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Temporão: ‘A solução não é encarcerar os indesejáveis’

O ex-ministro critica a reformulação da Política de Saúde Mental, centrada na ampliação dos leitos de internação psiquiátrica

Em dezembro, cinco ex-ministros da Saúde divulgaram um manifesto contra a reformulação da Política de Saúde Mental, recém-aprovada pelo governo federal e pelos conselhos estaduais e municipais. No texto, Arthur Chioro, Agenor Álvares, Alexandre Padilha, José Gomes Temporão e Humberto Costa afirmam que as mudanças representam um grave retrocesso à Luta Antimanicomial no Brasil, reconhecida internacionalmente e citada como referência pelas Nações Unidas.

Em linhas gerais, a nova resolução garante a manutenção dos leitos de hospitais psiquiátricos, aumenta os valores pagos pela internação nessas instituições e estimula a criação de novas vagas em hospitais gerais, além de facilitar o credenciamento de comunidades terapêuticas para alcoólatras e dependentes químicos, em sua maioria ligada a grupos religiosos e com eficácia duvidosa.

“Há uma visão distorcida, da loucura como uma ameaça. Quem sofre algum distúrbio psíquico é visto como um desvio da norma, alguém que precisa ser afastado do convívio social”, lamenta Temporão, a defender o foco no atendimento ambulatorial, em dispositivos comunitários, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Dessa forma, o paciente é amparado por uma equipe multiprofissional, mas pode manter as suas atividades cotidianas, como trabalhar, estudar e conviver com a família.

“Imaginar que é possível, num passe de mágica, com uma internação, livrar a sociedade do problema das drogas é risível”, emenda o ex-ministro de Lula. Confira a entrevista:

CartaCapital: Por que a reformulação da saúde mental, com a ampliação dos leitos psiquiátricos, não é interessante?

José Gomes Temporão: As críticas levantadas por profissionais e especialistas do campo da saúde mental devem ser entendidas em um contexto mais amplo. O chamado movimento da reforma psiquiátrica, com raízes nas décadas de 1970 e 1980, passou a considerar o tratamento dispensado às doenças psíquicas também do ponto de vista da defesa dos direitos humanos. À época, era uma prática recorrente trancafiar os pacientes por décadas, muitas vezes sem um diagnóstico adequado. No passado, isso serviu até para familiares se livrarem de desafetos. Criaram-se, no Brasil, verdadeiros depósitos de pessoas, em condições sub-humanas, presas em asilos e manicômios.

O movimento brasileiro se inspira e dialoga com reformas ocorridas em outros países, a exemplo da Itália e dos Estados Unidos. Ou seja, lá atrás houve uma grande mobilização, de crítica a esse modelo que não resolvia a questão dos distúrbios psíquicos. Apresentou-se uma visão distinta: a de que essas pessoas deveriam ser acolhidas, como cidadãos portadores de direitos. Não fazia nenhum sentido o isolamento, até porque as famílias também deveriam participar do tratamento. Dessa forma, a internação passou a ser recomendada apenas para situações de crise e por curto período de tempo. O espaço adequado para cuidar dos pacientes com distúrbios psíquicos são os dispositivos comunitários, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as residências terapêuticas e outros espaços construídos ao longo dos últimos 30 anos no Brasil.

CC: A ideia é substituir a internação pelo atendimento ambulatorial, no qual os pacientes recebem tratamento, mas mantêm as suas atividades e o convívio social. É isso?

JGT: Exatamente. A pessoa pode trabalhar, estudar, manter o convívio familiar e social. E terá o acompanhamento de uma equipe multiprofissional, com psiquiatra, psicólogo, psicoterapeuta, terapeuta ocupacional… Evidentemente, em uma crise, quando a pessoa perde o controle sobre a sua vida e sobre a sua consciência, a internação é necessária e se justifica. Mas isso deveria ocorrer por um curto período de tempo.

