Brasília – A Secretaria de Política para Mulheres e o comando das políticas públicas relacionadas à questão de gênero sempre deixaram à vontade a ministra Eleonora Menicucci, titular da pasta, pesquisadora há décadas e autora de trabalhos diversos voltados para a área. Com o olhar técnico e estudioso de quem conhece a fundo problemas como discriminação, exploração sexual e violência doméstica –que, em pleno século 21, ainda afligem tantas mulheres – Menicucci acha que a questão é mais forte do que aparenta, por ter raízes culturais entranhadas no patriarcado.
A ministra tem coordenado várias iniciativas integradas com outros órgãos, bem como campanhas e o projeto de criação das chamadas “Casas da Mulher Brasileira” – que sofreu atrasos, mas o governo pretende entregar a partir de setembro, segundo destaca. “Serão um marco do governo Dilma”, enfatiza Menicucci. Ex-presa política, ela é conhecida por não gostar de falar do seu passado. Abriu, contudo, uma exceção nesta entrevista para avaliar a atuação da Comissão Nacional da Verdade e declarar sua solidariedade ao ex-deputado José Genoino, que visitou no hospital. “Faz parte da minha história”, salientou.
A secretaria tem feito um bom trabalho nas campanhas e ações de enfrentamento à violência contra a mulher e houve muitos avanços em relação a essas políticas no Brasil. No entanto, os números de violência só crescem. A que causas os estudos da secretaria atribuem isso? Por que as ações ainda não ajudaram a reduzir o problema?
Eu entendo que é uma questão cultural, patriarcal e machista. Por mais que tenhamos políticas de Estado absolutamente fortes, convincentes e que estruturem o enfrentamento da violência com punição aos agressores; ainda que tenhamos campanhas maciças, prevalece bastante a cultura de que ‘a mulher é minha propriedade’ e ’em briga de marido e mulher não se mete a colher de pau’. Nós, governo, temos procurado mostrar que a mulher não é propriedade de ninguém, a mulher tem direito a escolha, direito de querer acabar uma relação ou não iniciar uma relação. E isto não dá a homem nenhum o direito de matá-la, agredi-la, humilhá-la. Na minha convicção como ministra, como feminista e como uma pesquisadora da mulher, a grande chaga é essa. Se não fizermos campanhas maciças, se não batermos na mesma tecla cotidianamente, isso não vai mudar.
Que mudanças a senhora vê, nos últimos anos, em relação a essa cultura?
Eu acredito que a situação está mudando, porque se olharmos para quando a Lei Maria da Penha foi criada, sete anos atrás, há uma grande diferença. Fiz vídeos e pesquisas sobre isso e sei que as mulheres tinham muito medo, vergonha, se sentiam sozinhas, não queriam dizer que apanhavam dos maridos. A mudança daquela época para agora é impressionante, porque as mulheres estão denunciando mais. Eu questiono: elas estão sendo mais assassinadas, estão apanhando mais ou os números são maiores porque os casos estão mais visíveis, estão sendo mais denunciados? Acho que as duas coisas estão acontecendo. Então, digo-lhe: as políticas estão corretas, adequadas. O que nós precisamos é, cada vez mais, aprimorá-las e enfrentar essa chaga cara a cara.
Ainda se fala muito da eficácia da Lei Maria da Penha e, inclusive, de itens que por mais que sejam divulgados, ainda geram dúvidas nas próprias mulheres, como a questão de poderem ou não retirar a queixa contra o agressor depois que reatam um relacionamento, mesmo depois das atualizações da legislação. Como a senhora avalia isso?
Isso acontece porque, por mais que se divulgue, as pessoas ainda não conhecem a Lei Maria da Penha e falam muito dessa lei sem conhecer. Não se pode retirar mais a queixa de agressão por violência doméstica contra a mulher, só perante o juiz. É uma grande diferença em relação à legislação que vigorava anteriormente, quando a vítima chegava para fazer uma denúncia e a própria delegada a aconselhava a retirar a queixa ou fazer um acordo. Hoje não, mas a sociedade precisa, ainda, conhecer melhor a legislação. E estamos trabalhando por isso, com as campanhas.
No ano passado, durante a entrega do relatório da CPI da violência contra a mulher, no Congresso, várias sugestões foram transformadas em projetos de lei, de forma a resultarem em novas políticas públicas para enfrentamento ao problema. A seu ver, tem existido lentidão na tramitação dessas matérias?
Nada no Congresso é rápido como gostaríamos, mas quero dizer aqui que a discussão, tanto com as parlamentares mulheres como também com os homens, por parte da secretaria, é cotidiana. Tudo que eles fazem lá sobre o tema procuram a mim ou à Aparecida Gonçalves (secretária de Enfrentamento à Violência). Temos um diálogo bastante franco e solidário. E dos projetos que saíram da Lei Maria da Penha que optamos focar em parceria com as parlamentares, praticamente todos estão caminhando bem. São eles o projeto que tipifica o feminicídio como um crime hediondo, o fundo para o enfrentamento da violência e a regulamentação do Disque 180. Vários outros projetos voltados para o tema estão em negociação.
