A Frente Estadual Antimanicomial, representada por Moacyr Bertolini, esteve no dia 25 de junho de 2020 em reunião com o Subprocurador-geral da República Carlos Vilhena que assumiu a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/MPF.
Na reunião Moacyr, entregou a Nota Pública assinada por dezenas de entidades e movimentos que apontaram o conjunto de decretos e portarias assinadas pelo governo federal contrárias à reforma psiquiátrica, a desinstitucionalizacao e ao cuidado em liberdade.
Na reunião a Frente também cobrou a continuidade do Grupo de Trabalho que trata da Saúde Mental e Drogas e também que a PFDC continue com as inspeções nas comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos.
O Subprocurador-geral da República Carlos Vilhena recebeu a Nota Pública e se comprometeu com a continuidade das inspeções e das parcerias da PFDC com as entidades, universidades e movimentos do campo da luta Antimanicomial.
Nota Pública Desinstitucionalização e Cuidado em Liberdade em xeque no Brasil
O Brasil tem passado os últimos quatro anos por um forte processo de desmonte dos pressupostos que construíram as últimas três décadas de organização social e comunitária e das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas que foram vanguarda na promoção do cuidado em liberdade e dos direitos humanos.
O conjunto das iniciativas tomadas visando inicialmente o retrocessos nas políticas públicas, foram se aprofundando e iniciaram um processo de contra reforma psiquiátrica no país, tendo como características fundamentais, instrumentos de gestão públicas alheios a exigência constitucional da participação social e a valorização de equipamentos privados que tem como imperativo de “cuidado” o isolamento social.
A presente nota produzida pela Frente Estadual Antimanicomial tem como objetivo sistematizar o conjunto de decretos e portarias que evidenciam a ruptura com o marco legal e todo o processo de regulamentação, inaugurada com a Lei 10.216/01, e com os princípios constitucionais.
Considerando que o Art. 196 da Constituição Federal garante que a “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Considerando a Lei nº 10.216, em 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, encaminhou o Brasil para o grupo de países com uma legislação moderna e coerente com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde e OPAS.
Considerando que a política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas, esteve, até dezembro de 2017, afinada com o estabelecido nas principais convenções internacionais, tais como a Proteção de Pessoas com Transtornos Mentais e a Melhoria da Assistência à Saúde Mental, de 1991, e particularmente a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, depois aprovada no Brasil pelo Decreto nº 6.949/09, com o mesmo status jurídico de Emenda Constitucional, e que depois foi regulamentada pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/15;
Considerando que a opção pela desinstitucionalização está baseada no reconhecimento acadêmico e técnico, em nível internacional, de que as melhores formas de tratamento e cuidado de usuários de saúde mental, álcool e outras drogas baseiam-se em intervenções de bases territorial e comunitária, e por isso as políticas públicas devem voltar-se para a construção da Rede de Atenção Psicossocial (Princípios do Tratamento de Dependência de Drogas, WHO, 2008).
Considerando que as estratégias clínicas e terapêuticas pactuadas internacionalmente no campo da saúde e que esta presente na construção da RAPS no Brasil, se fundamenta, na reabilitação psicossocial, que é definida pela Organização Mundial de Saúde como: “é um processo que oferece aos indivíduos que estão debilitados, incapacitados ou deficientes, devido à perturbação mental, a oportunidade de atingir o seu nível potencial de funcionamento independente na comunidade. Envolve tanto o incremento de competências individuais como a introdução de mudanças ambientais. A reabilitação psicossocial é um processo abrangente, e não simplesmente uma técnica” – OMS, 1995” – OMS, 1995;
Considerando que o Conselho Diretor da OPAS (Organização Panamericana de Saúde) aprovou resoluções em 1997 e 2001 que defendem a ênfase na implantação de serviços comunitários de saúde mental e de atenção psicossocial;
Considerando que em 2013, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou o “Comprehensive Mental Health Action Plan for 2013-2020”. O plano é um compromisso de todos os Estados-membros da OMS na tomada de medidas específicas para melhorar a saúde mental e contribuir para a realização de um conjunto de metas globais. No Plano de Ação, é dada ênfase especial à proteção de direitos humanos, o fortalecimento e empoderamento da sociedade civil para o lugar central da atenção de base comunitária.
Considerando que em outubro de 2009, o 49º Conselho Diretivo da Organização Pan-americana de Saúde (PAHO/WHO) aprovou a Estratégia e Plano de Ação em Saúde Mental. Onde a promoção da atenção à saúde mental que seja universal e igualitária para toda a população, por meio do fortalecimento dos serviços de saúde mental dentro dos marcos de sistemas baseados na atenção primária e de redes de fornecimento integrado e em atividades contínuas para eliminar o antigo modelo centrado em hospitais psiquiátricos.
