A Frente Pró-Cotas reivindica a suspensão da proposta apresentada pelo governo paulista; plenária aberta será realizada amanhã (5) na Câmara Municipal de São Paulo
A Frente Pró-Cotas, formada por movimentos sociais, estudantis e sindicais que lutam por cotas étnico-raciais em São Paulo vai realizar amanhã (5) uma plenária aberta, às 19h, na Câmara Municipal de São Paulo. A atividade cobra respostas do governo paulista e das reitorias das universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista (Unesp) para a implementação de uma política de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas que de fato contemple as necessidades dessas populações.
Os movimentos reivindicam a suspensão da proposta apresentada pelo governo de São Paulo e reitorias, em dezembro do ano passado, que propõe um curso intermediário antes de o aluno entrar na universidade, num modelo chamado “College”, instituído pelo sistema universitário norte-americano. Com a proposta, os ingressantes pelo sistema deveriam estudar dois anos de forma obrigatória para, só assim – e se bem avaliados – ingressarem no curso que desejam.
Em artigo recém-publicado pelo doutor e livre-docente Marcus Orione, professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, ele afirma: “de forma elitizada, diz que negros e pobres somente podem fazer o curso desejado se considerados, com um esforço suplementar não requerido dos demais, suficientemente merecedores. Em geral, a elite paulista considera que merecem os provenientes de seu seio: jovens brancos, oriundos dos melhores colégios privados”.
Para falar sobre o tema das cotas étnico-raciais, a CUT/SP entrevistou Silvio Luiz de Almeida, advogado, professor universitário, doutor em Direito pela USP e presidente do Instituto Luiz Gama, uma das entidades da Frente Pró-Cotas. Confira.
CUT/SP: Em linhas gerais, o que representa a proposta do Governo do Estado de São Paulo?
Silvio Luiz: Entre outras questões, a proposta é equivocada por não reservar o percentual de vagas para negros e indígenas sobre o total das vagas oferecidas, por não considerar as propostas apresentadas pela sociedade civil em diferentes fóruns e por estabelecer um modelo que nunca foi debatido pelos movimentos sociais, em nenhum espaço de debate, e nem mesmo pelos próprios representantes do governo e das reitorias. O modelo “college” é uma exigência que não se faz aos demais ingressantes e torna mais difícil a entrada dessas minorias. Esses dois anos de espera desmobiliza o aluno e acaba reforçando o preconceito e uma baixa expectativa de desempenho que já se tem em relação aos negros e indígenas. Parte do pressuposto de que eles não são capazes de acompanhar o curso, como outros estudantes, o que já foi refutado por pesquisas anteriores. É por esse motivo que considero a proposta inconstitucional porque se faz uma exigência descabida para alunos que são provenientes de escolas públicas e pertencentes a uma minoria étnico racial. A proposta fere, no mínimo, três grandes princípios constitucionais: o da dignidade humana, da razoabilidade e o da isonomia.
Que tipo de resultados a política de cotas étnico-raciais já trouxe?
Ao longo da história, as cotas tiveram pelo menos duas virtudes: a primeira foi a de forçar um debate mais sério sobre o racismo, pois à medida que os negros passaram a ocupar um espaço que antes não lhes era reservado, escancarou-se a ausência do negro nos espaços de decisão; a segunda foi propiciar a oportunidade para que milhares de jovens negros pudessem acessar o ensino superior de qualidade, que ainda é feito majoritariamente pelas escolas públicas.
Nos últimos dez anos muitas propostas a favor das cotas raciais foram apresentadas na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, como o Projeto de Lei (PL) nº 530/2004 e o PL nº 321/12. Qual a diferença entre ambos?
O Projeto de Lei 321/2012, de autoria do deputado estadual Luiz Claudio Marcolino (PT-SP) teve como inspiração o PL anterior. O que diferencia é que o último traz dentro de si o estágio atual do debate jurídico-político sobre as ações afirmativas, em consonância com as decisões do Supremo Tribunal Federal, favorável à política de cotas raciais em universidades.
A expectativa dos que têm apoiado o PL 321/12 era de que as universidades públicas organizassem seus processos seletivos, considerando o sistema de reserva de vagas já a partir de 2013, contudo, muitas são contra. Quais são os principais argumentos das universidades estaduais contras as cotas?
Há basicamente dois argumentos, um fantasioso, quase delirante; o outro soa mais sério, porém, a meu ver, é cínico e juridicamente inconsistente. O fantasioso é o que afirma que as cotas “não trarão resultados” e que já existem programas de inclusão nas universidades. Ora, esse é um argumento que peleja com a realidade. Basta ver os números nas universidades que implantaram programas de cotas para se notar que há resultados efetivos e que a participação de afrodescendentes aumentou significativamente nos últimos anos. Nem é necessário muito esforço, sendo suficiente uma pesquisa simples no google. E quanto aos programas de inclusão que supostamente já existem, como o Inclusp, Programa de Inclusão Social da USP, quando se tem acesso aos números – o que já é bem difícil de obter – fica evidente que tais programas são ineficientes.
Qual o segundo argumento contrário às cotas?
É o da autonomia universitária. Segundo esse argumento, as universidades não são obrigadas a implantar programas de cotas, pois teriam o “direito” de se autorregular. Quero, primeiramente, destacar o cinismo contido nessa posição, pois é como se dissessem “sabemos que existe racismo, sabemos que as cotas são constitucionais, mas não queremos nem saber, pois aqui nós é que mandamos”. Além de tudo, juridicamente não para em pé tal argumento. Uma universidade pode escolher se oferece ensino, pesquisa e extensão? Uma universidade pode escolher se respeita ou não as diretrizes legais sobre a educação nacional? Uma universidade pode escolher se negros e indígenas podem ou não estudar? Como a resposta é não para as três questões, é de uma obviedade constrangedora o fato de que não existe autonomia para escolher se a Constituição Federal deve ou não ser respeitada quando determina que o ensino nacional deve promover a igualdade de condições de acesso.
A autonomia universitária está contida em que parte da Constituição Federal?
Nos termos do artigo 207 da Constituição Federal. Ela é didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Não estou vendo – e desafio alguém a ver – onde está na Constituição a autonomia para decidir acerca da implementação de políticas públicas de promoção de igualdade.
Levar a autonomia universitária a tal dimensão, com todo o respeito, é desconhecer o conteúdo do texto constitucional ou acreditar que a Constituição é uma espécie de livro de auto-ajuda, sem força normativa, sem capacidade de determinar o sentido das condutas individuais. As universidades não são soberanas, são autônomas, no sentido de que podem “dar normas a si mesmas”, desde que isso seja feito nos limites da moldura legal e constitucionalmente estabelecida.