Evento realizado pelo Conexão Jovem/CREAS, em parceria com o CRAS PROMAI, de Itu, levou a contestação do funk à realidade de jovens da periferia
A prática dos psicólogos no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) deve se pautar pelo compromisso com a transformação social e por uma perspectiva ético política voltada para a emancipação humana.
A construção de estratégias que contribuam para o fortalecimento de indivíduos e grupos para o enfrentamento de situações de vulnerabilidade se estabelece de modo concomitante à manutenção de uma visão crítica da própria política de Assistência Social e, sobretudo, do contexto brasileiro, repleto de desigualdades e outras formas de violência, que exige não a adequação à ordem social injusta que se perpetua historicamente, mas a ação em fatores estruturantes que possa, por meio da articulação intersetorial, do trabalho interdisciplinar, da conscientização histórica coletiva, da experiência com o reconhecimento e com a garantia de direitos, do fortalecimento de vínculos e da mobilização comunitária cidadã, contribuir para a construção de um novo projeto societário.
O FUNKRAS, realizado pelo Conexão Jovem/CREAS, em parceria com o CRAS PROMAI, ocorrido em Itu (interior de SP), em 29 de novembro, demonstrou na prática esses princípios. A primeira edição desse evento levou o funk de maneira inédita para um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) no município. O estilo dominante foi o “funk consciência”, subgênero caracterizado por abordar aspectos da realidade enfrentada pela juventude periférica – racismo, segregação de direitos, preconceito e outras violências.
Realizado nas dependências do CRAS PROMAI, o evento contou com apresentações musicais de jovens MC´s atendidos pelo Conexão Jovem e também de MC´s que se aproximaram por meio da articulação com a comunidade. O line up do evento contou com os Mc´s Correaa da $ul, Surfista, Madruga e Raro.
Paralelamente às apresentações musicais houve doação de livros e exposição artística com a temática “Direitos da Juventude”, na qual os jovens expressaram suas reflexões sobre o tema a partir de redações, desenhos e colagens. Houve, ainda, um momento de microfone aberto, no qual os jovens puderam expressar suas rimas em improviso e/ou em interação com os demais participantes, no formato conhecido como medley.
Nas apresentações, os jovens expressam uma série de reflexões sociais importantes, como a violência à qual a juventude negra e periférica está sujeita, comumente exercida pelo próprio Estado, o encarceramento, a violação de direitos como o direito ao trabalho e renda, à cultura, à educação, à saúde, em paralelo aos sonhos por melhores perspectivas de existência, com maior qualidade de vida e reconhecimento social.
Para Vinicius Saldanha, psicólogo do Conexão Jovem e conselheiro municipal de Cultura, a atividade foi construída, desde o início, com protagonismo dos jovens, desde a opção pelo formato, a definição das articulações comunitárias, a escolha de em qual território realizar essa primeira edição, até detalhes da organização, como a necessidade de alimentação, transporte e comunicação. “Isso se deu por meio de uma oficina de música realizada semanalmente pelo professor Rafael, através da qual os jovens podem gravar suas músicas e a realizar outras atividades. Era um desejo antigo nosso fazer uma atividade no coração de uma comunidade periférica e felizmente o CRAS PROMAI foi receptivo à ideia e possibilitou esse momento, até então, único, mas que a gente espera que se multiplique”,
Vinícius destaca, ainda, que a atividade foi planejada como forma de estimular a vinculação de adolescentes e jovens aos CRAS, tipo de equipamento ao qual esse público infelizmente não apresenta muita adesão. Para ele, utilizar o funk como elemento agregador é estratégico “é uma forma de expressão que deve ser valorizada em diversas perspectivas, é uma forma de escuta, de acolhimento, de exercer cidadania, é uma forma de congregar, de mobilizar, então, tem tudo a ver com Assistência Social. Precisamos combater esse preconceito e aproveitar o potencial que essa cultura oferece para as políticas públicas, não só a de Assistência, mas também de Saúde, Educação, dentre outras”.
Poder transformador
Rafael Bagdonavicius, músico, professor de música e arte educador, é um profissional fundamental nessa interface Cultura e Assistência Social no município. Realizador de oficinas de música há cerca de oito anos com os mais diversos públicos e nos mais diversos equipamentos de Assistência Social em Itu, ele ressalta o poder transformador da arte e da música, que ganham em potencialidade quando alinhadas a um propósito social emancipador. “Fiquei extremamente emocionado ao ver o sucesso do FUNKRAS, um projeto que coloca a música, especialmente o funk, como protagonista e destaca sua importância como ferramenta de expressão nas comunidades onde se desenvolve. A inserção dessa manifestação cultural no território teve um valor imensurável, proporcionando aos MC´s a oportunidade de mostrar suas composições autorais, narrando o cotidiano, compartilhando experiências e expressando suas verdades e desejos”. Para ele, o fato de que as músicas não serviram como mero entretenimento, mas mostrarem uma forma genuína de dar voz a realidades muitas vezes invisíveis, reforça a identidade e a cultura das periferias.
