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Lei que ratifica direitos de mulheres violentadas espera sanção de Dilma Rousseff

Bancada evangélica e entidades religiosas se opõem: ‘Querem ampliar prática do aborto’. Veto presidencial colocaria a perder decisões do governo para atendimento a vítimas de violência sexual

São Paulo – A presidenta Dilma Rousseff tem até o dia 1º de agosto para definir se sancionará ou vetará, total ou parcialmente, o Projeto de Lei Complementar (PLC) 03, de 2013, que define o atendimento médico que deve ser dispensado às vítimas de violência sexual no país. O texto não traz nenhuma novidade: servirá apenas para institucionalizar procedimentos já previstos por acordos internacionais, consagrados em portarias do Ministério da Saúde e adotados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A canetada presidencial poderá, portanto, garantir a continuidade dessas práticas, transformando-as em lei, ou, ao contrário, em caso de veto, abrir brechas para sua contestação judicial e possível interrupção – o que, segundo organizações sociais, médicas e feministas, seria um retrocesso aos direitos das mulheres.

“Os artigos do texto já são seguidos pelos serviços de saúde na maioria dos casos”, explica Sarah de Roure, militante da Marcha Mundial das Mulheres. “Por mais simples e elementar que pareça o conteúdo projeto de lei, podemos garantir, com sua aprovação, que essas normativas, que são mais eficazes nos grandes centros urbanos, também passem a ser cumpridas em outros lugares mais afastados do país. É importante transformá-las em lei para que as mulheres fiquem ainda mais protegidas e amparadas para garantir seus direitos e suas condições de saúde nos casos de estupro e outras formas de violência sexual.”

“O projeto vem ratificar o que já fazemos há mais de dez anos”, explica o médico Carlos Oshikata, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP) e membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “É uma lei que está vindo bastante tarde. Já sabemos há muito tempo que esse tipo de atendimento é necessário. Apenas 15% a 20% das mulheres que sofrem violência sexual no Brasil procura atendimento médico. E é muito difícil haver pessoas motivadas a atendê-las. Se o texto for vetado, as mulheres ficarão ainda mais vulneráveis. E o agressor terá uma sensação ainda maior de impunidade. Será um retrocesso total.”

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O PLC 03/2013 é bastante conciso: possui apenas quatro artigos. O primeiro determina que os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento “emergencial, integral e multidisciplinar”, visando ao controle e ao tratamento dos “agravos físicos e psíquicos” recorrentes da agressão sofrida pela mulher. O segundo considera como “violência sexual” qualquer tipo de forma ou atividade sexual não consentida – ou seja, não é apenas estupro, apesar desta ser a mais agressiva e conhecida delas. O terceiro artigo traz uma lista dos procedimentos a serem observados pelos profissionais de saúde no momento de atender à mulher violentada que procura auxílio nas unidades do SUS.

São sete incisos: I – diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas; II – amparo médico, psicológico e social imediatos; III – facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; IV – profilaxia da gravidez; V – profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis; VI – coleta de material para realização de exame de HIV para posterior acompanhamento e terapia; e VII – fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis.

Apesar de trazer procedimentos bastante óbvios para a proteção das mulheres vítima de violência sexual, e que já são observados na rede pública de saúde, o PLC 03/2013 vem sendo contestado por organizações religiosas cristãs, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e pela bancada evangélica no Congresso, que integra, em parte, a base aliada do governo federal. Apoiadas em seus preceitos morais, as entidades católicas e protestantes acreditam que o projeto pretende “legalizar” o aborto no Brasil.

Pressão

Mesmo com a oposição dos parlamentares cristãos, o texto acabou sendo aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados. “Esse projeto não traz o nome aborto. Foi aí que nos pegaram”, afirmou Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Casa, justificando por que não havia votado contra o projeto. “Eles foram muito sagazes.” O deputado Paulo Freire (PR-SP), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, afirmou em entrevista ao portal UOL que a bancada agora está pressionando Dilma Rousseff para que vete a matéria. “Só com essas frentes temos por volta de 200 deputados, e vamos à presidenta pedir o veto a esse projeto absurdo.”

As entidades sociais e religiosas também expuseram contrariedade ao governo. No último dia 17, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, recebeu em Brasília representantes da CNBB, Federação Espírita do Brasil, Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política, Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil sem Aborto, Confederação Nacional das Entidades de Família e Associação Nacional da Cidadania pela Vida. Elas também pedem o veto total ou parcial do PLC 03/2013. Além de participar da reunião, a CNBB circulou entre os bispos de todo o país uma carta em que explica os motivos pelos quais se opõe ao projeto.

Os católicos alegam não ser contrários ao “atendimento devido a uma vítima de violência sexual, nos aspectos físico, psicológico, legal e social, inclusive no que se refere à identificação do agressor e sua criminalização”, mas manifestam algumas contrariedades ao texto. A principal crítica se dirige ao inciso IV do artigo 3º. “Há incorreção conceitual a gerar descompasso jurídico por consagrar a gravidez como doença, uma vez que ‘profilaxia’ é termo relacionado à prevenção de doenças”, diz a epístola, assinada pelo secretário-geral da CNBB, Leonardo Ulrich Steiner. “Entendemos que associar gravidez a doença, uma doença a ser evitada, é de todo inadmissível.”

