Enquanto algumas mães de crianças infratoras estampam desolação e medo em meio a relatos de maus-tratos, outras aprovam o papel da Fundação Casa, em São Paulo
Histórias de tristeza, angústia e medo se cruzam na calçada da Unidade de Atendimento Inicial da Fundação Casa no bairro do Brás, na região central de São Paulo. O Departamento de Execuções da Infância e Juventude (Deij) fica ao lado. Diante dos prédios, mães, tias, avós e madrinhas passam horas à espera de notícias e decisões judiciais sobre o futuro de suas crianças e adolescentes, internos na antiga Febem. A figura do pai é rara. A desolação tem feições femininas. Algumas lamentam a escolha dos menores, impulsionados ou cooptados por jovens maiores, traficantes ou colegas usuários de drogas. “Ele era um bom menino, até que…” é um testemunho comum.
Enquanto as famílias esperam notícias, vans entram e saem. Muitos não se importam em contar sua história, mas quando passa um novo veículo tudo para. “Pode ser meu afilhado”, diz Cida, madrinha de um menino de 16 anos, retido pela primeira vez. A pedido de familiares e dos menores entrevistados, os nomes foram trocados. Uma van sai com garotos sentados e de cabeça abaixada. Mas não era ele. “Cada carro que sai é uma dor a mais”, conta Helena, uma das mães.
Dona Isabel espera pela audiência que vai decidir se seu filho será liberado ou não. Sua dor vai além do emocional. Ali mesmo, na calçada, ela teve um começo de enfarto, na porta da fundação. Embora o menino tenha sido liberado, ela não pôde esperá-lo. Teve de ser internada às pressas. Segundo comerciantes da região, é comum as mães não suportarem a espera ou o desfecho dos casos. Passam mal ali mesmo.
Maria, outra mãe na porta da unidade provisória, começa a contar sua história, mas o mal súbito de Isabel exige a atenção de todos – incluindo a reportagem, que acionou o telefone de emergência 193, do Samu. Após seguidas convulsões na porta da fundação, Isabel foi hospitalizada. Em contato com a família, a reportagem foi informada que ela se recupera em casa.
Maria retoma seu relato. Fala rápido e chora muito. Por vezes é difícil compreendê-la. Tortura, crueldade, tristeza e medo são as palavras que mais repete. Naquele dia, segunda-feira seguinte ao Dia das Mães, contou ter acordado angustiada. Antes, no sábado, vira o filho andar com dificuldade e sem explicar por quê. Teme que ele tenha sofrido espancamento. “Abriram a cabeça dele várias vezes”, testemunhou Maria. Também já o encontrou com o rosto sujo de sangue e repetidas vezes com pontos na cabeça. “Eles apanham na cabeça, no estômago e têm costela quebrada.” O jovem é usuário de remédios controlados.
Bem ou mal
Maria diz que os jovens saem revoltados depois de passar por espancamentos e humilhações. Em 2011, um garoto do bairro não teve a sorte de sair. “Foi enfarte, disseram – num menino de 14 anos”, conta. Meninos sem família seriam as vítimas dos piores abusos, porque ninguém reclama por eles. “Não tem ninguém para recuperá-los”, lamenta. “Quem entra é espancado porque é joão-ninguém.”
Segundo Maria, o filho já apanhou muito na escola, de garotos mais velhos e mais fortes, e agora apanha de funcionários que deveriam trabalhar por sua recuperação. “Eles têm prazer em torturar. Os diretores gostam de torturadores”, acusa. Na visão de Maria, agressores são valorizados. “Monitores humanos não são aceitos lá. Todo dia tem tortura… A sociedade precisa cuidar desses meninos.” E há ainda menores que torturam outros para sair logo, segundo ela.
Cristina, também mãe de interno, pensa diferente. O filho dela está há vários meses na fundação e “é bem tratado”. “Os técnicos gostam dele, está estudando”, contou. O garoto foi pego roubando carros e motos e não estudava. “Ele faz isso agora.”
