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“Manicômio dá muito lucro”, denuncia presidente do Conselho de Psicologia

Portaria do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro (PSL) trouxe de volta ao Brasil o fantasma dos manicômios

O psicólogo Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em entrevista ao Saúde Popular e ao Brasil de Fato, afirma que há um conjunto de ações em que a política de saúde mental, no governo Bolsonaro, está retornando a marcos ultrapassados “e inclusive ilegais”.

Ao criticar a Nota Técnica publicada pelo Ministério da Saúde para a Política Nacional de Saúde Mental e Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, ele interpreta que o documento diz “com todas as letras:é o retorno ao modelo da abstinência, o retorno ao modelo manicomial”.

O dirigente do CFP também classificou como “assombrosa” a proposta de leito psiquiátrico infantil. “Abre-se a possibilidade de inclusive crianças com autismo serem internadas em hospitais psiquiátricos”. Incrédulo na efetividade de reintegração do paciente em locais isolados e contrário ao uso de terapias eletroconvulsivas no serviço público, Giannini acrescenta: “não há terapia neutra”. Segundo ele, o debate envolve uma disputa ideológica, filosófica e econômica. “Os leitos manicomiais sempre tiveram esse papel de empreendimento, porque dão muito lucro”.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Como o senhor avalia a atual situação da saúde mental no Brasil?

Rogério Giannini: Há alguns anos, iniciou-se um processo de afirmação e reafirmação de um modelo hospitalocêntrico, um modelo psiquiátrico manicomial. Também através das comunidades terapêuticas, que retomam, de certa forma, o modelo manicomial porque é o modelo que exclui a possibilidade de trabalhar com redução de danos, que interna as pessoas, que as retira do convívio social, sendo, no máximo, uma ação emergencial porque depois essas pessoas retornam aos seus territórios e de novo ficam expostas a dificuldades que levaram ao processo de uso abusivo e problemático de substâncias.

Há um conjunto de ações em que a política [de saúde mental], retorna a marcos ultrapassados e inclusive ilegais. Todas essas modificações estão sendo feita por portarias, por decisões de uma comissão tripartite (municipal, estadual e federal) consultiva, que é para a articulação de ações e não de decisões de mudanças de orientações da lei. Por enquanto, está valendo a Lei da Reforma Psiquiátrica. Mas, na prática, estão sendo feitas mudanças que desmontam a reforma psiquiátrica no Brasil.

O Ministério da Saúde reorientou as políticas de saúde mental e tem sido muito criticado por especialistas na área. A questão da política de abstinência e abertura de leitos psiquiátricos infantis, por exemplo, foram questionadas. Qual a sua opinião?

Quando se escolhe o caminho da Reforma Psiquiátrica, se cria condições de atenção à saúde mental nos territórios. É próximo onde as pessoas moram, há ações ligadas a diversos equipamentos. Então, nos territórios há ações de saúde, por meio das unidades básicas de saúde (UBS), ações específicas no caso dos Centros de Apoio Psicossocial (Caps), há integração com outros equipamentos públicos na tentativa de criar uma Rede de Atenção Psicossocial (Raps). É a ideia de trazer os sujeitos ao retorno do convívio social. A experiência tem mostrado, e por mais que tenham dúvidas, qualquer pessoa que visitar um Caps, uma Residência Terapêutica, que acompanhe o trabalho de consultórios de rua, percebe a nítida diferença de um manicômio ou novas formas de manicômio, como são as comunidades terapêuticas.

Toda vez que se conversa com os usuários, principalmente os que têm mais idade, eles irão contar da abissal diferença da sua condição no convívio do Caps e de outras estratégias de atenção.

Há uma questão fundamental também que é a redução de danos, que não fica em oposição à abstinência. O processo de abstinência direto é um flerte com o fracasso. Toda vez que se tem uma única possibilidade, se introjeta nesses sujeitos uma experiência de fracasso pessoal, o que só torna os processos mais difíceis.

O que a nota técnica tem indicado, aliás, que diz com todas letras, é o retorno ao modelo da abstinência, o retorno ao modelo manicomial, de hospitais psiquiátricos. É uma falácia dizerem que são modelos complementares. Não existe complementariedade até porque a Lei Paulo Delgado [Lei 10.216, de 2001] estabelece uma rede substitutiva aos manicômios.

No processo de construção dos Caps e na rede substitutiva, a própria liberdade é o elemento terapêutico, seja pro usuário de álcool e outras drogas, seja para aquele usuário de saúde mental mais clássico, com transtornos mentais.

Como enxerga a questão da abertura de leitos psiquiátricos infantis?

É assombroso. Abre-se a possibilidade de inclusive crianças com autismo serem internadas em hospitais psiquiátricos. É uma proposta bastante retrógrada a tudo que se avançou em termos não só técnicos, de outras possibilidades de tratamento como o tratamento em liberdade, mas inclusive do direito das crianças. Imagino que a sociedade, os grupos, as associações, os conselhos que lidam com o direito da criança, vão se insurgir contra isso. É estarrecedor. Basicamente a ideia de tratamento pelo modelo manicomial, muito centrada em um tipo de saber médico psiquiátrico biologista exclusivo, desarticulado com outros saberes. O saber psicológico fica à margem quando se trata de hospitais psiquiátricos. No máximo, a psicóloga fica na relação da família, nas crises, mas o processo de tratamento é baseado em medicamentos.

A sugestão de aquisição de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) é uma ameaça ao bem estar dessas pessoas? Há um critério para que sejam usados?