Patrícia Moraes, psicóloga do CRAS PROMAI, considera que o FUNKRAS foi um momento marcante que “ajudou a criar um espaço de pertencimento onde todos se sentem vistos e ouvidos”. A psicóloga enfatiza a potencialidade da integração entre cultura, sobretudo a música, e o acolhimento social: “as pessoas puderam expressar livremente sua identidade sem medo de julgamento, tendo suas histórias valorizadas e se sentindo incluídas nesse processo”, o que contribui sensivelmente para o estabelecimento e/ou fortalecimento dos almejados vínculos comunitários.
Rogério Emílio, cineasta e fotógrafo com experiências de trabalho no contexto da Assistência Social, que voluntariamente cobriu o evento e disponibilizou os registros para fazerem parte do acervo artístico desses jovens, partilha dessa visão: “unindo música, literatura, poesia, coletividade e união, o evento mostrou que a cultura e a arte são poderosas na construção de uma consciência emancipatória; uma ação que garante aos jovens da quebrada o protagonismo e a representação que eles precisam”.
Participação de familiares
Outro fato que mostra o potencial de ações desse tipo foi a presença de mães e familiares de jovens vítimas de violência policial no município. Trajando camisetas com mensagens de pedidos de justiça, essas mulheres, que têm se mobilizado no município para denunciar e cobrar respostas dos órgãos públicos, foram prestigiar os jovens MC´s e deixar uma mensagem de luta para a juventude periférica. “Foi um evento em que tivemos a oportunidade de mostrar um pouco dos direitos dos jovens adolescentes da nossa cidade. Também usamos camisetas em homenagem aos meninos que perderam suas vidas recentemente e pedimos justiça e atenção nesse caso. Foi muito gratificante, gostaríamos de mais eventos como este, gratidão a todos”, afirmou Gislaine Dalbello, uma das integrantes de um grupo de mães que esteve presente no FUNKRAS.
Repercussão entre os participantes
Como não poderia ser diferente, os MC´s também deixaram importantes mensagens. Surfista MC comentou que, em geral, prefere se expressar sobre esses temas através de suas composições e, por isso, deixou suas considerações por meio de um trecho de uma de suas letras:
“Escolha teve não, tentou arrumar um trampo mas não conseguia.
Barriga ronca, fome não espera, de imediato partiu pra lojinha.
Motivo, sim, tem vários, desesperado menor com a mãe desempregada.
Obra do diabo, mente vazia de um menorzin revoltado que tá contra o Estado, vendendo entorpecente pra se levantar.
O corre é dobrado, mulekadinha da lama também quer brilhar…”.
Rogério Emílio destaca que “na quebrada existem mais espinhos do que rosas e Correaa nos leva às lagrimas ao cantar em homenagem ao mano Ru, amigo de escola e de bairro, morto a tiros em maio deste ano, um crime justificado apenas pelo autoritarismo e ódio supremacista. Correaa traz para a sua apresentação a memória dos que perderam suas vidas em vielas marcadas pela miséria, jovens imersos em localidades diariamente violentadas pela escassez de direitos e excessos de punição”.
MC Raro chegou mostrando todo o potencial da música em unir quebradas, anunciando sua conexão Itu/Macapá, unindo funk, rap e outras sonoridades em torno do seu estilo conhecido como trap. “Eu vim pra somar, não subtrair”, canta o jovem músico macapaense que hoje se integra à cidade e se configura como uma importante potência comunitária, e sua parceria com Madruga, que refletiu a riqueza da união entre os MC´s.
A assistente social e coordenadora do Conexão Jovem, Sabrina Silvério, parabenizou a iniciativa dos técnicos que estiveram à frente do evento, destacando a potencialidade da ação desenvolvida entre o psicólogo Vinicius e o músico Rafael, bem como toda a articulação desencadeada, que envolveu diversos profissionais de diferentes instituições, o que remete à importância da interdisciplinaridade e da intersetorialidade nas políticas públicas. Ver essa articulação desafiadora se concretizando, para Sabrina, “trouxe bastante emoção, e olha que, depois de tantos anos de profissão, a casca vai ficando grossa”.
Vinicius Saldanha finaliza enfatizando o que considera ser um dos principais legados do evento: “o FUNKRAS é o ponto mais recente de um longo caminho que começa há 10 anos atrás, que é a luta por valorizar as culturas periféricas jovens, o funk, o hip hop, dentro dos equipamentos da Assistência Social e hoje vemos com satisfação que isso tem se ampliado e ficamos na expectativa de que se multiplique cada vez mais. Fica também registrado todo o potencial de uma juventude viva, que deve ser socialmente protegida, valorizada, e não exterminada nem segregada, pois é peça fundamental do processo de construção de uma nova sociedade, que deve estar no horizonte de qualquer política de desenvolvimento social”.