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Prender mais jovens deixaria a sociedade mais segura?

Professora de direito Marília Budó avalia que foi construído um mito que o encarceramento em massa diminuiria os crimes

O Brasil é o terceiro país com maior população carcerária do mundo, atrás de China e Estados Unidos. De acordo com o Infopen, sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, em 2016 o país tinha 726 mil pessoas encarceradas, número que praticamente dobrou na última década –  em 2005, eram 361 mil. No entanto, a violência aumentou. Entre 2005 e 2015, o número de homicídios subiu 22,7%, de acordo com o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O problema da segurança pública tem sido uma pauta importante destas eleições. Apontado como favorito nas pesquisas, o candidato Jair Bolsonaro (PSL) propõem o endurecimento de punições e é favorável à proposta de redução da maioridade penal. Em agosto deste ano, ele alegou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deveria ser “rasgado e jogado na latrina” porque seria um “estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”.

O Brasil de Fato entrevistou Marília Budó, autora do livro “Mídias e Discursos do Poder – Estratégias de legitimação do encarceramento da juventude no Brasil”, que discorda de Bolsonaro e avalia que é necessário cumprir o que está no estatuto. Na obra, a professora de direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) trata como a mídia amplifica discursos incorporados ao senso comum que associam o aumento da criminalidade a uma suposta benevolência do ECA e uma falta de responsabilização de jovens que cometem crimes.

Na entrevista, Budó comenta a postura histórica dos jornais de caracterizar jovens, especialmente pobres e negros, como “ameaçadores”. A professora também avalia que não houve uma discussão séria a respeito da proposta de redução da maioridade penal e defende que a democratização dos meios de comunicação é necessária para mudar a percepção da população sobre segurança pública.

Brasil de Fato – No livro você fala sobre os vários discursos incorporados ao senso comum a respeito do aumento da criminalidade, associado ao aumento da delinquência juvenil, e como isso é reproduzido e ampliado pela mídia. Queria que você fizesse um breve resgate histórico de como esse assunto vem sendo tratado no Brasil nos últimos anos. Você avalia que houve um aumento desse discurso punitivista e de supostas soluções relacionadas ao encarceramento em massa, ou isso sempre esteve presente?

Marília Budó – Esse discurso punitivista que tenta etiquetar o adolescente negro e pobre como sendo inimigo da sociedade não é uma novidade. É um discurso que se pegarmos jornais da década de 1960, 1970 e também da década de 1980, antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), notamos claramente uma tentativa dos meios de comunicação de focar no adolescente pobre e negro como sendo um risco, uma ameaça, para o que seria essa “sociedade de bem” que é sempre qualificada como uma sociedade branca de classe média ou alta, com medos vinculados ao patrimônio. [Os jornais] mostram claramente quem são os atores envolvidos nessa narrativa, desde quem é o “cidadão de bem” e de quem é essa “ameaça”.

Esse discurso também foi muito sustentado pelos militares nas políticas em relação à criança e ao adolescente que foram instituídas pela ditadura. A criação de Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], por exemplo. Podemos lembrar que nesse contexto das décadas de 1970 e 1980 era muito frequente notícias a respeito de rebeliões em Febem, sempre mostrando esse adolescente como sendo incontrolável, como uma ameaça, um risco.

Então de fato isso não é uma novidade. Se for pensar no recorte racial e de classe social fica bem evidente no jornalismo do início do século 20, essa ideia do “pivete”, desse adolescente pobre que está nas ruas, do abandonado que é o vulnerável e se torna o perigoso. Sobretudo a partir de 2000, nesse contexto em que já deveríamos ter um ECA consolidado, com políticas públicas consolidadas, temos na verdade um retorno ao discurso da Febem e da lógica do “adolescente perigoso” no contexto da ditadura militar.

Parte desse discurso sobre aumento da insegurança associado aos jovens também supõem que existe uma benevolência do ECA. Trazendo essa discussão para o contexto das eleições, o candidato a presidência Jair Bolsonaro disse, em agosto deste ano, que o ECA deveria ser “rasgado e jogado na latrina” e que seria um “estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”. Você acredita que o discurso midiático dos últimos anos permitiu que esse tipo de fala fosse feita e inclusive apoiada por parte dos brasileiros?

Esse é um dos grandes mitos que envolvem não só o ECA, mas também toda a lógica da punição e do castigo. Vigora no senso comum a ideia que penas mais graves têm maiores probabilidades de afetarem os índices de criminalidade. O que não é uma verdade. Não existe nenhuma comprovação empírica. Pelo contrário: quanto maior o aprisionamento, seja de adolescentes, seja de adultos, a tendência é que haja o aumento da criminalidade, tendo em vista o rompimento dos laços sociais, o afastamento da pessoa do mercado de trabalho, entre outras questões.

