Texto que prevê desapropriação de imóveis que empregam mão de obra degradante perderá eficácia se senadores limitarem conceito de trabalho escravo e dificultarem punição a empresários
São Paulo – Aprovada pela Câmara em maio do ano passado, e festejada como um salto civilizatório para o país, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, corre sérios riscos de naufragar antes mesmo de entrar em vigor. O texto, que autoriza a desapropriação de imóveis rurais e urbanos que mantenham empregados em situação análoga à escravidão, está sob fogo cruzado de ruralistas desde que foi apresentado, em 2001. E o tiro de misericórdia pode ser disparado na quarta-feira (30), quando o Senado deve votar um projeto de lei para regulamentá-lo.
Após ter recebido o aval dos deputados, a PEC tem encontrado dificuldades para passar pelo crivo dos senadores. Tanto que, mais de um ano depois, ainda não pôde ser enviada ao plenário por falta de acordo entre os parlamentares. “Estabelecemos que só aprovaríamos a PEC quando tivéssemos encaminhado projeto de regulamentação, classificando o que é trabalho escravo, para não deixar em aberto e ficar tudo a cargo do fiscal”, explica o senador Romero Jucá (PMDB-RR) à RBA. “No Brasil ainda existe trabalho escravo, que tem que ser combatido. Queremos punir com rigor. Mas ele não pode ser confundido com quebra da lei trabalhista.”
Os desentendimentos sobre a PEC do Trabalho Escravo dentro do Senado fizeram com que os parlamentares invertessem a ordem de aprovação das matérias: normalmente, as mudanças constitucionais são aprovadas para só então passarem por regulamentação, em projeto de lei. A disputa de interesses, porém, fez com que o Congresso tivesse de se adiantar na elaboração de uma proposta que esclareça as consequências práticas da PEC antes mesmo de sua aprovação. Como explica Romero Jucá, essa é uma das exigências para que os líderes partidários coloquem a PEC 438 em votação no Senado, passo necessário para que passe a vigorar. E é essa a proposta que deve ser votada na quarta-feira.
“O grande problema desse projeto de lei é que ele quer redefinir o conceito de trabalho escravo, que já está amplamente delimitado em legislações nacionais e internacionais”, critica o procurador do trabalho Jonas Moreno, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), em entrevista à RBA. Além disso, o poder dos auditores fiscais não é tão grande como sugerem os parlamentares. Os fiscais não fazem o trabalho sozinho. Cada equipe vai a campo com cinco auditores, quatro policiais federais ou rodoviários federais e um procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Ainda assim, parte dos congressistas, entre eles os representantes da bancada ruralista, acredita que o conceito de trabalho escravo não está especificado na legislação. E insiste que isso dá muito poder ao fiscal, que, argumentam, poderia confundir um “mero” descumprimento das leis trabalhistas com a exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. Se a PEC for aprovada sem que o conceito seja melhor definido, alguns senadores asseguram que proprietários rurais e urbanos serão injustiçados com a perda de seus imóveis mesmo sem ter escravizado ninguém. Eis a principal motivação do texto, que, no entanto, não cumpre com esse objetivo.
A matéria que pode ir a votação na quarta-feira foi elaborada pelo senador Romero Jucá e aprovada na semana retrasada pela Comissão Mista para a Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação de Dispositivos Constitucionais. Seu conteúdo ainda está em discussão, uma vez que o governo não está satisfeito com o trabalho realizado até agora pelo senador roraimense. Isso porque, em vez de avançar na definição de trabalho escravo no país, como se propunha, o texto desconsidera os conceitos expressos no artigo 149 do Código Penal, além de normativas, portarias e manuais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que detalham o tema à exaustão.
“A Instrução Normativa nº 91, de 2011, da Secretaria de Inspeção do Trabalho, é bastante detalhada e diz exatamente o que é trabalho escravo, o que é condição degradante, o que é jornada exaustiva”, explica à RBA o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do MTE em São Paulo. “E o Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo esmiuça ainda mais o detalhamento que já consta da Instrução Normativa.”
Bignami lembra que todos os documentos relativos ao tema são públicos e estão na internet. E que as atividades dos auditores fiscais do trabalho, ao contrário do que insinua Romero Jucá, estão ancoradas na legislação e nas normativas ministeriais. “Os auditores não vão para um trabalho desses sem o conhecimento desses instrumentos e sem antes passar por um forte treinamento, que é ministrado a todos os auditores que lidam com o combate ao trabalho escravo”, enumera. “Tenho tranquilidade em dizer que não há a menor possibilidade do trabalho estar sendo realizado de forma arbitrária. Não é verdade que tudo fica na mão do fiscal.”
