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Ser criança na sociedade do consumo

O impacto da publicidade infantil na subjetividade da criança é tema para reflexão e ação dos adultos preocupados com a formação de uma consciência crítica

Saída da escola, um menininho loiro dá uma mordida na bolacha e olha o relógio. “Que horas são?”, pergunta uma criança mais velha. “É hora do Shrek!”, ele responde, mostrando e elogiando o próprio relógio. “Juntei cinco embalagens de bolacha da linha ‘Gulosos’ e mais R$5 e ganhei um relógio do Shrek Terceiro”, se exibe orgulhoso. “São quatro modelos, colecione” ressoa uma voz em off acompanhada por uma garotinha dançando e sorrindo.

A retirada do ar da propaganda da Bauducco foi resultado da primeira vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tratou do tema da publicidade infantil. Os ministros que julgaram a Ação Civil Pública entenderam que o consumidor não pode ser obrigado a comprar um produto que não deseja para ter acesso a outro, (isso configura venda casada, proibida no Brasil), além de ser um comercial voltado ao público infantil. Além disso, o Ministério Público – que citou o uso de “capitalismo selvagem” – argumentou que a publicidade infringe o Código Brasileiro de Auto Regulamentação Publicitária (Conar), que veda o uso de verbos no imperativo em propagandas voltadas às crianças. A defesa da Bauducco alegou que a promoção era destinada aos adultos.

Para a psicóloga Laís Fontanelle, do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, “esse caso veio coroar um trabalho de dez anos de luta e sensibilização”. O Instituto tem foco na área da infância e debate os malefícios da publicidade, faz um trabalho de articulação jurídica em Brasília e encaminha denúncias recebidas pela sociedade civil. “Ganhamos maior adesão. Esse tema é um problema urgente e não é mais restrito à esfera familiar”, observa Laís, lembrando que em 2014 a publicidade infantil foi tema de redação do Enem.

Regulamentação e denúncias

Nesse mesmo ano de 2014 foi aprovada a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que considera abusiva a publicidade voltada para crianças de até 12 anos de idade. Assim, é proibido que anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, sites, embalagens e apresentações tenham o direcionamento à criança. A Resolução, na realidade, reforça uma regulamentação que já existia. A publicidade infantil fere o que está previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código de Defesa do Consumidor. O problema não está no papel. Está na prática. 

Mariana Sá é mãe de Alice e Arthur, publicitária e mestre em políticas públicas. Fundou, junto com outras mães e pais, o Movimento Infância Livre de Consumismo (Milc). “O Conar não existe para proteger a população, mas para proteger a publicidade. Além disso, por ser um código de conduta, não tem força de lei para punir quem o infringe”, esclarece Sá, que também integra a Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc): “Por isso somos a favor da responsabilização de anunciantes, publicitários e emissoras pelas mensagens prejudiciais que emitem”.

Quando o Milc começou, em 2012, era prática recorrente do movimento a denúncia ao Conar das campanhas consideradas abusivas. “Depois de um tempo percebemos que estávamos perdendo tempo: o conselho levava tempo demais para apreciar as denúncias e acaba solicitando a suspensão ou modificação de campanhas que já não estavam mais no ar”, conta Mariana. “Hoje preferimos estar focadas na disseminação de informação para mães e pais, o que lhes permite desvendar armadilhas de marketing e escolher entre as marcas que não tenham como prática incidir diretamente sobre a criança”, narra.

Impacto da publicidade infantil

Não é a toa que o público infantil é visto com ganância por parte das empresas. De acordo com a TNS/InterScience, as crianças brasileiras influenciam 80% das decisões de compra de uma família. Em 2013 cerca de R$112 bilhões foram investidos em publicidade infantil no Brasil, segundo o Ibope Mídia. A televisão segue sendo a ferramenta preferida para alcançar as crianças: cerca de 70% do investimento publicitário é nessa mídia. Se, como aponta o Ibope de 2012 (Painel Nacional de Televisores) a criança brasileira fica em média cinco horas e meia por dia na frente da TV, é possível ter ideia da influência diária que os comerciais têm no imaginário infantil.

“Não há como fugir do sistema no qual estamos inseridos e as crianças recebem, muitas vezes em primeira mão, a comunicação mercadológica”, descreve Vanessa Anacleto, mãe de Ernesto e também cofundadora do Milc. “Quando a publicidade lida com os valores humanos de modo a deturpá-los em detrimento dos valores de mercado o resultado é uma profunda confusão por parte da criança. Afinal, consumimos um produto ou serviço em razão do valor do produto ou serviço em si ou por que aquilo vai nos conferir status? Isto são valores que se transmita a uma criança?”, questiona Anacleto, autora do blog Mãe é tudo igual e do livro Culpa de mãe.

Na cartilha “Contribuição da Psicologia para o fim da publicidade dirigida à criança” publicada em 2008 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), o psicólogo e educador Yves de La Taille versa sobre o polissêmico conceito de autonomia. Em sua opinião a criança não autônoma, portanto heterônoma, legitima regras e condutas por serem valorizadas e explicadas por seus pais ou, na área do conhecimento, por exemplo, entende como verdadeiras as afirmações vindas de figuras de autoridade.

