Sorocaba registrou centenas de mortes em manicômios nos últimos anos. Hoje, a cidade corre o risco de repetir os erros ao ver o novo modelo de saúde mental ser administrado por ex-donos de manicômios
“Parece um hotel cinco estrelas”. É assim que Wilson Abramosviz, o Pitico, 62 anos, define seu novo lar ao receber a reportagem de CartaCapital em sua residência terapêutica. Pitico vive em uma casa com mais nove ex-internos de diversos hospitais psiquiátricos de Sorocaba, interior de São Paulo. Há um ano na residência, ele não tem sobre o que reclamar, especialmente levando-se em conta sua situação anterior: “A ala em que eu morava era um pavilhão com 90 pessoas, com quartos dos dois lados do corredor. Era algo meio prisão”.
A “prisão” a que Pitico se refere é o Hospital Vera Cruz, o maior manicômio com leitos públicos do Brasil, com capacidade para 512 pessoas. Interno por 13 anos no hospital (hoje sob intervenção da prefeitura de Sorocaba), Pitico vê na residência terapêutica a chance de recomeçar sua vida, desta vez, com mais autonomia e liberdade. Esta expectativa por um recomeço, no entanto, está em risco, alerta a Frente de Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas). “Com os antigos donos de hospitais assumindo o controle das residências terapêuticas e dos centros de atendimento, há um risco do pensamento manicomial seguir ativo no tratamento dos pacientes”, afirma o grupo.
A situação de Sorocaba é emblemática dentro do quadro nacional: lá está em curso a substituição de manicômios por instituições mais avançadas, como os Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) ou as casas terapêuticas. A iniciativa corre o risco de fracassar por uma teia que envolve relações políticas, verbas milionárias e uma cultura atrasada de tratamento de pacientes psiquiátricos.
Para piorar, a transparência anda em baixa na rede pública de saúde local: por três semanas CartaCapital tentou uma autorização para visitar a instituição mas, depois de muitas idas e vindas e depois de chegar inclusive a prometer acesso ao Vera Cruz, a Prefeitura mudou de ideia e barrou a reportagem.
Interditado desde 2012 após denúncias de abuso aos Direitos Humanos, o Hospital Vera Cruz está em processo de desinstitucionalização. Ou seja, todos os pacientes psiquiátricos internados devem voltar ao convívio social e ser tratados em estruturas extra-hospitalares, dormindo, contudo, em suas residências. No caso de Sorocaba e região, o documento que oficializa esse processo é um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2012 entre o Ministério Público e as prefeituras de Sorocaba, Salto de Pirapora e Piedade. A exigência é que, em um prazo de três anos, prorrogável por mais um, todos os manicômios de Sorocaba e região sejam fechados.
Antes da interdição o Vera Cruz chegou a registrar 46 mortes, no período entre 2006 e 2007, uma a cada 15 dias. Se considerada a taxa de óbitos nos hospitais das cidades vizinhas, no mesmo período, o número sobe para uma morte a cada três dias, aponta um levantamento da frente antimanicomial coordenado pelo professor de psicologia Marcos Garcia, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Na época, uma Comissão Especial, presidida pelo vereador Izídio Correia (PT), investigou e constatou as irregularidades nos manicômios.
O Vera Cruz hoje é administrado pelo Instituto Moriah, que recebe R$ 1,8 milhão do SUS para a função. “Algumas coisas mudaram na região, mas os manicômios ainda são rentáveis”, afirma o Flamas.
Hoje, Pitico e outros 400 pacientes da cidade estão fora de manicômios graças à lei da Reforma Psiquiátrica. Outros 600 estão sob processo de desinstitucionalização.
Aprovada em 2011, a Reforma Psiquiátrica prevê a substituição progressiva de hospitais psiquiátricos de grande porte por uma rede substitutiva, em que o paciente é tratado em instituições extra-hospitalares. O problema é que em Sorocaba, uma das últimas cidades a aceitar a reforma, os donos dos antigos manicômios assumiram o controle da nova rede de assistência de saúde mental e, muitas vezes, reproduzem o tratamento manicomial, considerado inadequado.
Prestação de contas irregular
Segundo a lei, o tratamento de pacientes mentais na rede pública se dá nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), que consistem em casas. Nesses locais, a estratégia de trabalho principal são grupos terapêuticos. Os pacientes chegam pela manhã e são dispensados ao longo do dia para voltar para onde moram. Mesmo em caso de surtos, os pacientes podem ficar internados por, no máximo, sete dias.
Sorocaba, como outras cidades Brasil afora, passa por um processo de adaptação ao novo modelo. A cidade possui três Caps infantis e oito para adultos. Destes oito, dois pertencem à prefeitura e cinco são de donos de antigos manicômios.
“O Caps é uma sala de 20 m² com uma estante com meia dúzia de livros, um baralho e uma televisão “, relata Pitico, ex-interno por problemas com álcool, ao descrever o Caps III. O relato evidencia a continuidade de problemas típicos dos manicômios presentes em muitos Caps, a falta de atividades culturais e de ações de inserção social, conforme previsto por lei.