Considerando que na “I Reunião Regional de Usuários de Serviços de Saúde Mental e Familiares”, realizada de 15 a 17 de outubro de 2013, promovida pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e aprovou o Consenso de Brasília e afirmou o desenvolvimento ou fortalecimento de ações governamentais, setoriais e intersetoriais, com a perspectiva de promover a autonomia, de ampliar o acesso ao cuidado de base comunitária e territorial e de lutar contra o estigma, pela desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos e o preconceito associado às pessoas com transtorno mental.
Considerando que a participação social é também denominada “participação comunitária” no contexto da saúde, sendo estabelecida e regulada pela Lei nº 8.142/90, a partir da criação de Conselhos de Saúde e Conferências de Saúde, nas três esferas de governo, bem como de colegiados de gestão nos serviços de saúde.
Quadro sistematizado de Portarias e Decretos que vão contrários a legislação e a seus pressupostos de desinstitucionalização e de cuidado em liberdade
A Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas desde 2017 até a presente data, em conjunto com a recente Secretária Nacional de Prevenção as Drogas do Ministério da Cidadania produziu um conjunto articulado de resoluções e portarias com vistas a alterar os pressupostos da lei 10216/01 e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/15.
Essas medidas tem questionamentos vindos da Defensoria Pública da União, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e dos Conselhos Nacionais de Saúde e de Direitos Humanos.
Na Ação Civil Pública da Defensoria Pública da União em face da União, que requer a tutela de urgência para suspender a eficácia da Resolução CIT nº 32, de 17 de dezembro de 2017; da Portaria GM/MS nº 3.588/2017; da Portaria Interministerial nº 2, de 21 de dezembro de 2017; da Portaria GM/MS nº 2663, de 11 de outubro de 2017; da Portaria GM/MS nº 1315, de 11 de março de 2018; da Resolução CONAD nº 1, de 9 de março de 2018; da Portaria SAS/MS nº 544, de 7 de maio de 2018; da Portaria GM/MS nº 2.434, de 15 de agosto de 2018; da Resolução CIT nº 35/2018, de 25 de janeiro de 2018 e da Resolução CIT nº 36/2018, de 25 de janeiro de 2018, haja vista padecerem de vícios insanáveis.
Na Nota Técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão n° 5/2019/PFDC/MPF, de 22 de março de 2019, dirigida aos Ministros da Saúde, Justiça e Segurança Pública e da Cidadania, que tem por propósito explicitar as premissas fáticas e jurídicas que conduzem a concluir-se pela ilegalidade e inconstitucionalidade da atual política de saúde mental, que permite que pacientes permaneçam por longos períodos internados em manicômios;
Na Recomendação nº 05, de 15 de fevereiro de 2019, do Pleno do Conselho Nacional de Saúde, que recomenda ao Ministério da Saúde que as manifestações da área técnica de saúde mental se fundamentem nos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, na Lei nº 10.216/2001 e nas deliberações do Conselho Nacional de Saúde;
Na RESOLUÇÃO Nº 8, DE 14 DE AGOSTO DE 2019 do Conselho Nacional de Direitos Humanos que dispõe sobre soluções preventivas de violação e garantidoras de direitos aos portadores de transtornos mentais e usuários problemáticos de álcool e outras drogas.
Quadro:
• Em dezembro de 2017 foram publicados a Resolução 32 e a Portaria no. 3.588 que alteram e incluem novos componentes na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), e, em conjunto com o Ministério do Trabalho, Ministério do Desenvolvimento Social e Ministério da Justiça, publicaram a Portaria Interministerial no. 2, que inicia um redesenho nas políticas de drogas.
• A Portaria n. 3588/2017 inclui os Hospitais Psiquiátricos na RAPS, aumento o valor das diárias de 15% para 20% nos Leitos em Hospital Geral, garantem o financiamento somente a partir de 8 leitos e a criação do CAPS AD IV. Bem como, a desvinculação do número de leitos em relação ao quantitativo populacional.
• No ano de 2018 publicam a Portaria n° 3.449/2018, do Ministério da Saúde que Institui um Comitê com a finalidade de consolidar normas técnicas, diretrizes operacionais e estratégicas no contexto da política pública sobre o álcool e outras drogas, que envolvem a articulação, regulação e parcerias com organizações da sociedade civil denominadas Comunidades Terapêuticas.
• A Portaria nº 2434 de 15/08/2018 que promove um aumento de 60% nas diárias pagas aos hospitais, para atendimento de pacientes internados por mais de 90 dias ou que são reinternados em intervalo menos de 30 dias (de R$29,50 a R$41,20 para R$47,00 a R$66,00).
