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Sem reajustes há seis anos, bolsa é única fonte de renda para pesquisadores

Da suspensão de trabalhos à privatização do conhecimento, comunidade acadêmica teme efeitos de cortes à pesquisa

O estudante Igor Alves de Souza, de 25 anos, dedica todos os dias à universidade horas que equivalem a uma jornada completa de trabalho.

Igor sai cedo de casa, em Ribeirão Preto, município do interior de São Paulo, e percorre 40 minutos até chegar o campus da Universidade de São Paulo (USP). De lá, onde estuda o comportamento de primatas, só volta ao final do dia.

“Minha rotina está 100% vinculada à universidade”, conta ele. Graduado em Biologia, o pesquisador estuda a preferência alimentar dos bugios, uma espécie de macaco também conhecido pelo nome de guariba, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao Ministério da Educação.

No início do mês, a Capes anunciou a suspensão de todas as novas bolsas de pesquisa, suprimindo um total de 4.798 bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado. 

A agência de fomento argumentou que os cortes visavam “atender as metas de contingenciamento determinadas pelo Ministério da Economia”. No dia 5 de maio, a Capes sofreu um corte de R$ 819 milhões de seu orçamento. O valor representa uma perda de 19%, dos R$ 4,2 bilhões que a agência teria disponível neste ano.

Após a repercussão negativa, a Capes destravou o pagamento de 1.224 bolsas de pós-graduação e de 100 bolsas de doutorandos. Mas cerca de 3,5 mil bolsas ainda permanecem bloqueadas.

A Capes apoia mais de 93,5 mil bolsistas na pós-graduação, além de 105 mil profissionais de educação básica.

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Pesquisadores não podem ter outro emprego

As bolsas da Capes, como a recebida por Igor, requerem dedicação exclusiva à pesquisa. Ou seja, os estudantes recebem o valor R$ 1,5 mil, no mestrado, e de R$2,2 mil, no doutorado, e não podem ter outro vínculo empregatício. A agência distribui bolsas de mestrado e de doutorado diretamente às instituições que possuem cursos de pós-graduação stricto sensu avaliados com nota igual ou superior a 3.

Para acumular bolsa com atividade remunerada é necessário que o estudante já bolsista consiga algum emprego na área de seu estudo. No entanto, cabe ao orientador permitir este acúmulo.

A bolsa que Igor recebe é a sua única renda mensal. A remuneração é também o que cobre os gastos que ele tem com a própria pesquisa, como livros e viagens para pesquisa de campo.

“Grande parte da minha bolsa vai só para conseguir vir para USP todos os dias. Eu tenho que comer aqui — apesar de ter um restaurante universitário que é mais barato, ainda é um custo — e tenho custo do transporte. Eu tiro tudo isso da bolsa”, explica.

Mesmo com as dificuldades, Igor tem convicção da importância do seu trabalho no país que tem maior diversidade de primatas restantes no planeta, mas também a maior quantidade de espécies ameaçadas de extinção.

“Se não fossem esforços [de pesquisadores] para reintroduzir e recuperar as populações naturais, a gente teria perdido essa espécie”, argumenta.

Além disso, ele explica que os trabalhos na área da biologia são a base para que outros pesquisadores desenvolvam pesquisas práticas, por exemplo, na medicina.

No mesmo laboratório que ele trabalha, um grupo de estudantes desenvolvem alternativas para curar doenças neurodegenerativas com veneno de aranhas. O objetivo é usar as moléculas das substâncias tóxicas para tratar, por exemplo, AVCs, glaucomas ou casos de epilepsia.

Trabalhos com essa importância, porém, estão ameaçados com a desvalorização da pesquisa no país. É o que Igor já observa na USP. “O que eu vejo é que, desde que entrei na faculdade, os laboratórios estão esvaziando muito. Há cinco ou seis anos atrás, eles tinham quase 15 pessoas; hoje, alguns têm apenas três”, relata.

Impactos

A paralisação de pesquisas é algo que o professor José Foggiatto teme após o corte de bolsas. Ele trabalha no laboratório de impressão 3D da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O local desenvolve trabalhos de engenharia que são aplicados na indústria e também na área de saúde.

Foggiatto desenvolve órteses para crianças com deficiências e também pesquisa a possibilidade de utilização de novos materiais na área. As pesquisas dão retorno direto e indireto à comunidade. Um dos projetos de mestrado do grupo, por exemplo, já atendeu sete pacientes gratuitamente para quem não tem condições de pagar uma prótese.

“A gente tem atendido gratuitamente pacientes que têm necessidade de uso de prótese craniana. Como a gente não pode oferecer para o médico o material, porque isso depende da Anvisa, a gente fornece o molde e o médico esteriliza esse molde e usa para usar no paciente. Isso tem barateado muito o processo, já que a gente fornece esse molde gratuitamente”, ressalta.