Um dos aspectos importantes que inclusive trabalho bastante no livro é que não vejo os meios de comunicação como criadores desse discurso, mas como propagadores desse discurso preconceituoso que já está presente na sociedade. Como legitimadores, por exemplo, de uma polícia extremamente violenta e genocida em relação a essa mesma juventude que é etiquetada como ‘ameaça’ para a sociedade e que são na verdade as pessoas mais ameaçadas, porque são as pessoas mais assassinadas. Mas isso não é algo criado pelos meios de comunicação. Isso é uma prática do nosso sistema penal que sempre foi assassino em relação aos adolescentes negros e pobres.

Os meios de comunicação por trazerem esse discurso do medo, por inclusive construírem ondas de criminalidade juvenil – esse é o termo usado pelos meios de comunicação, a ideia de delinquência juvenil – mas isso que já está enraizado na sociedade. É claro que os meios de comunicação acabam atuando na consolidação de uma estrutura argumentativa bastante clara, inclusive no discurso político. Esse mesmo discurso depois vai embasar propostas como, por exemplo, de redução da maioridade penal e as propostas legislativas de aumento do prazo de internação, ou seja, para buscar aumentar o período de tempo que o adolescente fica internado, de acordo com o ECA, sem alterar a Constituição.

Se por um lado essas duas propostas possuem fundamentações um pouco diferentes, na prática o resultado é o mesmo: o aumento do encarceramento de adolescentes, seja nas instituições específicas para adolescentes, seja nas prisões no sistema carcerário – que está superlotado, péssimas condições e descumpre a normativa brasileira e internacional a respeito das condições dos direitos dos presos.

Se pegar a arquitetura do discurso político dentro das propostas de aumento do prazo de internação e de redução da maioridade penal e colocar em um paralelo com o discurso midiático cotidiano, aquele das pequenas notícias que aparecem tratando de pequenos atos infracionais que acontecem diariamente, notamos claramente qual a fonte utilizada pelos políticos no momento de fazer este tipo de proposta. Não é uma fonte legitimada do ponto de vista científico e jurídico que são os campos nos quais os políticos deveriam buscar informações para produzir políticas públicas.

O que nós notamos é que o ECA, ao contrário do que proposto pelo candidato Jair Bolsonaro de que deveria ser rasgado ou jogado na latrina, não é o problema. O nosso grande problema é que o ECA nunca foi efetivado na sua história. Em todos esses 28 anos da sua existência, o ECA nunca foi obedecido. Seja pela ausência da estrutura que ele prevê para proteção da criança e adolescente, seja em função da ausência de uma interpretação de acordo com seus princípios por parte do próprio judiciário. Muitos juízes ainda seguem com a mesma lógica do período da ditadura em que o adolescente era visto como um objeto de tutela do Estado e não como um sujeito de direito. Isso é o que está acarretando o aumento da privação de liberdade de adolescentes. A respeito da ideia de leniência do ECA, na verdade muitos adolescentes ficam mais tempo privados de liberdade em função de ato infracional pequeno, com baixo dano social, muito mais tempo do que um adulto ficaria caso tivesse praticado exatamente o mesmo crime. Isso porque, no caso do ato infracional, por mais que haja previsão de limite máximo de três anos de internação, o fato é que os adultos quando só ficam efetivamente em regime fechado durante um sexto da pena. Então para que fique três anos em regime fechado  precisa cometer um crime cuja pena seja de 18 anos. Homicídio, por exemplo, tem pena mínima de seis anos e máxima de 20 anos. Nenhuma pessoa que praticou homicídio simples chega a ficar três anos em regime fechado. Ou seja, se a gente for colocar na ponta do lápis o tempo que os adolescentes ficam internados por alguns tipos de crime, nós vamos perceber que eles ficam mais tempo privados de liberdade do que os adultos. Então mesmo na matemática esse argumento não se comprova.

Os meios de comunicação atuam reproduzindo um mito de que o adolescente não é responsabilizado [pelos crimes]. Ele é responsabilizado, só que não criminalmente, porque o objetivo da responsabilização estatutária, prevista no ECA, é socioeducativa. O objetivo é buscar a reabilitação, a integração social e sobretudo a educação, porque estamos falando de uma pessoa que está em processo de desenvolvimento, que ainda não tem maturidade, por isso não pode ser considerado um adulto e ser tratado como tal.

