A raiz do crime de ódio, claramente, é o preconceito. Os criminosos não aceitam as diferenças, sejam elas relacionadas à raça, religião, orientação sexual, deficiências físicas ou mentais, nacionalidade ou identidade sexual
Marroni levou 18 facadas. Samilly foi baleada, assim como Gaby. Hérica morreu de tanto apanhar e ser jogada do alto de um viaduto. Depois de agredida com murros, pedradas e pauladas, Dandara levou dois tiros.
Essas são algumas das 54 transexuais brasileiras assassinadas até maio de 2017. Mais do que estatísticas, são seres humanos, com vidas, sonhos, irmãos, mães, pais e até filhos.
Esta reportagem encontrou algumas mães de vítimas da transfobia. Uma delas é Patricia dos Santos Pereira, de Gravataí (RS), de 36 anos. Ela perdeu a filha Gabrielle Marchiori, de 19. O corpo da jovem foi encontrado em chamas.
— Meu sofrimento é pela crueldade da forma como ela foi morta. Se tivessem me dito que ela tomou um tiro e morreu, seria mais fácil, não ter de lidar com a perda, mas aceitar. Eu sofro muito a ausência dela e o meu coração está envenenado com ódio, porque eu penso como um ser humano consegue chegar ao ponto de queimar uma pessoa, carbonizar uma pessoa, sendo que aquela pessoa tem uma mãe. Eu dizia para as amigas dela: “Nunca esqueçam, vocês têm uma mãe em casa esperando”.
Patrícia conta não ter tido dificuldades com a decisão do até então Gabriel de mudar o gênero. A maior preocupação, porém, era justamente com a segurança da filha. Antes do assassinato, Gabrielle sofreu outras formas de violência, inclusive com facadas.
— A gente tinha muita dependência uma da outra. Ela podia ir para o mundo, as festas dela, as viagens dela, mas sempre voltava para o meu colo — afirma.
Já Francisca de Vasconcelos é mãe da transexual Dandara Kathelin. Dandara morava com a mãe, mulher simples da periferia de Fortaleza que se refere à filha como “ele”. E não busca muitas explicações para a transformação de Cleilson em Dandara. Aos 42 anos, sua filha foi agredida e levada até uma rua deserta, onde atiraram nela. O ato foi gravado e ganhou a internet. Francisca decidira não ver.
— Mas, uma ou duas semanas depois que o crime tinha acontecido, fui almoçar na minha cama e assistindo 190 [programa policial de TV]. Aí eu vi meu filho sentado no meio do sol quente no calçamento, esperando socorro, algum filho de Deus para socorrer ou então esperando a morte. Bem calmo, sem nenhuma reação. Cada pancada que ele pegava na cara ou na cabeça ele passava a mãozinha. Aí, pronto. Eu fechei a televisão. Não vi mais nada.
Ódio
Gabrielle e Dandara foram vítimas do chamado crime de ódio. Assassinadas por serem diferentes. Brutalmente mortas somente por serem pessoas que não se identificam com os corpos com os quais nasceram. Ou seja, se reconhecem como sendo do sexo oposto.
A raiz do crime de ódio, claramente, é o preconceito. Os criminosos não aceitam as diferenças, sejam elas relacionadas à raça, religião, orientação sexual, deficiências físicas ou mentais, nacionalidade ou identidade sexual.
— Esses crimes passam por esse ódio secular que azeita nossas relações sociais. Combatê-lo é uma tarefa da cidadania, que a gente precisa enfrentar com um grande projeto de educação — afirma o coronel da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Íbis Silva Pereira. Ele diz que tentou conscientizar a corporação, na academia de polícia.
Como se vê, quem comete esse delito odeia quem é diferente, e acha que tem o direito de agredir e matar. Quando esse ódio é dirigido aos transexuais, há a transfobia.
Para a psicanalista Almira Rodrigues, a raiva está relacionada ao pavor do diferente. A profissional afirma que parte desse comportamento belicoso é ensinado, tem raízes culturais. O agressor aprende a ser assim.
— Por outro lado, há um elemento constitutivo de pessoas que é uma ação perversa mesmo. A pessoa não consegue lidar com as diferenças, então, precisa matar. Porque não é só discriminar, ela precisa extirpar, aniquilar o outro. Um nível interno de ódio muito grande.