• A Portaria nº 3.659, de 14 de novembro de 2018 que suspendeu o repasse do recurso financeiro destinado ao incentivo de custeio mensal de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Unidades de Acolhimento (UA) e de Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral, integrantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS.
• A Portaria nº 3.718, de 22 de novembro de 2018, que publicou lista de estados e municípios que receberam recursos referentes a parcela única de incentivo de implantação dos dispositivos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e não executaram o referido recurso.
• A Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, aprovada no Senado, sem aprofundamento do debate, desconsiderando emendas de comissões apresentadas, que acaba de retroceder décadas ao prescrever internações involuntárias como estratégia central no cuidado aos usuários de drogas, como outras medidas retrógradas com prejuízo de experiências exitosas e avanços técnico-científicos;
• Os vetos presidenciais à Lei nº 13.840/2019 (aprovada no Senado sem que sua versão final acolhesse as contribuições oriundas de prolongado debate e pactuações em diversas comissões do congresso nacional nos últimos anos), que descaracteriza os órgãos fiscalizadores, a participação da sociedade e reduz os recursos/estratégias direcionados a inclusão social, trabalho e geração de renda;
• A Recomendação nº 03, de 14 de março de 2019, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, enviada ao Pleno do Conselho Nacional de Saúde, na qual recomenda ao Ministério da Saúde suspender a execução de todas as normativas incompatíveis com a estabelecida Política Nacional de Saúde Mental, que subsidiaram a “Nova Política de Saúde Mental”;
• A criação no Orçamento Federal o Programa: Rede de Suporte Social ao Dependente Químico – Cuidados, Prevenção e Reinserção Social e a Ação Orçamentária: Prevenção de Uso de Drogas – Cuidados e Reinserção Social de Pessoas e Famílias que têm Problemas com Álcool e Outras Drogas – classificação funcional programática 10.55101.14.422.5032.20r9.
• A Portaria nº 340, de 30 de março de 2020, que estabelece medidas para o enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional decorrente de infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19), no âmbito das Comunidades Terapêuticas e não ocorra internações/acolhimentos nas comunidades terapêuticas até o final do período de epidemia.
• A Portaria GM/MS n. 1325, de 18 de maio de 2020, que revoga a Portaria GM/MS n. 95/2014 e as respectivas referências na Portaria de Consolidação n. 2/GM/MS, que extingue o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei, no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional.
Recomenda:
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara e Senado Federal:
Sistematização dos Projetos de Decreto Legislativo que buscam sustar os decretos e portarias apontados nessa Nota Técnica;
Criação de um Projeto de Decreto Legislativo que reúna o conjunto de decretos e portarias citadas na Nota Técnica para que a política pública de saúde mental, álcool e outras drogas, estejam de acordo com os princípios da desinstitucionalização e do cuidado em liberdade previsto na Constituição, na Lei 10.216 e na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/15;
Ao Conselho Nacional de Direitos Humanos e ao Conselho Nacional de Saúde
Construir uma Resolução em conjunto que reúna o conjunto das portarias e decretos descritos nessa Nota Técnica para que a política pública de saúde mental, álcool e outras drogas, estejam de acordo com os princípios da desinstitucionalização e do cuidado em liberdade previsto na Constituição, na Lei 10.216 e na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/15;
Assinam:
Frente Estadual Antimanicomial/SP
Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme)
Associação de Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo (ATOESP)
Associação Inclui Mais
Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários do Brasil (Unisol)
Conselho Regional de Psicologia 06 (CRP-SP)
Federação Nacional dos Psicólogos
Ong Sã Consciência
Sindicato do Metalúrgicos do ABC
Sindicato dos Psicólogos do estado de São Paulo (Sinpsi)
Associação Brasileira de Saúde Bucal Coletiva
Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (ASUSSAM-MG)
Centro de Convivência É de Lei
Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial
Coletivo de Práticas Integrativas de Resistência Antimanicomial
Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo – Crefito3
Departamento Científico de Enfermagem Saúde Mental e Psiquiátrica da Associação Brasileira de Enfermagem São Paulo
Fórum Gaúcho da Saúde Mental
Instituto Félix Guattari
LABORATORIO DE SAUDE COLETIVA / LASCOL – DMP/UNIFESP
Núcleo de Saúde Mental Álcool e outras Drogas da Fiocruz Brasília
Observatório de Saúde Mental
Papel Pinel
Participa-Ação – Coletivo para o Protagonismo de Usuários e Familiares em Pompeia Sem Medo
Projeto Transversões – Escola de Serviço Social UFRJ
Promotoras Legais Populares de São Paulo
União de Mulheres do Município de São Paulo
YAYARTES Bloco Carnavalesco Casa de Dona Yayá