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Fluxos migratórios recentes já somam novos traços a São Paulo

Latinos, africanos e asiáticos começam a forjar mudanças na cultura paulistana. Sabores e cores já são notáveis pelas ruas da cidade

São Paulo – Em meio a hippies oferecendo pulseiras e brincos na Praça da República, no centro de São Paulo, senegaleses vendem miniaturas de esculturas de rinocerontes, hipopótamos e girafas. “Não tem baobá, mas tem ébano”, explica um deles, com um acentuado sotaque francês, para um cliente. A poucos metros, outro homem vende itens semelhantes, mas é queniano. Na Liberdade, tradicional reduto oriental, os tecidos africanos se misturam, no fim de semana, às barracas de temaki, pastel e tempurá.

Na Rua Coimbra, no Brás, onde no começo do século passado circulavam jornais em italiano, hoje há grande concentração de imigrantes bolivianos. A cada esquina uma barraquinha expõe CDs, em geral de músicos daquele país. Os letreiros dos vários pontos comerciais anunciam seus produtos: “peluquerías” e restaurantes que oferecem “sopas”, “salteñas”, “refrescos”, “chichas” e “pollo”, muito pollo – nosso popular frango.

Durante todo o dia, mulheres vendem pães artesanais sem a casca dura do nosso pãozinho, que em São Paulo é conhecido como pão francês. “Os pães aqui são feitos na máquina. Lá a gente gosta de comer as coisas naturais”, diz Edwin Javier Canabire, que vende produtos na rua e promove excursões para a fronteira do Brasil com a Bolívia. Na rua de pouco mais de 300 metros vivem mais de 100 famílias bolivianas.

Na Avenida Rio Branco, também no centro, o Tierra Madre, aberto há pouco mais de um mês, é o terceiro restaurante peruano da região. O ambiente ainda é dominado por imigrantes daquele país, enquanto o concorrente mais famoso, o Riconcito, já caiu nas graças dos paulistanos e, apesar da rusticidade das suas instalações, é frequentado por jovens de várias partes da cidade. Enquanto neste domina o huayno, ritmo popular peruano, no Tierra Madre é a salsa que embala as refeições.

Prédios comerciais inteiros no centro da capital são dominados por chineses, que vendem celulares, câmeras de vídeo e outras traquitanas tecnológicas. O senso de comunidade extremamente fechado, reforçado pela língua completamente diferente do português, dificulta a integração, que eles não parecem buscar.

Formações

O Brasil é um país de migrantes e São Paulo é uma Babilônia. Algumas influências são antigas. Entre 1870 e 1930, um grande fluxo migratório fez 2,5 milhões de pessoas se deslocarem da Europa e da Ásia para cá. Esse processo, explica Marília Bonas, presidenta-executiva do Museu do Imigrante (em São Paulo), foi estimulado pelo governo do período, que inclusive montou uma espécie de “Poupatempo”, as hospedarias de imigrantes, para recebê-los. No local eles tinham acesso a assistência médica, social e trabalhista, e saíam sete dias depois de chegarem, com empregos garantidos, na maioria das vezes em fazendas de café do interior paulista.

Isso deixou muitas marcas na cultura brasileira, mesmo que, de tão incorporadas, nem sempre estejam claras. O hábito de incluir hortaliças na alimentação, por exemplo, foi introduzido pelos imigrantes japoneses. Mas talvez a mais importante delas tenha sido o legado do embranquecimento da população, uma política deliberada promovida pelo Estado no período.

O fluxo não parou, mas nunca mais teve a mesma intensidade. Hoje, os europeus voltaram a buscar no Brasil uma alternativa para a crise em seu continente. Mas levas de estrangeiros de países que não participaram daquele primeiro momento têm vindo para cá, trazendo consigo seus modos de viver.  As ondas mais recentes têm trazido para a cidade senegaleses, nigerianos, camaroneses, angolanos, caboverdianos, quenianos, moçambicanos, peruanos, paraguaios, colombianos e chineses. Segundo o Censo Demográfico de 2010, os bolivianos já somam cerca de 18,8 mil indivíduos e são a segunda maior comunidade estrangeira em São Paulo, sendo apenas menor que a comunidade portuguesa. Isso só em números oficiais. O consulado boliviano acredita que ao todo, sejam em torno de 350 mil.

