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‘Dória, venha conhecer o De Braços Abertos’, pede secretário de saúde de SP

Secretário de Saúde na gestão Fernando Haddad (PT) e criador do programa de redução de danos “De Braços Abertos” para usuários de crack na Cracolândia, no bairro da Luz, em São Paulo, Alexandre Padilha é médico infectologista e foi Ministro da Saúde no governo de Dilma Rousseff, sendo também formulador da Política Nacional de Atenção à Saúde Mental, implantada em 2011.

Sob a iminência do fim do programa na cidade após a vitória de João Dória (PSDB) no pleito municipal, Padilha falou à Mídia NINJA sobre as referências que guiaram a construção do projeto, os resultados obtidos nos dois anos em execução e sobre os efeitos de sua descontinuidade no território da Cracolândia.

Confira:

NINJA: Quais são as principais referências do programa De Braços Abertos?

Padilha: São duas, uma a Política Nacional de Atenção à Saúde Mental, que é uma portaria do Ministério da Saúde de 2011, que cria a rede de atenção psicossocial. Ali tem as diretrizes fundamentais de uma política de redução de danos, com a ideia de integrá-lo no território.

A segunda grande referência são experiências internacionais, que lidaram com esse problema de uso abusivo de derivados da cocaína nas cenas de uso na rua. Elas são muito importantes porque uma das coisas mais decisivas que elas tinham era essa ideia da moradia para os usuários, considerando os locais que eles ficariam um ponto de referência para as ações de saúde, assistência social, trabalho e emprego e visitação dos agentes, isso sendo fundamental para o sucesso do programa.

Talvez a experiência mais acabada e mais duradoura que nós temos disso, quase 20 anos, é de Vancouver/Canadá, que aposta na moradia social mais ampla, com núcleos familiares dos mais variados possíveis, algo decisivo para um programa como esse.

Houve um papel muito importante do Fernando Haddad quando assumiu em 2013, não só de tomar a decisão de adotar políticas ousadas e com isso ser a vanguarda de toda a discussão sobre redução de danos e de políticas de drogas para o país.

Em 2013, com os recursos já disponibilizados pelo Ministério da Saúde, decidiu ouvir o que os usuários queriam. A prefeitura de São Paulo sob a liderança do prefeito, ficou 6 meses naquele território ouvindo os usuários.

Era muito importante começar por aquilo que eles estabelecessem como prioridade absoluta. Na conversa a primeira coisa que apareceu foi a moradia e o ponto de apoio a partir do qual todas as outras políticas de saúde, trabalho, emprego e assistência social iam começar a girar.

Isso foi muito importante porque criou um ambiente de integração sob o programa, articulação das políticas e de execução dos recursos de forma positiva. Toda rede de saúde é com recursos que o Ministério já havia disponibilizado.

A experiência do De Braços Abertos fez com que a gente criasse um equipamento novo chamado Ponto de Apoio que é na prática a tenda do De Braços Abertos. Também a experiência da região do Pelourinho, na Bahia, com a Universidade Federal da Bahia.

Nelas os profissionais atuam na rua em horários diferentes e têm um ponto de referência para a pessoa que está em situação de rua transitando pelo território É um grande ponto de encontro.

Estamos fazendo o movimento “Dória venha conhecer o De Braços Abertos”, porque ele falava que ia acabar com a Paulista Aberta, um dia ele foi lá visitar a Paulista, ficou impressionado e mudou de ideia. Depois falava da velocidade das marginais, foi andar de bicicleta com ciclistas na Faria Lima e mudou de ideia. Então estamos insistindo para ele ir lá, venha conhecer o De Braços Abertos, conhecer a experiência dos usuários, a construção do programa, a luta e o esforço dos trabalhadores de saúde e conhecer os dados.

Não existe programa de redução de danos em área tão vulnerável que alcançou em tão pouco tempo o resultado que nós tivemos, 88% de redução do uso abusivo de crack, 52% de retorno às famílias e 86% de pessoas aderindo ao cuidado continuado à saúde, porque não é só reduzir o uso de crack, é o cara voltar a se tratar da hipertensão, da diabetes, descobrir que estava com tuberculose ou hepatite e começar a se tratar.