Não por acaso, foi aprovada uma lei a estabelecer com clareza os critérios. Para se ter uma ideia, hoje toda internação psiquiátrica precisa ser comunicada ao Ministério Público, mesmo em situação de emergência, exatamente para prevenir abusos. Daí a nossa preocupação com as medidas anunciadas pelo governo, praticamente sem debate. Elas foram aprovadas a toque de caixa, sem consulta pública. O retrocesso é enorme: há um estímulo à internação e essa coisa absurda de usar entidades religiosas, as chamadas comunidades terapêuticas, para tratar a dependência de álcool e drogas.

CC: De tempos em tempos, o Conselho Federal de Psicologia divulga relatórios sobre graves violações aos direitos humanos nessas comunidades terapêuticas para adictos.

JGT: Exatamente. Pior: não há nenhuma evidência científica de que esse tipo de abordagem, que coloca a religião como elemento central do tratamento, tenha qualquer tipo de eficácia ou efetividade. Não por acaso, diversas entidades representativas de profissionais da saúde mental têm se manifestado contra as medidas anunciadas.

Cracolândia

CC: No caso das drogas, qual seria a melhor abordagem?

JGT: Na verdade, precisamos mudar tudo. Em primeiro lugar, precisar enfrentar o problema das drogas ilícitas no campo da saúde, e não da segurança pública, como é hoje. Portugal é um exemplo de país que mudou a sua abordagem, descriminalizou as drogas, e hoje colhe frutos. Houve uma expressiva diminuição da violência e até mesmo do consumo. No Brasil, o álcool e o cigarro são as drogas que causam mais danos do ponto de vista físico, psíquico e social, e são consumidas livremente.

Outra questão é o tratamento dos dependentes. A própria reforma psiquiátrica criou os Caps, dispositivos comunitários e abertos, nos quais as pessoas recebem tratamento e podem continuar levando as suas vidas. Não há a necessidade de internação, de trancafiar os dependentes, ainda mais à força.

CC: No senso comum, a internação é vista como mais eficaz que o tratamento ambulatorial.

JGT: As pesquisas desmentem essa tese. Por traz desse pensamento, bastante disseminado na sociedade, há uma visão distorcida, da loucura como uma ameaça. Quem sofre algum distúrbio psíquico é visto como um desvio da norma, alguém que precisa ser afastado do convívio social. Ele pode ser agressivo, causar desconforto. A lógica é: “Tirem esse sujeito da minha frente, coloquem em algum lugar que eu não perceba”. Ainda prevalece uma visão bastante preconceituosa, semelhante aquela que vemos contra pacientes com hanseníase ou tuberculose.

No entanto, com as técnicas e drogas modernas de que dispomos hoje, o dependente químico e o paciente psiquiátrico podem levar uma vida praticamente normal. Hoje se sabe que os grupos de autoajuda, como os Alcoólicos Anônimos, têm o mesmo grau de eficácia do que as terapias convencionais, com psiquiatras e medicamentos. Na verdade, o ideal é lançar mão de uma abordagem transdisciplinar e multiprofissional. Imaginar que é possível, num passe de mágica, com uma internação, livrar a sociedade do problema das drogas é risível.

Definitivamente, a solução não é encarcerar os indesejáveis.

CC: Essa reorientação da política de saúde mental está inserida na lógica do encarceramento em massa?

JGT: É o que está por trás. Parece ser muito mais confortável para a sociedade trancafiar os indesejáveis do que buscar soluções para problemas tão complexos, como é o tratamento dos dependentes químicos. É possível oferecer, porém, um tratamento mais digno e muito mais eficaz com o atendimento ambulatorial. Podemos criar leitos psiquiátricos em hospitais gerais, para os quadros agudos. Uma vez superada a crise, o paciente deve ser acompanhado em um dispositivo comunitário, como um Caps, e continuar tocando a sua vida. Essa é a visão moderna. É o que ocorre no Canadá, na Inglaterra, na Europa, em praticamente todos os países do mundo desenvolvido.

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