A entidade também não gostou do inciso VII. “Afora não ser o aborto um ‘direito’, mas sim um crime em relação ao qual há duas excludentes legais de punibilidade, não cabe aos hospitais orientação jurídica, ainda que a título de ‘informações’, sobre ‘direitos legais’”, esmiúça o bispo. “O inciso III já cobre o desejado atendimento legal, e outras informações devem ser prestadas pelas delegacias especializadas, e não pelo hospital.” Como lembra Steiner, a legislação permite que as vítimas de aborto interrompam sua gravidez. “Não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”, diz o artigo 128 do Código Penal.

Tergiversação

“Concretamente, o projeto de lei não guarda nenhuma relação com o aborto”, rebate Sarah de Roure, da Marcha Mundial das Mulheres. “O texto está apenas regulamentando o atendimento médico que a mulher deve ter nos hospitais do SUS. Quando a mulher dá entrada no hospital, vítima de estupro, ela já recebe uma série de medicamentos para a prevenção de DST e aids, por exemplo, e pílula-do-dia-seguinte.” A militante lembra, porém, que os setores religiosos reconhecem a pílula-do-dia-seguinte como abortiva. “Mas é um contraceptivo de emergência”, argumenta. “E as igrejas são contra qualquer tipo de contracepção, até mesmo a camisinha.”

O ginecologista Carlos Oshikata endossa os argumentos da feminista. “Hoje, a mulher violada recebe um acolhimento privativo, que pergunta sobre as características da violência: onde foi, como foi, se anal, vaginal ou oral, se ela usa anticoncepcional etc.”, explica. “É feito exame físico na paciente, para verificar a existência de lesões decorrentes da violência. É colhido material biológico que possa servir de prova do crime, como esperma na vagina ou na roupa, para detectar o DNA do agressor. Qualquer ferimento é tratado e é prescrita a anticoncepção de emergência, além de remédios anti-DST. Além disso, é visto também a parte social: se é menor de idade, temos que acionar o Conselho Tutelar. Se não tem onde ficar porque foi violentada dentro de casa, por exemplo, é função do serviço de saúde acolher a mulher.” É exatamente o que determina o PLC 03/2013, complementa o médico. “Não tem nada a ver com aborto.”

Quanto à pressão da CNBB pelo veto ao inciso VII, que garante o “fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis”, Sarah questiona, perplexa: “Por que você não pode dar orientação às mulheres sobre os direitos legais?” A militante afirma que a contrariedade das igrejas se insere num contexto mais amplo de conservadorismo. “Essa postura se relaciona com outros projetos em discussão, como o Estatuto do Nascituro e a chamada bolsa-estupro, em que você reconhece a paternidade do estuprador e o Estado paga um valor para a mulher levar a gravidez adiante”, diz. “É um discurso que reforça as desigualdades contra a mulher. Parece que o estupro é uma violência menor frente ao aborto ou mesmo à contracepção.”

Histórico

Na portaria 528, publicada no Diário Oficial da União em 1º de abril, o Ministério da Saúde reúne uma série de leis, decretos e portarias anteriores para definir regras para habilitação e funcionamento dos chamados Serviços de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do SUS. As regras passaram a valer no dia 2 de abril. Com elas, “os serviços hospitalares públicos deverão prestar atendimento clínico, psicológico, acolhimento, administração de medicamentos, notificação compulsória institucionalizada, referência laboratorial para exames necessários e referência para coleta de vestígios de violência sexual”, diz o ministério. “As ações também incluem interrupção de gravidez, nos casos previstos em lei.”

Ao menos uma cartilha do Ministério da Saúde também orienta os profissionais do SUS sobre o atendimento às mulheres que sofreram estupro. O documento Aspectos Jurídicos do Atendimento às Vítimas de Violência Sexual – Perguntas e Respostas para Profissionais da Saúde, editado em 2011, reconhece o aborto em caso de estupro um direito da mulher que foi violentada. “Como o sistema penal considera lícita e não criminosa a prática do abortamento nessa situação, é direito da mulher interromper a gestação decorrente de estupro”, afirma o texto, em contrariedade com a interpretação da CNBB.

Outra publicação, intitulada Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e publicada em 2012, orienta sobre a administração da pílula-do-dia-seguinte às vítimas de estupro que procuram o serviço de saúde. “A anticoncepção de emergência deve ser prescrita para todas as mulheres e adolescentes expostas à gravidez, através de contato certo ou duvidoso com sêmen, independente do período do ciclo menstrual em que se encontrem, que tenham tido a primeira menstruação e que estejam antes da menopausa”, afirma o texto. “O risco de gravidez, decorrente dessa violência, varia entre 0,5 e 5%. A gravidez decorrente de violência sexual representa, para grande parte das mulheres, uma segunda forma de violência.”

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