São resultados muito positivos e acho que é importante ele conhecer. Nós vamos lutar até o fim para que eles não voltem atrás e não haja retrocesso, para que a política higienista nunca mais volte a aparecer em São Paulo.

A gestão Haddad no campo da saúde mental teve dois grandes marcos importantes para a cidade. Um foi a construção e os resultados do programa De Braços Abertos, e agora sua expansão.

Estamos pegando um equipamento que a gestão anterior construiu na região do Heliópolis, um espaço de internação que parecia um presídio, onde o usuário usava uniforme, ficava fechado e os profissionais de saúde não tinham contato com o usuário

Nós reformamos toda aquela estrutura e vamos inaugurar no começo de novembro o espaço novo, como o hotel do De Braços Abertos. Esse é mais que um programa de redução de danos, é um programa de ampliação de vida das pessoas. São vidas que mudaram.

O outro marco é que em dezembro a gente fecha o último hospital psiquiátrico na cidade de São Paulo e deixa a cidade livre de qualquer manicômio.

N: O território da Cracolândia já passou por diversas situações de repressão policial e ações que não surtiram efeitos. Diante desse cenário, como se deu o início do programa no local?

P: A gente contava muito com profissionais da saúde e entidades, que resistiram e estavam lá, mesmo com todas as políticas higienistas e ações desastrosas da polícia e de órgãos de gestões anteriores e do governo do estadual.

Nós temos profissionais da saúde que resistiram durante 10 anos e não desistiram de cuidar daquela população. Eles precisavam de apoio e reconstruir a esperança deles, porque o que mais acontecia era começar a ter um trabalho mais continuado e vir uma ação da polícia, uma ação higienista e alguma ação desastrosa e interromper isso.

Segundo, com um conjunto de entidades que acompanhavam essa realidade da região central e aqui a presença do prefeito foi decisiva nisso. Eles viram que ele estava ali ouvindo as pessoas. Os usuários e trabalhadores começaram a ver que tinha alguma coisa diferente do que sempre foi feito ali.

N: Muitas pessoas questionam a efetividade do programa porque o uso abusivo de drogas permanece no espaço público. A prefeitura foi muito criticada quando fez o cercadinho [espaço livre para o uso de crack no centro] e depois acabou com a iniciativa. O uso de sala segura é uma opção melhor para São Paulo?

P: Não sei se é uma solução para São Paulo. Nós buscamos estimular universidades para isso. Uma cidade como São Paulo, com os questionamentos que existiam em torno do programa, uma proposta como essa é importante que fosse realizada a partir de uma universidade, que pudesse acompanhar desde o começo os resultados dela para legitimar essa proposta.

Já foi um grande esforço e um grande enfrentamento dizer que a gente ia respeitar as pessoas. Foi muito inovador e até revolucionário, a vanguarda da redução de danos. Construir e convencer a cidade sobre uma forma de lidar com o uso abusivo de drogas no espaço da rua que não as exclui do espaço público, porque isso é excluir a possibilidade dela reconstruir seu projeto de vida.

Em certo momento desse programa, por exemplo, o Bom Prato, restaurante do governo do Estado que ficava lá bem pertinho, ia fechar, e foi feita uma reunião com os usuários.

Eles tinham duas alternativas: uma a gente comprar quentinhas e disponibilizar dentro do hotel, ou eles terem que andar um pouco mais para ir ao Bom Prato mais distante. A opção escolhida foi para ir para um lugar mais distante para poderem andar, conquistar e transitar a cidade

Então, esse foi debate bastante inovador para a cidade de São Paulo. Muitas pessoas não têm noção do quanto isso é importante para o conjunto da política do cuidado do uso abusivo de drogas, porque o DBA tem um resultado imediato em relação à redução do uso abusivo pelos usuários, das situações de violência e do próprio fluxo [nome utilizado para designar o comércio de crack], que ocupava quatro ou cinco quarteirões.

Mas ele tem um impacto muito forte que não é visível e que é difícil de medir, que é influenciar como que o resto da cidade lida com o tema do uso abusivo de drogas, como os profissionais no conjunto da rede passam a lidar com isso e como as instituições formadoras ao tratarem do tema formam mais profissionais com essa visão.

