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Autonomia para decidir

Crianças e adolescentes podem requerer atendimento não eventual quando pais e responsáveis subestimam sofrimento mental ou são seus causadores

Um adolescente de 15 anos procurou atendimento psicológico sem que a família soubesse. Contou que era gay e que os pais não aceitavam sua orientação sexual, por causa da religião. Temia ser levado para “curar seu problema” na igreja, como foi ameaçado algumas vezes. Em outro caso, uma menina de 10 anos escreveu uma carta contando que era abusada sexualmente pelo pai. Pedia ajuda e que a mãe não fosse informada disso, porque não obteve apoio quando contou a história. 

Esses dois exemplos ilustram casos frequentes no dia a dia da profissão. E levantam uma questão ética complexa sobre os atendimentos não eventuais. O que fazer diante de demandas como essas: acolher a criança e o adolescente em sofrimento sem envolver os responsáveis, contrariando o Código de Ética das/os Psicólogas/os, ou recusar esse caminho, mesmo sabendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) entende que esses jovens são sujeitos de direitos e, portanto, a prioridade das ações de cuidado e assistência são soberanas?

O Código de Ética, em seu Artigo 8º, determina que “para realizar atendimento não eventual de criança, adolescente ou interdito, o psicólogo deverá obter autoriza- ção de ao menos um de seus responsáveis, observadas as determinações da legislação vigente”. Já o Artigo 3º do ECA diz que a criança e o adolescente “gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP Foto: Dollar Photo Club 24 Conselho Regional de Psicologia de São Paulo questões éticas SP), tem compreendido, diante desse dilema, que a lei maior – o ECA – se sobrepõe ao Código de Ética do Psicólogo nesse sentido. O CRP SP orienta que o código deve ser analisado e interpretado diante das legislações garantidoras de direito, principalmente aquelas que versam sobre populações em condições de vulnerabilidade ou em condição especial de desenvolvimento. A questão que o CRP SP coloca é, de fato, a de casos em que as/ os psicólogas/os estariam diante de um dilema ético, ou seja, quando o atendimento não eventual se constituir como condição para escuta qualificada de crianças e adolescentes em situação de violência e que a anuência de seus responsáveis poderia, nestes casos específicos, configurar a perda da possibilidade de encaminhamentos de cuidado e de proteção integral.

Questão jurídica

Sobre o assunto, o CRP SP encomendou um parecer jurídico aos advogados Daniel Adolpho Daltin Assis e Raul Carvalho Nin Ferreira, que atuam com crianças e adolescentes. O documento oferece subsídios para levar adiante a discussão sobre a necessidade de um adulto autorizar o atendimento não eventual de crianças e adolescentes.

O documento discorre sobre vários aspectos da legislação brasileira e internacional no que se refere aos direitos da autonomia de crianças e adolescentes. Na análise sobre o artigo 8º do Código de Ética Profissional das/os Psicólogas/os, o documento levou em conta os direitos da criança e dos adolescentes previstos no ECA, no Código Penal, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e na Constituição Federal. O estudo abordou os direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes, analisando questões relacionadas ao direito à liberdade, à privacidade e à intimidade, à saúde, à educação, às limitações ao exercício de direitos, ao poder familiar e à capacidade civil.

Quanto ao direito à liberdade, por exemplo, o parecer utilizou o princípio da Proteção Integral, “constitucionalmente previsto (art. 204, 227 e seguintes da Constituição Federal/1988) e ordinariamente regulamentado, especialmente por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente.” Também destacou o artigo 15 do ECA que trata da questão dos direitos fundamentais de liberdade e os diretamente relacionados a ele: A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Assim como o Art. 16, que enumera os direitos compreendidos no direito à liberdade, e, especificamente no inciso VII, o direito de refúgio, auxílio e orienta- ção, que o parecer aponta como “justificador de demandas de atendimento psicológico pelos mais jovens”.

Como agir

Para a psicóloga e psicoterapeuta Maria Cristina Rocha, supervisora de estágio no Serviço de Aconselhamento Psicológico da Universidade de São Paulo, a primeira atitude ao deparar com uma solicitação de atendimento não eventual que parta de criança ou adolescente deve ser sempre a de acolhimento. Segundo ela, a compreensão do contexto pode orientar o que fazer. Para isso, deve-se ouvir essa pessoa a fim de entender como ela chegou até ali, o que foi buscar, o que a impediu de solicitar a companhia de um adulto de referência, como são suas relações familiares e que experiências são vividas em casa. “Esses podem ser os motivos dessa busca solitária. Não atender essa criança ou adolescente pode significar abandoná-los novamente”, afirma Maria Cristina, que atua na área da infância e adolescência em situação de vulnerabilidade há trinta anos.

Por outro lado, adverte a psicóloga, não se pode esquecer que essa criança ou esse adolescente pertencem a algum grupo e que pode ser fundamental conhecê-lo. Para ela, o caminho do atendimento e a presença ou não de familiares vão sendo construídos no processo de atendimento. “Acho que esse é o tom: trazer questões, problematizar, sair da leitura burocrática e legalista do Código de Ética.” Ela conta que tem insistido em uma discussão com a categoria de que ética tem a ver com uma atitude que busca ampliar as possibilidades de vida. “O Código não necessariamente dá conta disso, cabendo, então, ao profissional analisar criticamente o que se passa em cada situação, pensando em como se posicionar diante da cada caso.” O CRP SP compreende que o Có- digo de Ética apresenta os princípios que orientam essa reflexão e decisão sobre a atuação profissional. Considerando tais princípios, alerta ainda para a necessidade de as/os psicólogas/os articularem redes para que os encaminhamentos se deem de forma mais resolutiva.

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