Braços abertos, punhos fechados

Latinos e africanos buscam melhorias nas condições de vida e já começam a deixar marcas pelas cidades – e boa parte se depara, aqui, com o mesmo processo de exclusão que atinge brasileiros negros e indígenas. Enquanto os europeus são novamente beneficiados por políticas oficiais de atração de mão de obra “qualificada”, outros grupos ficam vulneráveis a condições precárias de moradia e trabalho.

“É um erro de estratégia fatal”, avalia o coordenador de Políticas para Migrantes da Secretaria de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, o paraguaio Paulo Illes. “Nossas cidades discriminam os imigrantes sul-americanos, africanos, haitianos, que vêm fazer os trabalhos que os brasileiros não querem fazer mais, que é o trabalho doméstico, costura, construção civil. Essa mão de obra qualificada, que é uma quantidade enorme de imigrantes – enquanto entraram 20 mil haitianos, chegaram mais de 50 mil espanhóis no mesmo período – é uma mão de obra de engenheiros, técnicos que vêm para ocupar melhores empregos, melhores salários, fazendo inclusive uma disputa direta com os profissionais brasileiros”, continua. “Por outro lado, nesse grupo de imigrantes haitianos, sul-americanos etc., você tem uma grande quantidade de mão de obra qualificada. Tem médicos, enfermeiros etc. que estão trabalhando como costureiros. Mas por serem indígenas, por serem negros, a gente olha para eles como se fossem pessoas analfabetas. Então há um erro grotesco nessa maneira de ver e que se coloca como grande desafio, porque é uma disputa de valores, uma correlação de forças. Políticas migratórias não podem ser desenvolvidas por empresas.”

O preconceito também dificulta a assimilação de hábitos culturais pelos brasileiros, daí a importância da atuação do Estado no reconhecimento desses valores culturais. A comunidade boliviana, por exemplo, comemora a notícia de que a prefeitura deve colocar no calendário oficial a feira da Alasita, que no ano que vem ocorrerá em 26 de janeiro no Parque Dom Pedro. A oficialização abre a perspectiva de que o evento, que inclui gastronomia, música e artesanato, entre no imaginário do paulistano, assim como festas tradicionais italianas como a da Achiropita, que anualmente marca o calendário do bairro do Bixiga, e o Ano Novo Chinês, na Liberdade. “A prefeitura não tem que dizer se eles vão interagir ou não, se tem que abrir a comunidade ou não. Tem que ter presença do Estado para transformar os espaços em espaços de todos”, explica Illes.

A feira boliviana que ocorre todos os sábados na rua Coimbra também tenta uma oficialização junto à prefeitura. Aos domingos, outra feira, a da Praça Kantuta, no Bom Retiro, também reúne a comunidade. O nome do logradouro é homenagem a uma flor andina que carrega as cores da bandeira da Bolívia: amarelo, vermelho e verde. A estação de metrô mais próxima é a Armênia, batizada em tributo aos imigrantes deste país que ali se estabeleceram no século 20.

A atual informalidade é uma das razões que contribuem para a violência que ocorre durante as noites na rua Coimbra, acredita o presidente da associação de comerciantes locais, Luís Vasquez. “O boliviano bebe mesmo, já vem da cultura dele. Ele passa a semana inteira trabalhando nas oficinas e, quando sai, quer beber. Durante o dia você não vê nenhum bar aberto, mas à noite ficam vários e aí tem muitas brigas. A polícia diz que não pode vir resolver só um problema. Se vier, tem que resolver tudo e está todo mundo irregular”, diz.

Apesar de a comunidade peruana em São Paulo ser menor do que a boliviana, é a sua culinária a mais conhecida. “A comida peruana é muito boa, a melhor do mundo”, gaba-se o gerente do Tierra Madre, Alyn Huapaya Yepez, em função dos prêmios internacionais que a cozinha do país, repleta de pratos com peixe e variedades de milho, já ganhou. “Nós temos costa, serra e selva, por isso a comida é muito diversa”, explica.