Para Alex, ex-interno com quatro passagens pela instituição, a forma de tratamento depende: “Tem muitas regras. Se respeitar, o tratamento é bom, se não respeitar, entra na borracha”. As tais regras dizem respeito a estar sempre de cabeça baixa, não falar no horário das refeições e de palestras. “Tem muitos que ficam conversando. Não pode. Aí eles chamam de canto e põem na parede, o tratamento começa a ficar ruim”, descreve. “Nunca batem por nada.”
Para o jovem, a medida socioeducativa foi válida. “Minha mãe ‘tá’ de prova que foi bom. Aprendi que precisa ter paciência pras coisas que a gente quer. Não adianta achar que dinheiro é fácil, porque não é.” Sua mãe, Francisca, diz que frequentemente os menores são usados por criminosos para roubos ou para assumir crimes. Cida e Maria têm a mesma opinião. Más companhias, sistema educacional ruim e falta dos pais também são corresponsáveis pela conduta dos filhos. “Ele foi pego com um amigo que portava maconha e farinha”, lembra Cida. “Não dá para acreditar que um garoto meigo e carinhoso estivesse no crime. Se falar, ninguém acredita.”
Benedito, um dos poucos pais que acompanham de perto a situação do filho, conta que o jovem sofreu espancamento e teve de dormir na quadra com outros internos. “Deixaram os meninos sem roupa, sentados na quadra, na chuva”, descreve. “Isso depois das 22h. Só voltaram para dentro às 6h, para o café.”
Sem acreditar, ele procurou outro interno que saiu no mesmo dia para confirmar a história. O filho também levou um “tapa no ouvido” por se mexer enquanto estava nu. O castigo teria sido motivado pelo assobio de um na hora de dormir – a regra é calar. Depois de passar pela fundação, o filho já acorda amedrontado, dizendo “não, senhor, não, senhor”, segundo Benedito.
Lúcia, também presente à calçada da fundação, desaprova a eficácia socioeducativa da instituição. “Para o meu filho não ajudou em nada. Só piorou a situação dele.” O problema, no caso, é a “revolta”. Mas o garoto se nega a dizer o que acontece lá dentro. “Ele saiu muito revoltado. Diz que viu muita coisa, mas não conta especificamente o quê. Só que é terrível, não é lugar para gente”, contou Lúcia. “Ele tem hoje bastante problema, ‘tá’ depressivo, chora, fica nervoso… Vou justamente atrás de psicólogo para saber o que aconteceu.” O sobrinho de 19 anos que a acompanha também passou pela fundação. Seus 15 dias de experiência na Unidade Provisória, há dois anos, foram “tranquilos”.
Relatórios distorcidos
Funcionário da Fundação Casa, Mauro – que também prefere ter o nome preservado – confirma as denúncias de tortura, mas acredita que a situação não é tão ruim como nos tempos da antiga Febem. Segundo ele, atualmente, além da tortura física, há a psicológica. “Já foi muito mais violenta. Antes se arrebentava o menino. Agora, há lugares que ficam só na ameaça.” No entanto, conforme denuncia, o atendimento é discriminatório. “Os meninos de classe média alta só chegam até o juiz. Não ficam lá para passar por medidas socioeducativas”, diz. “Só há favelados, paupérrimos.”
No corpo funcional da instituição são promovidos os mais truculentos, como endossa Mauro. “Os diretores, em sua maioria, são da área de segurança e estão estudando, mas continuam com visão de ‘batedores’”, relata. A ressocialização esperada pela sociedade não acontece. “Saem pior”, atesta, diferentemente do que costumam informar os relatórios de avaliação. “Alguns juízes batem carimbo e acreditam”, alerta. “Os relatórios conclusivos são de melhora, mas não há constatação nem fiscalização. De cada mil submetidos a internação, um se reabilita, mesmo assim por esforços familiares”, calcula o funcionário. Ele cita ainda a “maquiagem” nas dependências da instituição e até funcionário “lavando menino” para receber visitas de inspeção. “As ações socioeducativas são um grande faz de conta”, resume.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança, ao Adolescente e à Família do Estado de São Paulo (Sitraemfa), Julio Alves, considera “absurdas” as denúncias de espancamento de menores por funcionários da fundação. Ele não descarta a possibilidade de os trabalhadores se defenderem em casos de tumulto. “Muitos funcionários apanham na cara. Então é incoerente dizer que batem em interno.”