Recebi uma crítica em que alegavam ser absurdo a afirmação de que [a eletroconvulsoterapia] é eletrochoque, porque teriam pesquisas que dizem que essas terapias têm eficácia. É difícil discutir o eletrochoque como se fosse um debate acadêmico, do Instituto de Psiquiatria da USP [IPQ da Universidade de São Paulo], que faz pesquisa sobre o eletrochoque. Não estamos entrando no debate acadêmico, na pesquisa que se tem internacionalmente, que aliás são controversos. Estamos dizendo concretamente que as [crises] coisas acontecerem são em contextos que vão determinar, de fato, o que elas são, foram e têm sido no mundo dos hospícios. Um tratamento desumano, punitivo e o que, eu insisto, os usuários e a luta antimanicomial têm denunciado, há muitos anos, constitui uma forma de tortura. Não estou discutindo a tecnicidade.

Sou da psicologia e não da psiquiatria. Não sou pesquisador de terapias eletroconvulsivas, mas posso afirmar: há um grande consenso em relação ao movimento da luta antimanicomial, de usuários e familiares, que associam de forma muito direta esse tipo de terapia a processos de tortura. Isso não é uma opinião, é a partir da vivência que as pessoas tiveram da relação com o processo de internação nos manicômios.

As terapias eletroconvulsivas são processos de impulsos elétricos que levam a pessoa à convulsão. É um eletrochoque, tirando a máscara. Essa política exclui os saberes mais integrados. No Caps, as equipes são multiprofissionais e atuam em projetos coletivos e singulares para promover possibilidades de reintegração desse sujeito na comunidade.

O trabalho dos Caps, em liberdade no território, usa uma série de estratégias que buscam trazer esse diálogo. Ou seja, tentando, e muitas vezes com grande sucesso, romper estigmas da loucura.

Não existe uma terapia neutra. Ou seja, se eu afirmo que a estratégia de atenção é uma estratégia em liberdade, é uma estratégia da retomada da possibilidade do convívio social e que isso é eficaz – e tem resultados interessantes e positivos na grande maioria dos casos -, não tenho como fazer a defesa de terapias do chamado eletrochoque, das terapias eletroconvulsivas, como estratégias válidas.

Agora se estão desinternando pessoas, fazendo processos como o Programa De Volta para Casa, fechando manicômios, ressocializando pessoas, trazendo pro convívio, pro Caps, está se deixando para trás as terapias eletroconvulsivas. Na hora que se fala que o modelo vai retomar o processo de internação, o que se diz é que serão retomadas as bases que ele tinha anteriormente, portanto, também, reintroduzindo as terapias eletroconvulsivas.

Eles [Governo] dizem que foi só sugestão, que talvez será implementado. Há um aparente recuo, porque esse tipo de terapia gera uma comoção. Até questionei o quanto isso não era o ‘bode na sala’. O quanto se amenizará a questão das terapias eletroconvulsivas e passará o resto que também é importante.

O problema é que, estando essa população de volta à internação, ao modelo asilar e manicomial, se pode reintroduzir as formas de “tratamento”, entre aspas, que para os usuários era sempre uma forma violenta.

As comunidades terapêuticas dizem que fazem laborterapia, quando na verdade, a laborterapia na grande maioria das comunidades terapêuticas e, particularmente, nas que o Conselho Federal de Psicologia avaliou, junto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal, o que se constata é uma forma de controle de quem está internado.

De certo modo, de substituição dos trabalhos internos pelo serviços prestados, aquilo passa a substituir tarefas de manutenção, de vigilância ou de pequenos consertos, ou seja os internos trabalham de graça pra instituição e isso é chamado de laborterapia.

Antes mesmo da nota técnica com esses anúncios, já ocorriam violações na Política Nacional de Saúde Mental, alterações aos serviços substitutivos?

Na verdade existe um jogo de forças [em disputa] na sociedade. Com o impeachment da Dilma [da Presidência, assumida pelo vice Michel] e o governo Temer, assumem a direção do Ministério [da Saúde] pessoas diretamente ligadas ou influenciadas por quem vinha de outra tradição, inclusive com tradições manicomiais e isso refletiu no desinvestimento em políticas sociais, de um modo geral, pela Emenda Constitucional 95.

Isso foi enfraquecendo o campo da saúde pública e da saúde mental, particularmente. Osmar Terra [ministro do Desenvolvimento Social], por exemplo, diz barbaridades como: “redução de danos é uma bobagem, não é científica”. Várias falas desqualificando as estratégias da rede substitutiva: “esse negócio de Raps [Rede de Atenção Psicossocial] é uma ficção; não existe”.

E por que existe essa disputa? Essa disputa tem um caráter ideológico, que tem a ver com controle dos corpos, controle da subjetividade, o papel da própria loucura na sociedade, porque ela aparece em vários lugares.

Mas, além da disputa ideológica, filosófica, tem uma que é tão importante quanto que é por verba. Os leitos manicomiais são os leitos mais caros que existem no Brasil.

Hipoteticamente, se pegassem todas as pessoas são atendidas no Caps e internassem num grande manicômio, as pessoas vão estar em surto, agressivas, aí terá que ter a cela. Entendeu? Obriga-se a criar um ambiente que muito mais parece uma prisão, onde se gasta muito para manter as pessoas.

São usados medicamentos muito caros, que têm patentes. Há muito interesse econômico ligado à questão dos manicômios. Os manicômios sempre tiveram esse papel de empreendimento, porque que dão muito lucro.

 

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