de Saúde, Wilson Pollara, publicou despacho em que autoriza a contratação de leitos de desintoxicação e de intervenção na crise para pacientes com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas junto ao Hospital Cantareira e Casa de Saúde São João de Deus.
Quatro dias depois, em reunião do Comitê de Coordenação Conjunta do Redenção, programa da prefeitura, e do Recomeço, do governo estadual, Pollara e o secretário estadual da Saúde, David Uip, anunciaram a criação de 290 leitos para desintoxicação, que se somarão às 3 mil vagas oferecidas pelo Estado.
O contrato firmado com o Cantareira, com duração de um ano, prevê 91 leitos, ao custo diário de R$ 230. O valor global do contrato é de R$ 7.452.012,00. O objetivo, segundo despacho publicado na página 73 do Diário Oficial do Município, é o gerenciamento e execução de ações e serviços de saúde em unidades da Rede Assistencial da Supervisão Técnica da Vila Maria/Vila Guilherme.
O valor do leito/dia, é 35% maior que o previsto no contrato com a Casa de Saúde São João de Deus. Conforme despacho, o custo é de R$ 170 para cada um dos 90 contratados pelo período entre 1º de junho de 2017 a 20 de abril de 2018. O valor total do convênio é de R$ 4.957.200,00 e o serviço previsto é de tratamento a portadores de dependência de substâncias psicoativas.
Cantareira
O Hospital Cantareira é gerido pela Organização Social SPDM, que tem como presidente do conselho administrativo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. O médico é ainda consultor técnico do Cantareira e coordenador do programa Recomeço, vinculado ao governo de Geraldo Alckmin. Além disso, Laranjeira é proprietário da Clínica Alamedas, em São Paulo.
Desconstrução
Presidenta do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo (Sinpsi) e dirigente da Federação Nacional dos Psicólogos (Fenapsi), Fernanda Magano afirma que há diversos conflitos de interesses por trás da ação na cracolândia. O primeiro deles, segundo ela, é são os interesses comerciais e imobiliários de empresários com interesses na área, com quem Doria assumiu compromisso.
Outro viés da privatização, para ela, é do atendimento, que deveria ser público. “Nós defendemos que a prefeitura investisse no fortalecimento da rede CAPS e valorizasse o Programa de Braços Abertos, que tinha uma relação inter-secretarias. E, de novo, Doria privatiza o público ao contratar essas clínicas, indo na contramão das políticas de saúde, do SUS e da construção da Rede de Atenção Psicossocial”, disse.
O agravamento dessas relações entre o público e o privado, segundo a dirigente, que tem em Ronaldo laranjeira um nome responsável pelo programa Recomeço e agora por trás do Redenção, esbarra no objetivo da abordagem terapêutica.
“Para nós, essa correlação é muito nefasta porque retira o atendimento do meio aberto, em liberdade, retira as famílias da participação do tratamento e desconstrói a rede de atenção psicossocial. E vem ainda a surpresa desse valor 35% maior no caso do Hospital Cantareira”, disse Fernanda. “A prefeitura deveria explicar melhor essa contração, e não se limitar a dizer que a diferença de preço é a diferença no atendimento. Isso tudo tem de ser comprovado”.
Fernanda ressalta outro aspecto: O fato de Laranjeira e sua equipe defenderem um processo de tratamento baseado na internação e sem a construção da redução de danos, em que o indivíduo se conscientiza do processo de tratamento. “Laranjeira defende a internação e abstinência, que a gente sabe que não funciona”.
Outra demonstração do interesse privado na política para o setor, segundo ela, é a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social ser comandada por Filipe Sabará, que há cinco anos criou a “fazenda terapêutica” Arcah, no interior de São Paulo. E o programa Redenção ser coordenado pelo psiquiatra Arthur Guerra, que também tem clínica psiquiátrica com tratamento baseado na internação.