Por Alessandra Monterastelli / Outras Palavras
Nos últimos dois meses, a falta de remédios e insumos nos hospitais e farmácias tornou-se notícia cada vez mais frequente. Mas um levantamento recente realizado pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), destacado ontem pelo Globo, revelou a gravidade que a crise agora assume.
Realizada em 106 hospitais e instituições similares, a pesquisa mostrou falta soro em 87,6% dos estabelecimentos; dipirona injetável em 62,9%;, neostigmina (combate doença autoimune que causa fraqueza nos músculos) em 50,5%; atropina (tratamento de arritmias cardíacas e úlcera péptica) em 49,5%); contrastes (essenciais para exames radiológicos em 43,8%); metronidazol bolsa (para infecções bacterianas em 41,9%; aminofilina (contra asma, bronquite e enfisema) em 41%. No cenário de desabastecimento, 40% das instituições informaram ter adquirido o soro, por exemplo, por um preço duas vezes superior do que sua cotação no mercado. Quais as causas desta escassez dramática? A guerra na Ucrânia? A alta do dólar e do petróleo? A “crise internacional”?
“São simplificações de uma questão muito mais complexa. Há uma fragilidade estrutural da sustentabilidade tecnológica do sistema de saúde brasileiro”, polemiza José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e ex-Diretor Executivo do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde. Em entrevista ao Outra Saúde, o médico sanitarista explicou: as consequências estão explodindo agora, mas o problema já se prolonga há décadas e teve início durante o governo de Fernando Collor. A abertura econômica não-planejada levou ao fechamento de indústrias farmoquímicas brasileiras, então responsáveis pela produção da maioria dos princípios ativos para a produção de medicamentos. “Nos anos 1980, o Brasil produzia metade do que consumia em termos de princípios ativos, e hoje produz apenas em torno de 10%”, explica. “Hoje o Brasil importa tudo, não produz quase nada”, sintetiza Temporão.
A escassez de indústrias farmacêuticas leva a uma balança comercial negativa no setor de medicamentos. “Com a alta do dólar, esse cenário pode inclusive ameaçar o equilíbrio das contas públicas. Ainda assim, a maior vulnerabilidade é estrutural, ou seja, nós dependemos das oscilações do câmbio e da capacidade de produção de entrega da Índia, China e Europa”, argumenta o ex-ministro. E não precisava ser assim. “O Brasil, pelo seu tamanho, sua economia, pela existência do SUS, de uma base industrial que ainda é uma das mais importantes da América Latina. Há todas as condições de ampliar sua capacidade de produção endógena”, conclui.
Ele lembra que tentou enfrentar o problema em sua gestão à frente do ministério da Saúde, no governo Lula. Na época, começou a ser implementada uma “política de fortalecimento da capacidade brasileira de produção de tecnologias estratégicas para a saúde”. O governo utilizou o poder de compra do Estado e estimulou parcerias entre laboratórios públicos e privados, oferecendo-lhes apoio de órgãos governamentais como o BNDES e da Finep. Porém, estas políticas foram encerradas nos governos posteriores ao golpe parlamentar de 2016.
Agora, questionado por O Globo, o ministério da Saúde ofereceu respostas que ou agravam ou problema, ou são pífias. Segunda a pasta, o governo autorizará a CMED, responsável por regular o mercado de medicamentos, a promover novos aumentos de preços de determinados remédios. Também reduzirá o imposto de importação de insumos para dipirona, neostigmina e bolsas para soro — o que amplia ainda mais a dependência brasileira. Segundo Temporão, é preciso dar resposta imediata à crise, mas as ações não resolvem o problema. “Se o diagnóstico é que temos uma vulnerabilidade estrutural, nós precisamos de uma política de Estado, de longo prazo, que cuide dessa dimensão da saúde”, conclui.
Matéria originalmente publicada no site Outras Palavras