Para o professor de psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Luciano Elia, um dos motores do ódio está ligado a questões íntimas do agressor.
— A primeira coisa a dizer é que a pessoa que agride ou mata tem muito a ver com esse alvo da agressão, ela não é alheia.
Além disso, acrescenta, a hostilidade é um reflexo do momento atual da humanidade contra os “indesejáveis”.
— O alvo não é exclusivamente, e nem talvez privilegiadamente, os transexuais. É um caso particular de um ódio maior ao usuário de droga, de crack, à população pobre e negra que comete transgressão ou crime e a sociedade está querendo sempre rechaçar, senão exterminar — complementa.
Em julgamento de 2015, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso também apontou o estigma como fonte de violência.
— O Brasil é o líder mundial de violência contra transgêneros. Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2014, foram registrados 1.731 homicídios.
Violência
O ápice da violência contra as pessoas é o homicídio, mas há muitas outras formas de agressão. A secretária de Comunicação Social da Rede Nacional de Pessoas Trans e professora da rede pública de Minas Gerais, Sayonara Nogueira, garante nunca ter sido discriminada por alunos ou pais.
— Fui sempre convidada a almoçar na casa dos alunos, para bailes de debutantes — diz a professora.
Mas, no mesmo ambiente escolar, Sayonara viveu agressões. Quando escolhida para diretora da escola, foi acusada de assédio por um aluno. As investigações provaram que a denúncia era falsa e o estudante confessou ter sido pressionado pela antiga direção do colégio a delatar injustamente a professora.
Outra agressão aconteceu em uma rua de Uberlândia (MG), quando Sayonara foi abordada por três homens.
— Eu estava voltando de uma casa noturna às 11h da noite. Três rapazes mexeram comigo, achando que eu era uma mulher cis. Mas, quando eles perceberam que era trans, me agrediram, me arrastaram por cerca de 100 metros no asfalto pelo cabelo e levaram a minha bolsa com todos os pertences — relata.
Cis ou cisgênero é a pessoa cujo sexo designado ao nascer equivale ao seu sentimento de gênero.
O preconceito, somado às agressões físicas e emocionais, deixa marcas profundas nas pessoas. A expectativa de vida das travestis e das mulheres trans é de 35 anos. A média nacional, segundo dados do IBGE é de 75,5 anos. O tema é objeto de estudo do psicólogo Pedro Sammarco, autor do livro “Travestis envelhecem?”.
— Muitas acabam se envolvendo com drogas, com a noite, com os perigos da noite, o preconceito, violência. É difícil chegarem aos 30 e poucos anos. Quando conseguem, é um grande feito de sobrevivência — diz.
Legislação
Se parece certo que o respeito às diferenças virá com educação para a cidadania, uma legislação mais adequada também tem uma função importante no combate à homofobia. Para Tatiane Aquino, presidente da Rede Nacional de Pessoas Trans e conselheira nacional de combate à discriminação LGBT, o Estado precisa cumprir a sua parte.
— Em países vizinhos há princípios de inclusão ainda incipientes no Brasil. Na Argentina, a lei já garante a alteração do prenome para as pessoas trans, mas o Brasil ainda patina nesse tipo de legislação — afirma. Para Luciano Elia, a reinvindicação do nome social é legítima.
O psicanalista diz que a possibilidade de o indivíduo decidir como vai ser chamado é fundamental para que a pessoa trans alcance a sensação de paz. Paz que faltou à Gabrielle Marchiori. Segundo sua mãe, um dos motivos pelos quais a filha abandonou a escola foi porque não queria ser chamada de Gabriel pelos professores.
A professora Sayonara viveu situação similar. Apesar de já ter feito a transição para o gênero feminino, os colegas e diretores da escola onde trabalhava insistiam em se referir a ela com o nome do registro civil. Era uma mulher chamada por um nome de homem. O caso dela chegou ao conhecimento do então governador de Minas Gerais e atual senador Antonio Anastasia (PSDB). Ele baixou uma norma, em 2011, que reconhecia no estado o nome social.