E quanto ao Judiciário? Como a senhora vê o tratamento dado pelos tribunais em relação à aplicação da Lei Maria da Penha? Desde 2006 foram criadas varas e juizados especializados no atendimento às vítimas, mas ainda são grandes as queixas de que o funcionamento destes locais poderia ser bem melhor. A senhora concorda?
Em primeiro lugar, acho que o Judiciário e o Conselho Nacional de Justiça são grandes parceiros do nosso trabalho. Eles não têm faltado com nossos pedidos, nossos apelos. Agora é evidente que temos centenas de juízes num Brasil muito grande e há, sim, lugares em que as varas e juizados especializados não funcionam. Uma grande crítica que faço é à demora, por parte de alguns juizados, de expedirem a medida protetiva, porque quando a mulher vai à delegacia e faz um boletim de ocorrência, o caso já segue para o Ministério Público e se transforma em processo. Ali o juiz tem que expedir a medida protetiva, mas há casos em que pedem até atestado psicológico para expedi-la. Enquanto essa medida, que de fato dá segurança à mulher ameaçada, sofre atrasos, ela está correndo riscos. Aí, em muitos casos, a vítima morre e quando a medida chega, não adianta mais. Mas a situação está mudando. No ano passado, por exemplo, o Judiciário apresentou perto de 300 mil medidas protetivas. É um número excelente. Significa dizer que, em 2013, cerca de 300 mil mulheres foram salvas da morte e isso é fantástico.
Falou-se muito, nos últimos meses, sobre a preocupação para que a imagem do Brasil vendida lá fora, durante a Copa do Mundo, não fizesse referência ao turismo sexual ou à exploração sexual das mulheres. Quais foram as iniciativas da secretaria para evitar essa má imagem?
O governo federal bloqueou a propaganda da Adidas, que era sugestionada neste sentido, e fez a empresa se retratar. Também fizemos uma nota nos solidarizando com a bandeirinha Fernanda [que ouviu de um cartola, após um jogo, que deveria deixar a profissão e posar nua para uma revista masculina]. Não entramos no mérito se ela errou ou não em campo, mas repudiamos as atitudes contra ela. E temos feito várias ações neste sentido. Em São Paulo, junto com a secretária estadual, foi ajuizada ação judicial contra uma empresa que colocou outdoor na Imigrantes e na Bandeirantes, com a foto de uma mulher sentada numa bola de futebol simulando sexo oral e o nome de determinada boate, chamando turistas para irem até lá. Ou seja, estamos atentos e agindo em relação a tudo isso. Agora, existe sim ou pode existir sim, uma campanha internacional ruim em termos do turismo, querendo dizer que o Brasil é o país do futebol mas também do turismo sexual. Mas estamos combatendo firmemente isso.
Vocês lançaram recentemente uma campanha com enfoque diferente sobre o assunto. Poderia nos explicar melhor a abordagem que está sendo utilizada pela secretaria?
A campanha que foi lançada no último dia 22 mostra bem a questão, porque afirma ‘Violência contra mulher, eu ligo 180’. Quer dizer duas coisas: eu ligo para o 180, que é o número do disque-denúncia, e eu ligo para o assunto. Em vez de enfocar o tema por um lado negativo, estamos indo por um lado positivo, mostrando que o Brasil tem instrumentos para denunciar esse tipo de turismo sexual, em vez de negar que exista. O que queremos dizer é que, se houver esse tipo de coisa, haverá punição. E acredito que faremos a copa das copas, como a presidenta Dilma diz, em todos os sentidos. Estamos preparadas, inclusive, para enfrentar tudo isso (em relação à violência sexual contra a mulher). Estamos discutindo estas ações há um ano.
Todos os eixos de trabalho para o mundial estão bem definidos, na sua opinião?
Sim, todos os ministérios estão fazendo suas ações de forma articulada. O legado da copa já está aí, que é a melhoria do transporte urbano para as cidades. Até o final do ano essa melhoria será visível e todos nós vamos aproveitar. E um dos pontos mais importantes, a meu ver, é a questão dos contratos perenes, do trabalho decente. Além de aeroportos, transportes e dos próprios estádios, a assinatura feita entre governo e empresas no pacto pelo trabalho decente, não só para a contratação de trabalhadores durante a copa do mundo, é algo que governo nenhum já fez e que alcança as mulheres profundamente. Em menos de meio ano registramos 4,9 milhões de empregos com carteira assinada no Brasil. Desse total, 2,3 milhões dizem respeito a vagas ocupadas por mulheres.