“A legitimação da regra ou da verdade não se deve a um trabalho intelectual de análise, mas, sim, pela submissão da consciência a pessoas consideradas superiores”, argumenta La Taille, podendo essas pessoas serem a mãe, a professora, o amigo, o Shrek, o Ben 10 ou um dragão gente boa. Segundo o psicólogo, isso acontece porque “por um lado a criança está iniciando-se às regras, aos valores e aos conhecimentos do mundo em que vive e, para tanto, seguir ‘guias’ torna-se tão natural quanto necessário; por outro, porque sua capacidade cognitiva ainda não lhe permite estabelecer relações de reciprocidade, relações essas necessárias à autonomia”.

Vontade e força de vontade

É mais fácil induzir alguém que não sabe bem o que quer a desejar algo que lhe propomos do que alguém que já tem um projeto definido. A partir desse raciocínio, Yves de La Taille caracteriza força de vontade como resultado de uma projeção em que se avalia o valor de cada vontade. Estou com vontade de tomar uma cerveja no almoço mas não vou porque quero me concentrar na leitura de um livro mais tarde, por exemplo.

No caso das crianças, La Taille sustenta que as vontades passageiras e as atrações momentâneas as movem mais do que as projeções de médio e longo prazos. “Isso se deve a duas razões. Em primeiro lugar, à dificuldade de descentração, tanto cognitiva quanto afetiva. Em segundo lugar porque, nessa fase da vida, ainda não há (e nem deve haver) reais projetos, reais projeções consistentes para o futuro. O ‘aqui e agora’ ainda permanece forte”, aponta.

Se o principal tipo de propaganda era aquele caráter clássico de 30 segundos como a propaganda do “Compre batom” ou “Hora do Shrek”, hoje é possível ver uma transformação na publicidade. “Marcas se fantasiam de entretenimento, o Ronald McDonald tem agenda pública de visitas a escolas; tem o fenômeno dos youtubers, que são celebridades mirins na internet, muitas vezes cooptadas por marcas para apresentarem os produtos nos vídeos e o Unboxing, prática em que as empresas presenteiam crianças para que elas filmem e divulguem o momento do desembrulho”, exemplifica Laís Fontanelle, para quem as formas de regulação também precisam se transformar.

Sobre o embaralhamento da fronteira entre conteúdos comerciais e não comerciais no universo infantil, Mariana Sá acredita que o diálogo com a criança é a forma mais eficiente de protegê-la. “Para isso, mães e pais precisam entender sutilezas do discurso publicitário para poder fazer esta mediação: vejam bem, se poucos adultos têm recursos informacionais para perceber as armadilhas contidas no intervalo comercial, como vão mostrá-las e criticá-las juntos aos filhos? Este também é nosso papel no Milc”, observa Sá.

Quando a filha mais velha de Mariana Sá tinha sete anos, o papo mais recorrente entre seus colegas de escola era sobre uma novela infantil que estava no ar. Um dia ela se queixou com a mãe por não ver a novela em casa. “Eu expliquei a ela todos os motivos que iam desde ter outras coisas melhores para fazer, até a presença de merchandising nas cenas e publicidade no intervalo. Também falei das minhas estratégias durante as conversas dos adultos sobre novelas que não assisto”, expõe Sá, que em seguida perguntou se a filha gostaria de assistir um capítulo junto com ela, para mostrar do que ela estava falando. A garota disse que não, que tinha entendido e perdido a vontade.

“Você vale o que tem”

“Quando dá uma hora da manhã é que o bonde se prepara pra vibe / Quando abotoa sua polo listrada dá um nó no cadarço do tênis da Nike / Joga o cabelo pra cima ou põe um boné que combina com a roupa / A picadilha pode ser de boy mas não vale esquecer que somos vida loca / As mais top vem do nosso lado ficam surpresa ganha mó moral”, canta o famoso funkeiro MC Guimê. Para Yves de La Taille, no caso dos adolescentes, os efeitos nocivos da publicidade estão menos em fazê-los comprar todo e qualquer objeto que seja bem apresentado, mas em levá-los a adquirir coisas que para eles se associem a uma busca identitária, a um lugar social valorizado. Não se trata, é claro, de uma leitura equivocada feita pelos jovens. A ideia de que você vale o que tem é enraizada como um valor da nossa sociedade, em todas as idades e classes sociais. Uma das classes, no entanto, é a que vai conseguir adquirir com mais facilidade o tênis da Mizuno e a bermuda da Oakley que tanto aparecem nos funks de ostentação.

O psiquiatra e psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, aponta que “o objeto (que é consumido) deve ‘agregar’ valor social – e não sentimental – a seu portador, ou seja, deve ser um crachá, um passaporte que identifica o turista vencedor em qualquer lugar, situação ou momento da vida”.

Para pensadores do tema como as integrantes do Milc, o caminho é a conversa com o jovem e a criança desde cedo para questionar isso que La Taille chama de “cultura da vaidade”: “compreender as relações entre consumo, trabalho e economia, refletir sobre os graves problemas de distribuição de renda e ver com uma consciência crítica as tentativas de sedução para que produtos sejam comprados. Para isso, é claro, é preciso que os adultos sejam coerentes”.

Feiras de troca de brinquedos são umas das iniciativas vistas como uma boa ferramenta para refletir sobre o consumo infantil. Em seu site, o Instituto Alana tem um passo a passo para ajudar que as pessoas organizem esses eventos de forma autônoma. “Iniciativas possíveis de serem tomadas pela sociedade civil são reduzir a audiência de canais que veiculem publicidade para crianças, selecionar suas aquisições entre as marcas que não anunciam para criança, demonstrar insatisfação diretamente às empresas e fazer denúncias aos órgãos de proteção do consumidor para aumentar a pressão social no Estado”, resume Mariana Sá.

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