— Estamos diante da realidade do século 21. Temos que perceber que, de fato, a sociedade avança e que as pessoas são livres, sempre em um regime democrático. Por isso, a medida me pareceu à época muito acertada e se estendeu pelo Brasil afora, tornando-se hoje uma coisa praticamente rotineira — lembra.
Portarias semelhantes foram editadas em outros estados, em alguns municípios e chegaram ao governo federal. Em abril do ano passado, pouco antes de ser afastada da Presidência, Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.727/2016, permitindo o uso do nome social de transexuais e travestis na administração pública da União. O nome social deve estar nos documentos oficiais, como crachás, fichas e publicações do Diário Oficial da União. Nos formulários e sistemas de registro de informações também devem constar o campo “nome social”.
Documentos
Está em análise no Senado um projeto de Marta Suplicy (PMDB-SP) que permite que transexuais troquem de nome em documentos de identidade. Se a proposta (PLS 658/2011) virar lei, a mudança será em registros, como carteira de identidade, título eleitoral, certidão de nascimento e passaporte, mesmo em casos que não haja mudança cirúrgica de sexo.
— A pessoa ia embarcar num avião e o documento era de João da Silva, mas se via uma mulher e não a deixavam embarcar. Quem nunca sofreu isso ou teve contato com pessoas nessa situação não consegue captar a dimensão do horror que é você estar num corpo que é estranho ao que você se sente — justifica a senadora.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu em maio que uma pessoa transexual pode fazer alteração de seu sexo no registro civil, ainda que não tenha feito a cirurgia. A decisão serve, por exemplo, para orientar a análise de casos em tribunais inferiores. A palavra final, entretanto, deve ser dada pelo STF, que analisa desde 2009 uma ação sobre o tema.
Criminalização
Também está no Senado uma sugestão popular (SUG 05/2016) que equipara a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ao crime de racismo. A proposta recebeu o apoio de mais de 20 mil pessoas e está na lista para ser examinada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). O relator é Paulo Paim (PT-RS).
A presidente da CDH, Regina Sousa (PT-PI), está certa que essa é uma luta que precisa de apoio institucional.
— É uma coisa terrível, uma brutalidade que não se justifica. Uma pessoa dessa não pensa que pode ter um filho que vá ter uma orientação sexual diferente. Vai matar o próprio filho?
Na Câmara, um projeto da deputada Maria do Rosário (PT-RS) pode aumentar as penas para os delitos de ódio. Pelo PL 7.582/2014 (número na Câmara), quem agredir, matar ou violar a integridade de outra pessoa por causa de preconceitos será condenado por crime de ódio, com a pena aumentada.
— Estando na mesma lei, vamos preservar o direito à religião, tanto quanto o direito à livre orientação sexual — diz.
Outra reivindicação das pessoas trans é relacionada ao uso de banheiros públicos. O Plenário do STF começou a examinar no final de 2015 um processo movido por Ama Fialho. Ela foi impedida de entrar num banheiro feminino de um shopping. De tão nervosa que ficou, defecou nas calças. Por isso, pedia indenização. O relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, votou favoravelmente à transexual e condenou o shopping a pagar R$ 15 mil reais a ela.
O ministro Edson Fachin seguiu o voto do relator e ainda aumentou a indenização para R$ 50 mil. No entanto, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux.
Cirurgia
Fazer a operação de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é outro desejo da comunidade trans. Desde 2008, o procedimento é oferecido pela rede pública, mas Sayonara diz que a fila é enorme e ela aguarda sua vez há nove anos. Na rede particular a operação pode custar até R$ 20 mil.
— Eu vivo à base de antidepressivos e ansiolíticos porque não consigo me olhar de frente no espelho. A alma dói. É sobretudo uma questão de alma — diz.
Pelo Artigo 6º da Constituição, são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Só que isso não parece valer para os transexuais.
— A maior parte dessa população só tem como alternativa de sobrevivência a prostituição, porque, com o preconceito e a discriminação, elas são ceifadas desde jovens, numa idade crucial da sua vida, da educação, do trabalho, da família — afirma Tatiane Aquino.
O ministro Barroso acrescenta:
— E vida adulta não proporciona mais facilidades para os integrantes desse grupo que têm imensa dificuldade de conseguir trabalho formal.