O pai de Yepez, jornalista, tentou abrir um periódico voltado às comunidades latinas em São Paulo. “Mas não deu certo. Agora o pessoal fica todo na internet”, explica. Por isso, a família resolveu investir no restaurante. No começo do século 20, existiam perto de uma centena de jornais escritos em italiano, alemão, espanhol, húngaro, línguas para divulgar as notícias das comunidades imigrantes estabelecidas na capital paulista e de seus países de origem. Atualmente, há três rádios comunitárias que atendem a comunidade boliviana, mas de fato as informações circulam em maior volume pela internet.

Os peruanos também são mais expansivos e mais abertos que os bolivianos, que se reúnem em uma espécie de gueto. “Os peruanos que vêm para cá são da costa, da cidade, parecido com o Rio de Janeiro, enquanto os bolivianos são dos Andes. O frio faz com que eles sejam mais quietos”, avalia a peruana Cecília Lumbreras, comerciante.

“Claro que vocês dizem que aqui é o país de todos, quem vai falar mal do próprio país? Mas não é não, tem muito racismo aqui”, afirma o senegalês Beugue Fallou Touré. Fallou (pronuncia-se Falú), que vende artesanato e tecidos de seu país na Liberdade, está há seis anos no Brasil, quatro deles em São Paulo. Antes disso, trabalhou com carteira assinada em uma vidraçaria em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Na época, a cidade ainda não tinha tantos compatriotas seus como hoje. O fluxo de imigrantes do país para a região sul do Brasil aumentou conforme os frigoríficos instalados na região, interessados em exportar para países muçulmanos, passaram a contratar senegaleses islamitas para realizar o corte adequado de frango de acordo com os rituais da fé islâmica.

Em São Paulo, o preconceito enfrentado em mesquitas dominadas por muçulmanos não africanos levou os senegaleses a se reunir em uma espécie de templo improvisado em um apartamento na República às sextas-feiras. “Em São Paulo dizem que o Sul é mais racista, mas não. Lá tratam a gente melhor que aqui”, garante Fallou, horas antes de embarcar para um Festival de Verão no interior de Santa Catarina. “O racismo é uma doença. Já nasce com as pessoas que têm sangue ruim.”

Fallou exalta as qualidades de seus compatriotas. “Senegalês não fuma, não bebe, não faz bagunça, respeita, é trabalhador”, afirma, e se queixa da falta de conhecimento do brasileiro sobre a diversidade do continente africano. “Eu não tenho nada a ver com queniano, com nigeriano. São culturas muito diferentes”, explica. “É como dizer que a América Latina é igual, dizer que o brasileiro é igual ao chileno.”

No restaurante Biyou’z, na alameda Barão de Limeira, no centro, em menos de cinco minutos o camaronês Vitor, marido da proprietária do estabelecimento, apontou pessoas de cinco nacionalidades que passaram diante da porta: Camarões, Costa do Marfim, Congo, Quênia e Senegal. “Na África tem 54 países e tem gente de todos os lugares aqui”, disse, apontando para o mapa pendurado na parede. O cardápio tem pratos de vários lugares de seu continente de origem, com predominância de molhos, carnes cozidas e fubá e serve como um ponto de encontro para muitos imigrantes que se estabelecem aqui.

Na jukebox, Koffi Olomide canta em lingala, um dos idiomas falados no Congo. Ele faz sucesso em todo o continente africano. “Porque sai mais macio da língua”, explica o anfitrião. As referências linguísticas também já começam a deixar marcas, como por exemplo nos nomes registrados nos filhos dos imigrantes no país. E são muitos, garante o camaronês Jonathan Siewe, que trabalha como taxista. “Todo africano tem filho. Pode não registrar, mas que tem, tem.” Paulo Illes lembra que a taxa de natalidade dos paulistanos já se estabilizou em menos de três filhos por família, enquanto que, entre os imigrantes, ainda é alta: entre quatro de cinco crianças. “Já temos bolivianos casados com brasileiros, brasileiros casados com paraguaios, peruanos, ou entre eles. É uma nova cara para o Brasil”, diz Illes.

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