Juntos, Manual e Instrução Normativa somam mais de 100 páginas delimitando tanto o conceito de trabalho escravo quanto a atuação do auditor fiscal do trabalho. E servem de parâmetros para o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que foi modificado em 2003 para criminalizar e punir, com dois a oito anos de reclusão, os responsáveis por “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
O projeto de lei do senador Romero Jucá descarta todo esse arcabouço legal e administrativo para lançar mão de uma limitada definição de trabalho escravo. O texto considera apenas quatro aspectos: 1) submissão a trabalho forçado, sob ameaça ou punição, ou com restrição de liberdade; 2) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte pelo trabalhador, como forma de mantê-lo no local de trabalho; 3) manutenção de vigilância ostensiva ou apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, para mantê-lo no local de trabalho; e 4) restrição de locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador.
“Me parece insuficiente”, analisa Bignami, criticando a ênfase dada pelo texto à restrição de liberdade na exploração do trabalho escravo. “Os principais casos que encontramos no país hoje em dia não são exatamente relacionados ao cerceamento de liberdade. Hoje há muito mais casos de condições degradantes do que de cerceamento de liberdade: trabalhador sendo tratado mal mesmo, muito mal, ainda que tenha liberdade de ir e vir. É uma discussão bastante superada – pelo menos tínhamos como bastante superada.”
Por isso, o governo quer modificar o projeto. As propostas de alteração elaboradas pelo MTE e pela Secretaria de Direitos Humanos estão sendo centralizadas na Casa Civil, que vai discutir com Romero Jucá a inclusão, na lei, da dimensão degradante do trabalho escravo e a jornada exaustiva. O senador, porém, não parece convencido. “O trabalho exaustivo ou o trabalho que vá além das forças do trabalhador pode ser uma coisa muito genérica”, sustenta, batendo na tecla de que é preciso reduzir o “poder” dos auditores fiscais. “Quem trabalha mais que oito horas por dia ou em condições ruins no interior, esporadicamente, não pode ser classificado trabalhador escravo.”
Sem essas alterações, porém, o governo avalia que a aprovação do projeto de lei vai enterrar aquele salto civilizatório que poderia ser obtido pela PEC 438. “Esses pontos acabariam fazendo com que a PEC do Trabalho Escravo não seja um avanço, mas um retrocesso que talvez seja maior que o avanço que ela sugere”, afirma um quadro do Executivo federal que participa das negociações. “Não valeria a pena aprovar a PEC assim. Com esse projeto de lei, ela poderia até ser aprovada, mas não haverá política pública. Nestes termos, haverá recuo da política pública.”
O governo ainda deseja realizar outras duas modificações no texto de Romero Jucá, ambas no artigo 1º do projeto, que diz que os imóveis rurais e urbanos flagrados com trabalho escravo apenas poderão ser desapropriados se: 1) ficar comprovada a participação direta do proprietário na exploração de mão de obra análoga à escravidão; e 2) quando o processo criminal aberto contra o responsável estiver transitado em julgado, ou seja, quando se exaurir toda possibilidade de defesa. Os críticos do projeto consideram esses aspectos razoáveis, mas acreditam que dificultarão muito a aplicação dos dispositivos previstos na PEC.
“Geralmente, o trabalho escravo vem envolto numa série de outras fraudes, documentais e fundiárias, por exemplo, é muito complexo”, lembra o auditor fiscal Renato Bignami. “Não é tão fácil provar a responsabilidade direta do proprietário.” Romero Jucá concorda que é um tema difícil de ser ajustado na lei. O senador sugere que uma investigação pode elucidar a conivência – ou não – do empresário com a prática do trabalho escravo, já que o uso de “laranjas”, “gatos” ou “prepostos” costuma ser corriqueiro nestes casos. “Tem que haver uma apuração para dizer.”
Quanto à tramitação da sentença, a ideia do governo é incluir no projeto que condenações civis e trabalhistas, além da criminal, também acarretem em desapropriação. Isso porque empresas não podem ser responsabilizadas criminalmente no Brasil – e porque as ações penais costumam levar anos até serem julgadas em definitivo. Outra modificação desejável no texto seria estabelecer que decisões em segunda instância já seriam suficientes para fazer cumprir a PEC e levar a cabo as expropriações. Jucá é contra. “Tem que obedecer o devido processo legal. Não se pode tomar um bem de uma pessoa assim. Até porque, se tomar sem direito de defesa, isso gerará demanda judicial e não vai haver expropriação.”
Se todas as tentativas de negociação com o senador falharem, o governo tem um plano B: fará articulações com Congresso, através da Secretaria de Relações Institucionais, com o objetivo de modificar o texto – e incluir esses três pontos – durante as discussões no plenário. “Se tudo der errado, vamos trabalhar para que a PEC não seja votada no Senado. Vamos preferir que ela fique parada, à espera de um momento melhor”, diz a fonte do Executivo. “Tal como está, o texto atende apenas aos interesses da bancada ruralista.”