O DBA influenciou um conjunto da rede que lida com o uso abusivo de drogas, não só a Rede de Saúde Mental, mas o conjunto da rede de saúde, de assistência social, do trabalho, emprego e as instituições formadoras. Nesse sentido tem impacto maior até que os resultados para os seus beneficiários.

O próximo passo do programa é exatamente esse, continuar avaliando outras metodologias e ir aprimorando a avaliação dos dados, para que cada vez mais a gente oferte para eles mais atividades profissionais de trabalho, descentralize o programa e espalhe pela cidade como um todo. Outras regiões que tem cenas de uso como essa, então são os desafios do programa e nós vamos brigar para que não só o programa continue, mas para que possa continuar se ampliando e aprimorando.

N: Por que o preconceito é tão grande com os usuários de drogas na cracolândia?

P: Primeiro lugar pelo perfil social de quem está usando. Tem duas questões importantes: uma parte importante dos problemas de saúde de quem está no território da cracolândia não tem a ver com o crack. Tem a ver com o álcool, cigarro, sexo não seguro.

O segundo e talvez o mais importante é porque estamos trabalhando com uma população extremamente vulnerável, esquecida do conjunto da sociedade e pelos governantes. É impressionante: temos prefeitos e prefeitos que governaram essa cidade que se esqueceram desse território que fica a menos de 2km da prefeitura.

No começo do programa tínhamos um percentual de mais da metade dos homens sendo egressos do sistema penitenciário. Homens que tiveram suas vidas destruídas no sistema penitenciário e que saíram sem qualquer alternativa de projeto de vida.

São caras, rostos e histórias que uma parte da cidade gostaria de esquecer e o programa dá visibilidade para essas histórias, porque é muito importante para a gente reconstruir um projeto de vida dessas pessoas e discutir o quanto nossa cidade é excludente.

São mulheres e homens, a grande maioria negros, que mostraram que é possível superar as dificuldades quando a gente apoia a construção dos projetos de vida.

Essa é a face mais cruel das políticas de combate às drogas: pautadas na Guerra às Drogas, elas se consolidaram como política de guerra aos pobres, aos negros, aos jovens da periferia que vão para a reclusão, para as penitenciárias e Fundações Casa. São assassinados nas políticas de Guerra às Drogas no mundo inteiro.

A exclusão que existe em relação à população de rua da cracolândia e o tratamento diferente de outros com outros estratos sociais é uma expressão também de como a política de Guerra às Drogas é uma política de guerra aos pobres.

N: O programa vem avançando nos últimos anos, mas possui uma taxa de abandono de 25%. Qual é a causa disso?

P: Uma parte dessas pessoas, a maior parte, não é que elas abandonaram, é que elas superaram a situação de vulnerabilidade. 52% das pessoas retomaram o contato com suas famílias. Parte de quem sai é porque superou e voltou a trabalhar, para sua família ou para a sociedade.

É importante deixar claro que não é necessariamente um abandono, é uma saída do programa, uma saída pela porta da frente. Quando a gente compara os resultados gerais do programa e avalia a vulnerabilidade daquele público, vê um resultado extremamente positivo, até mais do que se imaginava quando começou o programa.

Era um programa que se salvasse uma vida, já teria sua justificativa, mas ele fez com que 88% reduzisse o consumo de crack, pessoas que usavam às vezes de 90 a 100 pedras por dia, por 10, 11, até 12 horas sob efeito da droga, reduzissem isso fortemente. Alguns até continuam fazendo uso, mas de forma que permita trabalhar, aprender uma profissão e conviver com outras pessoas.

N: O programa De Braços Abertos tem um diálogo com o programa Recomeço?

P: O tempo todo, mas são abordagens diferentes. As motivações e as realidades que fazem uma pessoa fazer uso abusivo de drogas são muito diversas, então necessariamente você precisa ter modos diferentes de cuidar de realidade que são muito diferentes.

O que não é aceitável nesses modos diferentes é existir qualquer tipo de violação aos direitos humanos. É importante a gente entender que o De Braços Abertos não é a única forma de lidar com o uso abusivo de drogas. Ele é a melhor forma para aquela realidade de cena de uso na rua, alta vulnerabilidade e histórico de políticas desastrosas e higienistas anteriores.