Foggiatto se dedica à universidade há 29 anos. Há 5 anos, é pesquisador de desenvolvimento tecnológico do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O órgão é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. As bolsas do CNPq também podem ser impactadas, já que houve redução de 42% no seu orçamento. O corte equivale a R$ 2,1 bilhões.

O professor trabalha com orientação de oito projetos de mestrado e doutorado que desenvolvem, por exemplo, próteses de mama. “São todos trabalhos que têm um valor social bastante grande”, defende.

O grupo de pesquisa é formado por engenheiros, designers, terapeutas ocupacionais abrem mão de entrar no mercado de trabalho para se dedicar 40 horas na semana à pesquisa acadêmica. “Uma jornada de trabalho, sem dúvidas. Ganhando um salário que às vezes é um quarto do que ele receberia trabalhando na indústria”, argumenta Foggiatto.

Para ele, os anúncios de cortes vão representar a diminuição de alunos que poderão se dedicar a mestrados e doutorados de vários alunos.”Tem muito aluno que só faria o mestrado ou doutorado se tivesse bolsa. Ainda mais aqui na região de Curitiba, que tem um mercado de trabalho bastante agressivo, que corre atrás de nossos alunos. Então, você convencer um aluno a fazer o mestrado sem tem bolsa nenhuma é praticamente impossível”, explica.

Dedicação ao conhecimento

Na época em que tentou entrar no doutorado, a historiadora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva era concursada dentro do governo do estado da Paraíba, mas teve que pedir exoneração. “Eu estava no probatório e não consegui uma licença. Então fiquei só no doutorado e perdi uma vaga no concurso público porque não consegui dar conta dos dois”, lembra.

“E é aquela coisa: você está sem Previdência, sem seguridade nenhuma, sem estabilidade”, acrescenta ela, que optou por abrir uma previdência privada.

Há dez anos, a pós-graduanda estuda as consequências da ditadura militar para os trabalhadores. Mais especificamente, ela se dedica à destrinchar o crescimento do número de acidentes de trabalho entre 1964 a 1985.

Hoje, ela faz parte do programa Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde realiza atividades diversas que vão da docência, pesquisa à participação de bancas de monografias da graduação. “É uma dedicação muito grande,não só para nossa carreira, mas para a construção do conhecimento, atuando também na área do ensino e orientação”, elucida.

O trabalho de Ana Beatriz mostra que, durante a ditadura, os índices de acidentes de trabalho do país estavam entre os mais altos do mundo. Entre jornadas exaustivas e salários achatados, a pesquisadora demonstra como o ambiente de violência do período e a proibição de sindicatos atuantes levaram ao silenciamento de trabalhadores e a condições insalubres.

“De fato, minha pesquisa não é nem um pouco interessante para quem quer dizer que a ditadura foi um mar de rosas”, comenta Ana Beatriz. “Eu desminto isso a todo momento, com dados, com base em diversas fontes. Com reflexão em vários autores. Temos um nível de seriedade e comprometimento muito grandes”, rebate a pesquisadora.

Privatização do conhecimento

Com as instituições públicas perdendo verbas, o professor da UFSC Werner Kraus Junior, do Departamento de Automação e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), avalia que o governo vai na contramão do que se faz internacionalmente, empurrando o setor de pesquisa para a iniciativa privada.

“A  mensagem rudimentar e tosca de Paulo Guedes [Ministro da Economia], de que seria possível constituir um sistema privado que visasse o lucro na comercialização do conhecimento, é uma tragédia”, diz o professor.

Kraus pontua que, hoje, não há produção de conhecimento expressivo fora das universidades públicas. Hoje, 90% das pesquisas brasileiras estão dentro das universidades públicas.

Na visão do professor, a relação de universidades com o setor produtivo pode acontecer, desde que regulada pelo governo. “Vindo da área de exatas, me parece natural que o setor produtivo, uma vez autorizado, possa se beneficiar das produções acadêmicas e intelectuais da universidades. A questão para mim é o retorno desse relacionamento: o quanto fica nas universidades para reforço de suas ações e o quanto fica na mão do setor privado”, analisa.

“No Brasil, infelizmente, essa relação é desequilibrada, a favor do setor privado que se apropria dos resultados e da produção de conhecimento sem o devido retorno.”

O professor conclui dizendo que o efeito dos cortes das bolsas será uma “elitização radical” da pós-graduação brasileira. “A economia com a Capes é irrisória frente ao estrago considerável que pode fazer”, finaliza.

Nesta terça-feira (14), a Câmara dos Deputados convocou ministro da Educação, Abraham Weintraub, para explicar os cortes na área da Educação aos parlamentares.

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