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Fechando os olhos para denúncias, Brasil investe milhões em comunidades terapêuticas

O governo federal está investindo R$ 3,74 milhões em contratos com comunidades terapêuticas denunciadas por violações de direitos humanos em relatório conjunto do Ministério Público Federal (MPF), Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

As comunidades terapêuticas são espaços de tratamento para dependentes químicos e seu principal método de trabalho é a abstenção completa do uso de drogas, o isolamento de seus pacientes e o trabalho espiritual. Elas ganharam mais força e recursos públicos após a sanção de novas regras para a política de drogas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).

O Ministério da Cidadania, que assumiu a gestão das comunidades terapêuticas no governo de Bolsonaro, pretende investir R$ 153,7 milhões por ano para ter 10.883 vagas em 496 destas associações.

O Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado em junho de 2018, encontrou problemas nas comunidades terapêuticas que posteriormente foram contratadas pelo governo federal. Todos os 11 peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que participou da elaboração do relatório, foram recentemente exonerados por decreto de Bolsonaro.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2017 uma nota técnicacom um raio X das comunidades terapêuticas no Brasil: 82% delas têm vínculo com igrejas e organizações religiosas, 89% têm a leitura da Bíblia como uma atividade diária e em 55% delas a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória.

A Sputnik Brasil visitou uma comunidade terapêutica que tem o perfil médio desses espaços: forte presença religiosa e controle rígido dos comportamentos.

Na Rua do Sanatório, uma comunidade terapêutica em Madureira
No Rio de Janeiro na década de 1880, o Hospital de Nossa Senhora das Dores da Santa Casa foi o primeiro da cidade a ser construído para os tuberculosos. Nas proximidades foi instalada a Igreja Santo Sepulcro. Antes da descoberta dos antibióticos, a tuberculose era quase uma sentença de morte e o tratamento consistia no isolamento dos doentes.

O caminho para o hospital ficou conhecido como Rua do Sanatório e hoje abriga uma das sedes da Comunidade Católica Maranathá — dona de um contrato de R$ 351.669,00 com o governo federal para garantir 25 vagas para tratamento de dependentes químicos de janeiro à dezembro de 2019.

Assim como a Santa Casa, a comunidade terapêutica também aposta no isolamento, mas dessa vez para superar o vício em drogas. Instalada em terreno cedido pela Igreja Santo Sepulcro, o local em Madureira é uma das 11 “casas de missão” da Maranathá. Todas elas, com exceção de uma em Tocantins, Minas Gerais, ficam no estado do Rio de Janeiro.

Em Madureira, são 50 vagas exclusivas para homens, enquanto toda a rede tem capacidade para atender cerca de 300 pessoas. Há, também, uma unidade apenas para mulheres.

Em uma sala com fotos do Papa Francisco e do Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani Tempesta, o psicólogo da unidade, Marcos Henriques Matos de Souza, explica que cerca de 90% dos usuários da unidade de Madureira são moradores de rua. “A grande maioria não tem uma droga específica, é o que chamam, na conversa popular deles, de ‘total flex’, usa o que pode comprar no momento”, diz Souza.

São três atividades religiosas por dia, também são realizadas terapias de grupo e discussões. A espiritualidade, afirma Souza, é um dos “braços do trabalho” na Maranathá.

Os horários para refeições são fixos, assim como o período em que é permitido assistir televisão. Os próprios usuários fazem a limpeza e preparam as refeições. O psicólogo também diz que o ciclo recomendado é de 9 meses, mas que os usuários são livres para sair antes, caso prefiram.

“Mas tem questões que demandam tempo para ser avaliadas, para mudar, questão de defeito de caráter, questão psicológica, os vínculos sociais e familiares. Não tem como em pouco espaço de tempo resolver tudo”, diz.

Souza diz que a comunidade terapêutica se mantém com doações e atividades para arrecadar fundos, como brechós.

Defensor das comunidades terapêuticas diz que há ‘viés’ em relatório
Associação Nova Criatura, Caverna do Adulão, Esquadrão da Vida, Jovem Maanaim, Nova Jerusalém e Salve a Si foram comunidades terapêuticas contratadas em dezembro de 2018 pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública com dispensa de licitação para fazer o tratamento de dependentes químicos ao longo de 2019. Elas também são alvos de denúncias no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas.

A contratação foi realizada ainda durante a gestão de Michel Temer (MDB).

A Sputnik Brasil entrou em contato com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública para entender os critérios da contratação e questionar sobre a escolha de associações que já foram denunciadas por violar direitos humanos, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

Na Jovem Manaaim, há a denúncia de que um idoso de 62 anos teve seu colchão retirado porque decidiu não participar dos cultos. Já na Salve a Si, não há funcionários registrados e os profissionais atuam como voluntários, recebendo apenas uma “ajuda de custo”.

O psicólogo e membro da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) Pablo Kurlander diz que violações de direitos humanos ocorrem em associações que se dizem comunidades terapêuticas “mas não reúnem as características básicas”. Sobre o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, o membro da Febract diz que a pesquisa tem um “viés” e parte da “prerrogativa de encontrar problemas”.

Já o professor do departamento de Psicologia da Unesp Osvaldo Gradella acredita que há uma continuidade entre os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas brasileiras porque elas trabalham com “a mesma lógica de punição”. Gradella também ressalta que o problema da dependência química está ligado ao quadro econômico e seus 13 milhões de desempregados.

“As pessoas não estão na rua porque usaram drogas, elas estão na rua e na rua elas usam drogas”, diz o professor da Unesp à Sputnik Brasil.

Gredella afirma que não há evidências científicas para justificar a aposta nas comunidades terapêuticas como método de tratamento para os dependentes químicos.