Não significa que todas as pessoas têm que participar de um programa como esse. Você tem programas importantes que ajudam a pessoa a sair do uso abusivo de drogas como o atendimento ambulatorial nos CAPS, pessoas que continuam trabalhando, atendimento ambulatorial e eventualmente internações para desintoxicação.

Não tenho dúvida nenhuma que o De Braços Abertos é mais econômico e mais eficaz, e os resultados são melhores, o Recomeço inclusive a gente nunca viu os resultados.

N: A cracolândia não é o único local de consumo abusivo no espaço público na cidade. A prefeitura mapeou pelo menos outras seis. Como isso tem sido monitorado e quais as ações nos locais?

P: Um ponto é importante frisar: não existe nada parecido com a cracolândia na cidade de São Paulo. Não existem outras cracolândias, o que existia no território da Luz era além de um fluxo enorme de pessoas, uma concentração de situações específicas de vulnerabilidade com histórico recorrente de operações desastrosas. Isso não existe em nenhum outro lugar na cidade de São Paulo.

Mas existem vários outros locais onde existe a cena de uso na rua. Nós já estamos trabalhando nessas regiões de forma a integrar a saúde, a assistência social, trabalho e emprego. Isso vai ser um debate na transição, que é levar para todas essas outras regiões a ação específica do acesso à moradia, do núcleo familiar mais diverso possível e um ponto de referência para os trabalhos das equipes, e a garantia desse beneficiário ter uma bolsa de qualificação profissional.

A gente programou essa descentralização e deixou tudo pronto, e vamos insistir em mostrar para o prefeito eleito para que continue. É muito importante ela continuar por dois motivos: primeiro para cuidar das pessoas onde elas estão, não esperar que elas venham para a região da cracolândia. Segundo que com esse cuidado vamos descobrir outras formas de articulação entre saúde, assistência social e trabalho e emprego e cultura em territórios diferentes, então acho que isso vai ser muito positivo.

Várias das ações que a gente faz hoje no território da Luz, também realiza em Cidade Tiradentes, na Zona Leste, Jardim São Luiz, na Zona Sul, Vila Nova Leopoldina, na Zona Oeste e Brasilândia, Zona Norte.

N: 40 ONGs assinaram um manifesto contra o fechamento do programa. Como você enxerga essa mobilização?

P: A frente estadual de luta antimanicomial e ONGs se prepararam para ir à defensoria pública. Te digo uma coisa, foi uma situação de muito sofrimento visitar o território da luz, os profissionais de saúde e os usuários um dia após a eleição. A fala de vários deles era de desespero, sensação de que aquilo que estava sendo uma ponte de esperança para eles estava sendo demolido.

A gente sabe e fica muito preocupado com o que foi apresentado pelo prefeito eleito de várias políticas para na cidade de São Paulo que podem voltar para trás e com isso prejudicar a vida de muita gente. Não tenho dúvida nenhuma de que se acabarem com o De Braços Abertos o público que está lá vai ser o mais prejudicado de todos os retrocessos que o Dória pode representar.

Essas são pessoas que já tinham desistido da possibilidade de reconstruir uma nova vida e viram no De Braços Abertos essa possibilidade. Nós vamos lutar até o fim para que essa oportunidade de um novo projeto de vida continue para os beneficiários.

N: Caso realmente acabe com o programa, como você prevê o território da Luz no fim do primeiro ano de mandato Dória?

P: Será um profundo retrocesso para o território da Luz, porque talvez a coisa que o tráfico mais queira para aquele território é destruir a presença de profissionais e entidades que mostrem que é possível viver de forma diferente.

O tráfico não está preocupado com a rotatividade, quando uma entidade, uma missão ou o programa Recomeço interna uma pessoa e depois de um ano ela volta para lá. A maior preocupação do tráfico é a presença de profissionais, de estado e de políticas sociais que mostram que é possível ter uma vida diferente naquele território.

As políticas anteriores de higienização não reduziram o uso abusivo da população e espalhou cracolândias pela cidade como um todo.

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