Alves considera a Corregedoria muito atuante. Já o número de trabalhadores para atender a toda a demanda da fundação seria insuficiente. “Tanto os funcionários como os jovens são vítimas de um Estado que não gerencia a aplicação das medidas nem atua para que esses jovens sejam cidadãos com direitos na sociedade, antes de chegar aqui”, afirma.
Para a presidenta da Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas de São Paulo (Amparar), Maria Railda, as ações da fundação são para “inglês ver”. “Falam em trabalho pedagógico, mas há tortura”, insiste. “Presenciei um funcionário dizendo: ‘Vou bater mesmo. O que vocês não fizeram, nós vamos fazer’.”
A ativista cita o “couro” psicológico (ameaças verbais) como uma nova forma de torturar os jovens, mas não menos cruel. Segundo Maria Railda, até as mães estão sendo torturadas com processos abertos contra elas, após denúncias. A líder da associação reitera ainda denúncias de relatórios de avaliação dos internos feitos para apressar saídas, promoção de funcionários violentos, e a discriminação em relação aos meninos mais pobres.
“Na verdade, a sociedade se vinga duas vezes dos pobres: quando tranca e quando coloca na rua (sem condições)”, avalia. “Normalmente, os meninos já vêm de situações em que sofreram preconceito na escola, que os exclui. E, em alguns casos, a família cansa. A situação deles, ao saírem da fundação, fica ainda pior.”
Respeito aos direitos humanos
A Fundação Casa refuta, por meio de sua assessoria de imprensa, a ocorrência de maus-tratos no interior das unidades. “A instituição respeita os direitos humanos dos adolescentes e funcionários e não tolera qualquer tipo de prática de agressões ou tortura em seus centros socioeducativos.” Quando constata abusos, segundo o informe, funcionários são investigados e punidos. Nos últimos sete anos, a assessoria contabiliza 72 servidores demitidos por justa causa. A instituição nega ainda a valorização de funcionários truculentos e haver relatórios inconsistentes: “São feitos por profissionais preparados e fiscalizados pelo Poder Judiciário – o que torna absurda a hipótese de que os documentos contenham inverdades”.
A nota assinala que a Fundação Casa investiu nos últimos sete anos em mudanças estruturais na política de atendimento ao adolescente, como descentralização do atendimento, criação de 60 centros socioeducativos e redução de 50% da taxa de reincidência na medida socioeducativa de internação, caindo de 29% em 2006 para 13,5% em 2012. A fundação possui 142 unidades no estado de São Paulo, que atendem perto de 8 mil jovens.
No Departamento de Execuções da Infância e Juventude (Deij), órgão do Judiciário responsável por acompanhar a trajetória dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, a juíza corregedora Maria Elisa Silva Gibin informa que denúncias de maus-tratos aos internos são apuradas rapidamente. Em 2012 foram instaurados 32 pedidos de providências para as encaminhadas pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. “O Judiciário não está alheio, investiga e extirpa quem age dessa forma”, garante a corregedora.
Por mês, quatro magistrados do Deij realizam cerca de 350 audiências para decidir que medidas serão aplicadas em cada caso. As socioeducativas podem ser internação, semiliberdade e prestação de serviços com liberdade assistida. O departamento avalia ainda a consistência dos relatórios encaminhados pela fundação ou por entidade conveniada. O Judiciário tem equipe técnica própria que elabora laudos complementares de avaliação. Embora a legislação indique a apresentação de relatórios a cada seis meses, por iniciativa do Deij são feitos a cada três meses. Para a corregedora, ocorrências de tortura no interior da Fundação Casa são casos isolados. “Não é a prática da instituição. O Deij e a fundação trabalham muito para mudar a mentalidade no tratamento dos menores.”