Uma auditoria finalizada em janeiro deste ano pediu o rompimento do contrato de administração com a organização Instituto Moriah, que administra Caps na região, por constatar a estrutura precária do Hospital Vera Cruz, o número de profissionais abaixo do exigido por lei, a comida armazenada de forma imprópria e ainda a prestação de contas irregular.
O Instituto Moriah, que administra o hospital Vera Cruz, foi procurado mas não se pronunciou.
Mortes e maus-tratos
Até 2012 Sorocaba tinha quatro manicômios em funcionamento –hoje restam dois. Eles faziam da cidade a maior do País em número de leitos psiquiátricos por habitante. Na época eram oferecidos 2,3 leitos para internação para cada mil pessoas, número quase cinco vezes acima do que determina a legislação brasileira (0,45 leitos para mil pessoas).
Sorocaba, contudo, nunca foi referência em saúde mental. Pelo contrário. Entre 2006 e 2009 morreram 233 pessoas nos manicômios da cidade. A idade média dos mortos era de 43 anos, e um quarto dos óbitos se deu entre pacientes de 17 a 29 anos. Muitos morreram no inverno, por fata de condições para suportar baixas temperaturas.
Houve uma redução de óbitos, mas as mortes seguem acontecendo. Em junho de 2013, por exemplo, um paciente morreu após não resistir às agressões de outro interno. Em novembro do ano seguinte, a história se repetiu, embora o hospital tenha inicialmente registrado boletim de ocorrência alegando morte decorrente de “queda da própria altura”.
A causa das mortes, em última instância é a mesma, conforme apontam diversos relatórios: o baixo número de profissionais.
A última morte, por exemplo, ocorreu dias depois do Hospital Vera Cruz promover uma demissão em massa. “Quando dava briga tinha que ligar para vir dois ou três da outra ala para segurar porque eram só dois funcionários para cuidar de 50 internos”, lembra Pitico.
Interesses políticos
Demissões em massa, aquisições de Caps por antigos donos de manicômios e a falta de responsabilização pelas mortes e maus-tratos têm uma explicação, segundo a frente antimanicomial: interesses políticos.
“Os donos dos manicômios possuíam muito poder econômico e político, e sócios das instituições assumiam cargos públicos”, afirma o grupo. “Assim, conseguiram formar essa “fortaleza manicomial” que durou até 2011. A nova estratégia é se manter no negócio comprando Caps, mantendo boas relações com o poder público e demitindo a equipe anterior, proveniente de Campinas, reste sim um polo de referência sobre saúde mental.
A fortaleza manicomial a que o Flamas se refere encontrava apoio no Ministério Público de Sorocaba e na Prefeitura. O promotor Jorge Marum, responsável na época por apurar as denúncias de maus-tratos no hospital, desqualificou o relatório do Flamas e sugeriu o engavetamento do caso, dizendo que “não havia nada de errado com os hospitais locais”.
O médico Milton Palma foi secretário da saúde do município entre 2005 a 2011. Durante os seis anos à frente do cargo, Palma era sócio de três hospitais manicomiais da cidade. Após a informação vir à tona, o secretário foi exonerado.
Entre 2005 e 2013 o prefeito de Sorocaba foi Vitor Lippi, hoje deputado federal pelo PSDB paulista. Diante das denúncias de mortes e conflitos de interesse dentro da secretaria de saúde, Lippi defendeu publicamente seu secretário e qualificou as denúncias do Flamas como “uma maldade”.
Com data marcada para os manicômios deixarem de existir, persiste a ameaça de se reproduzir a lógica manicomial em outros espaços que tomem seu lugar, como os Caps. “O problema não é apenas o espaço físico. Sem uma orientação ética e política para acabar de vez com o manicômio, suas práticas podem ser reproduzidas e preservadas em outros dispositivos de saúde, continuando a anular a autonomia e liberdade dos sujeitos”, afirma o grupo.
Brasil sem manicômios
Hoje existem 25.988 leitos em 167 hospitais psiquiátricos no País. Não há prazo para todos os hospitais serem fechados. No entanto, o Ministério da Saúde, a fim de estimular a Reforma Psiquiátrica, reafirma a política de reduzir ano após ano os investimentos nessas instituições, transferindo os pacientes para a rede substitutiva, que não pressupõe internação.
Nos anos 90, um total de 85% do orçamento de saúde mental ia para os hospitais psiquiátricos. Em 2010, esse valor foi de 35%, e hoje está em 20,61%.
O governo federal afirmou em nota que “dentro do propósito de desinstitucionalizar e garantir a livre circulação das pessoas com transtornos mentais na sociedade, o Ministério oferece, ainda, o auxílio-reabilitação psicossocial De Volta Para Casa repassado a pacientes que tenham permanecido em longas internações psiquiátricas”. A bolsa é de R$ 412 mensais para 4.332 pacientes com transtornos mentais que receberam alta hospitalar após um longo histórico de internação psiquiátrica.
A Reforma Psiquiátrica, em curso no Brasil, já foi adotada em quase todos os países europeus, sendo o modelo italiano o referencial para as ações brasileiras.
Ao menos na região de Sorocaba, o avanço ainda está longe de se concretizar.