Você falou desse mito da não responsabilizar os jovens. Como você avalia a discussão da maioridade penal na nossa sociedade, por parte dos meios de comunicação, dos políticos e das pessoas de modo geral?

O que tenho notado como professora e como cidadã é que de fato discussão não existe discussão, não existe debate público sério que trate o que efetivamente tem sido aplicado do ECA e o que tem sido deixado de lado, de que maneira os adolescentes são efetivamente tratados pela sociedade, como as políticas públicas têm sido implementadas em relação a todos os direitos sociais (saúde, educação, acesso ao trabalho). Então debate mesmo não existe.

O que a gente nota por parte dos meios de comunicação é uma ampla veiculação em épocas de ondas de pânicos morais a respeito de criminalidade juvenil em que publicam pesquisas de opinião pública que trazem percentuais da população favorável a redução da maioridade penal. Mas quem pode responder se é a favor ou contra se sequer sabe de que maneira efetivamente os atos infracionais praticados por adolescentes impactam na sociedade?

Uma das coisas que pouco se fala é, por exemplo, que os crimes mais graves como homicídios, estupros, enfim, praticados por adolescentes não representam nem 1% do número de homicídios e estupros que há condenação no Brasil. O número é tão absurdamente pequeno, mas as pessoas não sabem disso.

De fato, debate de enfrentar questões que estão em jogo, como a superlotação de presídios, de que maneira isso impactaria nos presídios, como isso impacta na própria concepção que temos do que é adolescência, tudo isso são questões que acabam ficando de lado e nunca aparecem no debate público.

Essas são as temáticas centrais quando esse debate aparece na academia, mas não é na academia que os políticos vem beber, não é nessa fonte. A fonte é aquela que impacta a população. É aquela que traz uma resposta aos medos, sejam abstratos ou concretos, mas há ansiedades de respostas por segurança. Segurança que é entendida nesse sentido de segurança individual, raramente no sentido de segurança coletiva ou social. Quando na verdade os maiores medos das pessoas não são individuais, mas eles são muito utilizados pelos meios de comunicação e pelos políticos para angariar votos.

O Bolsonaro, por exemplo, foi eleito como deputado só com o bordão “pela redução da maioridade penal”. Ou seja, a gente nota claramente o quanto esse é um bordão que comunica, que diz algo em função dessa construção já existente de que o nosso problema seriam os adolescentes infratores, quando na verdade isso não representa quase nada, muito pouco do que são os crimes graves cometidos no nosso país.

Marília, você também propõem na sua pesquisa que é necessários reivindicar a democratização dos meios de comunicação. Queria que você falasse um pouco sobre isso. O que é democratizar os meios de comunicação e como isso ajudaria a qualificar o debate sobre encarceramento da juventude?

A democratização dos meios de comunicação passa pela necessidade de um controle social das informações que são transmitidas pelos meios de comunicação. O controle social é a possibilidade de participação da sociedade na definição do que são as pautas mais importantes. Isso também passa necessariamente por uma reconfiguração na propriedade dos meios de comunicação, porque as televisões, por exemplo, são concessões de serviço público. Por ser a concessão de serviço público, existem regras para que essas empresas que atuam dentro desse contrato de concessão devem seguir. Isso significa que notícias que violam direitos fundamentais, por exemplo, não poderiam ser divulgadas com a facilidade que são hoje.

Notícias que violam os direitos a intimidade, a vida privada, a imagem, a própria presunção de inocência de muitas adolescentes que são acusados de atos infracionais, todas essas são violações a direitos individuais que são praticadas cotidianamente pelos meios de comunicação.

Alguns desses aspectos são então relacionados a propriedades dos meios de comunicação é inadmissível que poucas famílias, como no Brasil oito famílias, detém os veículos de comunicação. Alguns grupos possuem, além de [canal de] televisão, jornal revista, rádio, sem que haja qualquer tipo de controle do poder público.

Não se trata de censura, como é dito sempre que vem a tona quando falamos em democratização. Todas as democracias mais sólidas do mundo possuem legislação de regulamentação dos meios de comunicação. Na Inglaterra, conhecida pelo debate da liberdade de imprensa, existe uma norma de regulamentação dos meios de comunicação, inclusive mais interventiva do que era proposta do primeiro governo Lula, em 2003, quando fizeram pela primeira vez debate sério sobre democratizar os meios de comunicação.

Claro que hoje, levando em consideração as novas mídias, as redes sociais, o próprio WhatsApp, existe toda uma outra questão que tem que ser levada em consideração que em 2003, por exemplo, quando houve esse primeiro debate no Brasil, isso não era uma realidade, nós nem tínhamos smartphones naquela época.

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