Há uma cobrança sobre o projeto para implantação das chamadas “Casas da Mulher Brasileira”. Como está o andamento desse projeto?
Todo mundo tem que entender que para construir qualquer obra pública há um processo burocrático. Tem de haver o edital para o processo executivo primeiro, os terrenos, e por aí vai. É toda uma novela. Hoje temos os 26 terrenos, temos vários projetos para obras e três obras já homologadas, para as casas de Brasília, Campo Grande e São Luís. As duas primeiras seguramente ficarão prontas entre agosto e setembro. E temos para sair, edital das casas de Vitória, Fortaleza, Curitiba, Salvador, São Paulo e Porto Alegre. Então são nove casas que teremos prontas até o final do ano, dando todo o apoio para as mulheres. Houve uma falha na data da entrega prevista inicialmente, mas não fomos nós que falhamos, foi todo esse processo burocrático que levou a atrasos. Eu queria inaugurar todas antes de 5 de julho, mas foram questões que não dependeram de nós. As casas estão se tornando realidade.
Que outras iniciativas, neste sentido, a senhora considera emblemáticas?
Temos também os centros de enfrentamento às mulheres sujeitas a violência nas áreas de fronteira seca. Teremos mais sete implantados. Destes sete, já contamos com o terreno de cinco deles. Há, ainda, os ônibus para atendimento às mulheres, que foram resposta à Marcha das Margaridas, atendimento a um pleito delas. Nestes ônibus, levaremos serviços de delegadas e assistentes sociais para as mulheres das florestas em lugares como Ilha de Marajó e regiões mais distantes. O trabalho será feito em parceria com a Caixa Econômica e começaremos pela Amazônia. Além disso, estamos executando as campanhas. São, todos estes, programas que representam uma marca da presidenta Dilma.
Quando o governo Dilma Rousseff foi iniciado, com a definição dos nomes de algumas mulheres para os ministérios, foram feitas críticas de que este seria um governo feminino demais. Com o tempo, não se falou mais nessa questão de gênero na ocupação de cargos para o primeiro escalão. A senhora acha que, agora, o governo pode ser visto como feminino de menos?
A participação das mulheres nos ministérios tem sido excepcional. As ministras são titulares de ministérios fortes e poderosos. Temos mulheres no Planejamento, Desenvolvimento Social, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Política para Mulheres, Igualdade Racial e, até pouco tempo, tínhamos também uma mulher na Comunicação Social. Com isso, o Brasil serve de exemplo nessa questão, nós mulheres temos mostrado a diferença no Executivo. Outro ponto importante é que foi criado um comitê de monitoramento sobre a questão de gênero em todos os ministérios, por decreto presidencial. Ou seja, cada ministério tem, hoje, um setor para monitorar suas políticas no quesito gênero, o que é bem relevante para nossas políticas públicas.
A senhora foi, dentre os ministros, uma das mais solidárias ao ex-deputado José Genoino quando ele passou mal, no presídio da Papuda, e foi internado no Instituto do Coração, em novembro passado. Chegou, até mesmo, a ir até o local para visitá-lo. Poderia dar alguma declaração pessoal sobre o episódio da condenação dos réus da Ação Penal 470?
Vou falar sobre a relação que tenho com Genoino e Rioco, que são meus amigos há 35 anos. Fiquei presa na cela em que a Rioco ficou e no mesmo período da prisão do Genoino. Em momento algum falhei na solidariedade a ele, mesmo antes dele ser condenado. Durante o processo eu ia visitá-lo na casa deles em São Paulo e aqui, em Brasília, fui de fato até o hospital e fiquei com a Rioco, como vocês jornalistas puderam presenciar e registrar. Isso me fez muito bem, porque isso é minha história, ninguém me tira. E não é porque estou ministra que vai mudar. Fui até lá como ex-companheira, eterna amiga e eterna solidária do casal.
Como a senhora, que foi vítima de tortura e prisão durante a ditadura militar, analisa a atuação da Comissão Nacional da Verdade?
Como absolutamente positiva. O Brasil criou uma maturidade com a comissão e construiu essa maturidade ao longo dos tempos. E foi o governo de uma mulher, uma ex-presa política, que bancou a comissão da verdade. Acho que a comissão tem feito um trabalho muito bom e fará um belo relatório. Além disso, desencadeou várias comissões similares no Brasil, até em universidades, o que permite o compartilhamento dos resultados. Acho que esse trabalho já abriu portas e visibilizou essa rede, que passará a ser ampliada agora, com a abertura dos arquivos das forças armadas. Após o relatório as informações estarão todas aí. Caberá não ao Executivo, mas ao procurador-geral da República o encaminhamento desse trabalho. O resgate da memória e da verdade foi implacável. E eu, que fui uma que sofreu tudo, tortura, prisão, tenho o maior orgulho de estar vivendo esse momento.