Notícias

“Ministeriáveis” da saúde debatem na Fiesp

Entidades empresariais entregam pauta de interesses colocando os representantes dos candidatos no centro das atenções

“Sabe que estou me sentindo um presidenciável com esse sorteio? ‘Tô’ achando graça, isso é um perigo!” brincou David Uip em meio ao quarto bloco do evento “Presidenciáveis – Propostas para a Saúde”, realizado na última quarta-feira, 19 de setembro, no Edifício-sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. “A intenção é essa”, falou o cerimonialista, mas nem precisava. Organizado pelo Comitê da Cadeia Produtiva da Saúde e Biotecnologia (ComSaúde/Fiesp); pelo Instituto Coalizão Saúde (ICOS) e pelo Colégio Brasileiro dos Executivos da Saúde (CBEXS), o debate reuniu executivos, tecnocratas e dirigentes de entidades nacionais da gestão e da saúde suplementar para ouvirem da boca dos responsáveis pelos programas de saúde das candidaturas ao Palácio do Planalto o que de fato pensam sobre assuntos caros ao empresariado do setor. De quebra, antecipou o mar de encruzilhadas que se abre diante do SUS a partir de 2019.

O quilate acadêmico e a qualidade da inserção política do time não deixavam dúvidas de que se tratavam de ministeriáveis, ou, no mínimo, de integrantes das elites partidárias com suficiente respaldo para representarem seus candidatos e poderem adiantar posicionamentos pouco ou simplesmente não explicitados nos programas registrados pelas candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, como exposto num importante estudo recém-lançado, apresentam pouca materialidade sobre ações programáticas para o setor.

Como anunciado, foram convidados representantes dos seis candidatos com maior intenção de votos. Em ordem alfabética, participaram Arthur Chioro, ex-ministro da saúde e professor da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), representando Fernando Haddad (PT); David Uip , ex-secretário de saúde do Estado de São Paulo e diretor-geral da Faculdade de Medicina do ABC, representando Geraldo Alckmin (PSDB); Henrique Javi, secretário de saúde do Estado do Ceará, representando Ciro Gomes (PDT); Marcia Bandini, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp), representando Marina Silva (Rede); e Roberta Grabert, médica obstetra e candidata a deputada estadual, representando João Amoedo (Novo). A campanha de Jair Bolsonaro (PSL) não retornou ao convite, logo não marcou presença no evento.

“Desejamos que no próximo dia 5 de janeiro todos os seus candidatos tomem posse. Como a Constituição não permite multipresidentes, que quem seja eleito discuta com as cabeças brilhantes aqui presentes as propostas de governo para o setor, que, como sempre pregamos, só permite um partido, o partido da saúde”, saudou Ruy Baumer, dirigente do ComSaúde/Fiesp, ao centro da mesa. Nas pontas, Giovanni Guido Cerri, vice-presidente do ICOS, e Francisco Balestrin, presidente do CBEXS. Antes do debate, os ministeriáveis já haviam participado de uma reunião na qual foi entregue o Caderno de Propostas – Coalizão Saúde Brasil 2018 e acertada a mecânica do evento.

Ao todo, foram duas horas de debate divididas em cinco blocos – apresentação; duas rodadas de perguntas da mesa – em que cada representante respondeu cinco de nove perguntas; uma rodada de perguntas do público – cada representante respondeu duas de dez perguntas sorteadas – e considerações finais.

Em linhas gerais, todos os participantes mantiveram o mesmo tom ao longo do debate. Ainda que soubessem – e muito bem – os posicionamentos históricos do empresariado da saúde, dialogaram com o público sem abusar da tática de “jogar para a plateia”, ressaltando visões de Saúde Pública bem consolidadas e coerentes com a programática geral representada por suas coalizões, com clara distinção dentro do espectro ideológico ali representado. Vale destacar que os ministeriáveis em uníssono criticaram e pediram o fim da remuneração por produção, citada recorrentemente no termo em inglês fee for service, e apontaram o reordenamento da regionalização como forma de qualificar a gestão e os gastos públicos.

Por sua vez, as questões apresentadas refletiram a conhecida pauta do empresariado. As perguntas da primeira rodada, feitas diretamente pelo triunvirato empresarial que compôs a mesa, funcionaram como insígnias de cada entidade, chamando os representantes às falas em temas como judicialização, liderança em recursos humanos e inserção do setor privado no planejamento do sistema. Já as demais perguntas da mesa e do público valorizaram assuntos como regulação da saúde suplementar, contratualização das ações e serviços, incorporação de tecnologia, papel das agências e dos entes filantrópicos, constituição de redes de atenção especializada e complexo industrial. Da prestação em si, apenas a saúde bucal teve uma pergunta específica.

No bloco de apresentação, os ministeriáveis centraram foco nas concepções sobre o SUS e a relação público-privado. Roberta Graibert se disse “apaixonada pela gestão” e apresentou o “novo SUS”, que definiu curtamente como um sistema marcado pela “integralidade com prioridades; saúde com competitividade”. Ao longo do debate, Roberta repetiu diversas vezes a ideia de se guiar por uma “agenda técnica”, pontuada pelo uso da tecnologia, “cooperação” do setor privado com o público, e unificação das agências reguladoras, numa tentativa de marcar sua diferenciação de uma “agenda política”. Foi a participante mais aberta aos interesses empresariais expressos nas perguntas, indicando a responsabilização dos usuários na pergunta sobre judicialização; afirmando que “não adianta falar em formação se continuamos formando péssimos profissionais”, ao debater o tema da liderança, e dizendo “ser música para os ouvidos” a pergunta que apontou para a inserção do setor privado na ordenação e planejamento do sistema.