O psicólogo e membro do CFP Paulo Aguiar também enxerga uma continuidade dos manicômios nas comunidades terapêuticas e afirma que elas criam uma “falsa impressão” de que podem resolver o problema da dependência química ao isolarem seus pacientes fisicamente das drogas por um certo período de tempo.

“O problema é que isso é uma ilusão, a vida se dá no dia a dia das cidades, na rotina da minha realidade, do meu território, a minha rua, o meu bairro, onde eu vivo”, diz Aguiar à Sputnik Brasil. “Quando o sujeito volta, o ambiente continua o mesmo. A rua dele, a casa, as relações que ele estabeleceu, a realidade continua.”

Em sua nota técnica, o IPEA afirmou existirem cerca de 2 mil comunidades terapêuticas no Brasil. Ao todo, o governo federal mantém contratos com 496 comunidades terapêuticas. Ou seja, recursos da União financiam uma em cada quatro comunidades terapêuticas no Brasil.

O setor conta com o investimento de líderes religiosos e políticos. O pastor e apresentador de televisão Silas Malafaia tem participação na comunidade terapêutica “O Semeador”. Já o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) é o responsável pela Fundação Doutor Jesus e tem contratos com o governo da Bahia para o tratamento de dependentes químicos.

Em abril deste ano, foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas e Apac’s, com a coordenação do senador Eros Biondini (Pros-MG). O Rio de Janeiro tem iniciativa similar com a Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas no Estado do Rio de Janeiro, presidida pelo deputado estadual Márcio Pacheco (PSC) e também criada em 2019.

“Não se trata de ser contra as comunidades terapêuticas, mas o assunto se torna um debate público quando há investimento de dinheiro público nesse tipo de tratamento”, diz à Sputnik Brasil a socióloga e coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) Nathália Oliveira.

Para a socióloga, combater a dependência química também passa por investimentos em moradia e geração de renda. Ela ressalta que as comunidades terapêuticas terão um impacto maior na saúde de uma parcela da população:

“Quem será mais afetado é quem precisa de serviço público. Hoje quem frequenta o Centro de Atenção Psicossocial [CAPS] é quem não pode pagar por um cuidado no sistema privado, então é a população mais pobre do Brasil, e no Brasil a pobreza tem cor: a população pobre em sua maioria é negra, é esse público que vai acessar a comunidade terapêutica.”

Fiscalização que nunca sai do papel
Em junho deste ano, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao Ministério Público Federal (MPF), pediu informações ao Ministério da Cidadania e ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública sobre a fiscalização em comunidades terapêuticas.

Na resposta, a pasta da Justiça disse ter realizado 206 fiscalizações presenciais de junho de 2017 até dezembro de 2018. Já o Ministério da Cidadania afirmou não ter feito nenhuma fiscalização presencial em comunidades terapêuticas em 2019 por conta da “necessidade de dedicação à elaboração de ferramentas de planejamento para a efetiva implementação da política pública”.

“Sem a fiscalização, você não tem como garantir que os direitos das pessoas dentro das comunidades terapêuticas estão sendo garantidos. Todo serviço precisa ter, no mínimo, um mecanismo de monitoramento contínuo para garantir o bom uso dos recursos públicos. Esse dinheiro está sendo usado para gerar algum resultado”, afirma a coordenadora do grupo de trabalho Saúde Mental da PFDC, Lisiane Braecher, à Sputnik Brasil.

O ministro da Cidadania, Osmar Terra, é responsável pela lei que alterou a política de drogas e conferiu maior destaque às comunidades terapêuticas. Ele apresentou o projeto de lei em 2013, quando ainda era deputado federal.

As regras para a fiscalização das comunidades terapêuticas foram estabelecidas por meio da Portaria n° 562, de 19 de março de 2019, do Ministério da Cidadania. Apesar da existência das regras legais, a procuradora Braecher ressalta que ela nunca “saiu do papel” e diz desconhecer estudos profundos que demonstrem a eficácia das comunidades terapêuticas.

“Parece um local muito lucrativo [as comunidades terapêuticas], porque você tem pouquíssimos funcionários e [é preciso] até entender porque o Ministério paga o valor que paga para uma comunidade terapêutica? Qual é o levantamento que eles têm sobre o custeio desses lugares para pagar esse valor?”, diz Braecher.

Segundo o Ministério da Cidadania, as inspeções nas comunidades terapêuticas começarão em agosto deste ano.

Infratores não podem voltar
Um dos usuários da comunidade terapêutica Maranathá diz à Sputnik Brasil que o espaço o salvou de uma vida nas ruas e no crime — e que “a princípio, ninguém sai antes de 7 meses”.

Folhas impressas e colocadas em murais pelo local em Madureira mostram as normas da Comunidade Católica Maranathá. Algumas das “regras de boa convivência” são o “silêncio no horário das refeições” e o horário fixo, após às 22 horas, para ser permitido utilizar os ventiladores.

As visitas para os usuários também têm regras fixadas nas paredes. Elas são permitidas nos domingos, das 13 horas às 17 horas, os itens trazidos por familiares devem ser entregues aos “responsáveis” e o uso de celulares pelos visitantes é permitido apenas com a “autorização da equipe”.

Ao lado de uma mensagem sobre o poder da espiritualidade como um “fator de proteção que contribui para a saúde e qualidade de vida”, outra folha com regras: todas as saídas devem ser agendadas previamente pela equipe técnica; caso o itinerário da saída seja alterado, o usuário poderá ter “desligamento imediato”. A última regra da lista estabelece que quem sair para receber benefícios e não voltar será “desligado” e não poderá “jamais voltar [sic] se internar no Maranathá”.

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