Com a experiência de quem já foi ministro, Arthur Chioro conseguiu falar dos pontos altos da inserção da iniciativa privada no SUS, buscando “ressaltar a confiança do setor”, sem deixar de frisar a centralidade da agenda política. Trouxe à baila a importância das políticas industriais, das parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDP), dos hospitais filantrópicos de excelência (como o Albert Einstein em que Bolsonaro encontra-se internado) e da ampliação da assistência farmacêutica por meio do programa Farmácia Popular, mas frisou também a necessidade de revogação da Emenda Constitucional 95 e a “ampliação da base de orçamento público para garantir acesso com qualidade”, enfrentando assim o subfinanciamento. Chioro foi enfático ao afirmar que a atividade de planejamento compete ao Estado e que, num eventual governo Haddad, não se abrirá mão da gestão do sistema, contando com “uma forte participação” do setor privado, mas ouvindo também os gestores estaduais, municipais e os conselhos. “Temos visto experiências locais em que literalmente se entrega a capacidade de gestão [à iniciativa privada]. Esse país é extremamente heterogêneo. […] O setor privado não está distribuído homogeneamente. Um projeto de parceria público-privado em São Paulo tem uma dimensão, mas nas demais 437 regiões de saúde isso se transforma num desafio muito maior”.

Ao conclamar a união da sociedade brasileira para “criar redes em defesa da saúde”, Marcia Bandini encarnou bem a estratégia do discurso centrista, apresentando ideias para o que entende como “um SUS universalista no direito”, ressaltando, para isso, cooperação de órgãos públicos, filantrópicos e privados com avaliação por metas de desempenho; capacidade técnica e gestão eficiente. “A gente faz muito com R$ 3 por dia nesse país. Não dá pra tomar um cafezinho, nem pra pegar o ônibus aqui na cidade.” Ainda na apresentação, foi quem destacou os eixos de forma direta: reorganização do sistema; prevenção e promoção da saúde; e ações articuladas e intersetoriais. Defendeu ainda a definição de autoridades sanitárias para cerca de 400 regiões de saúde por critérios técnicos e sem interferência de indicações e a reorganização das agências reguladoras com total independência da agenda política. Bandini não tocou na polêmica EC 95, ressaltando apenas que “austeridade tem de ser no combate ao desperdício e à corrupção”.

David Uip valorizou toda a experiência à frente do maior orçamento público entre os estados para destacar sua concepção de gestão orientada pelo acesso ofertado centralmente por organizações sociais e demais instituições privadas em rede com o serviço público, mas se valeu de uma leitura enviesada como justificativa. “O Sistema Nacional de Saúde é composto pelo SUS e pela iniciativa privada. O SUS é público, mas não é estatal”, repetindo uma cantilena criada pelos representantes do mercado em 2013 sem nenhum respaldo no texto constitucional. Ainda na apresentação, destacou o projeto de sustentabilidade para as Santas Casas paulistas como modelo a ser seguido e ressaltou a redução do financiamento do SUS pelos entes públicos, apontando a necessidade de “encurtar o caminho do que é público e privado”. Defendeu ainda as PPPs como estratégia “criativa” para alavancar orçamento e organizar o sistema e afirmou que o pagamento por produção é incompetente e incentivador do desperdício. Ao final, foi enfático: “Saúde não é coisa para amador. Presidência da República não é coisa para oportunista. […] Ninguém aqui se iluda que a gente vai ter mais dinheiro em 2019. Ninguém se iluda que nós vamos ter mais disponibilidade de recursos. Vamos precisar de rigidez e criatividade”.

A máxima “desenvolver para devolver os melhores serviços ao público” foi repetida quase que em todas as intervenções de Henrique Javi. No curto tempo da apresentação, o secretário cearense conseguiu chamar o setor privado ao diálogo, ressaltando a necessidade de marcos regulatórios “desmistificando a criticidade das relações público-privado” e articular o tema da eficiência com o debate do financiamento, declarando o compromisso em romper com a política de austeridade sob a égide da EC 95. Falou ainda de uma nova organização do modelo “preventivo centrado no cidadão”, implementado no estado do Ceará e cujos resultados foram atestados recentemente em boletim da Firjan. O ministeriável voltou à carga no binômio desenvolvimento-financiamento tanto na pergunta sobre judicialização, incluindo na resposta a reformulação do pacto federativo; como na pergunta sobre política industrial. “Quatro setores vão merecer atenção especial e o complexo industrial da saúde é quem vai justamente botar o Brasil na vanguarda. Temos excelentes universidades e excelentes pesquisadores, com produtos totalmente possíveis de serem desenvolvidos em nosso contexto e estão relegando e trazendo de fora”, numa das poucas citações às estruturas cientificas e universitárias nacionais do evento. Foi quem mais vezes estourou o tempo e mais vezes citou o nome do seu candidato.

O debate está disponível na íntegra no canal da Fiesp no YouTube. Vale a pena conferir para ver os demais posicionamentos dos ministeriáveis e captar nuances e discrepâncias com programas das candidaturas e as trajetórias dos políticos e partidos. É uma aula de Saúde Pública, num debate altamente qualificado e pautado exclusivamente pela iniciativa econômica, que segue no seu histórico papel de “partido da saúde”, que não brinca em serviço e impõe suas cartas ao SUS e ao conjunto das políticas de saúde.

Deixe um comentário