destaque

Legalização das drogas: a reparação não pode esperar

Por Vinicius Saldanha de Jesus
(Secretário de Formação SinPsi SP, psicólogo do SUAS e mestrando em desenvolvimento econômico na área de economia social e do trabalho da UNICAMP).

É inegável o avanço no debate em torno do uso e da comercialização das drogas na contemporaneidade, impulsionado internacionalmente, sobretudo, por crescentes iniciativas de descriminalização do uso, de legalização da produção e de comercialização da maconha, com ênfase em seu uso medicinal, embora também tenham ocorrido importantes avanços em relação ao uso recreativo. Entretanto, ainda que seja compreensível e pertinente o otimismo em torno da pauta, deve-se ligar um sinal de alerta:
há diferentes modelos e interesses envolvidos em torno da legalização. Esses interesses podem, por um lado, conformar modelos de regulamentação da produção, da comercialização e do uso da maconha e de outras drogas que atendam à justas demandas sociais ou, pelo contrário, que negligenciem estas demandas e se voltem especialmente ao atendimento das expectativas do mercado (PRADO, 2020; VIEIRA, 2020). Isso é preocupante, sobretudo no contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades e injustiças sociais que se perpetuam ao longo da história, inclusive, em grande medida, agravadas por meio do uso do aparato repressivo acionado pelo proibicionismo.

Materializado através da chamada “guerra às drogas”, o proibicionismo tem se mostrado uma potente ferramenta de repressão popular. Sempre se tratou efetivamente de uma guerra contra pessoas. Mais precisamente, são guerras (no plural, dadas as especificidades que podem adquirir em determinados territórios) mantidas pelos aparelhos repressores dos Estados, com ênfase no judiciário e no poderio bélico, contra as minorias, vistas como perigosas, e alinhadas aos interesses de classes dominantes, com vistas a sempre evocada “manutenção da Ordem” (D´ELIA FILHO, 2007). Obviamente, essas guerras resultam em altos índices de violência, homicídios e encarceramento, bem como em violações de uma ampla gama de direitos humanos, gerando danos profundos, até mesmo intergeracionais, às populações e territórios identificados como alvos
(MACIEL, 2020; MEDEIROS; TÓFOLI, 2019). Por outro lado, é sabido que a renda proveniente do comércio de drogas em tempos de proibicionismo desenvolve papel importante nas estratégias de sobrevivência de grande parcela da população que se encontra em condições precárias de vida, segregada e/ou aviltada em relação a seus direitos trabalhistas e sociais, como apontam importantes estudos, como o do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (2018), o do Observatório das Favelas (2018) e o de Souza (2007). Diante disso, é plausível conceber um agravamento das condições de
vida dessa parcela da população em face de uma possível extinção da referida fonte de renda.
Nesse cenário, qualquer projeto de legalização da maconha e de outras drogas hoje ilícitas, sobretudo as de grande demanda comercial, que seja minimamente identificado com os direitos humanos e com princípios básicos de cidadania, deve se pautar pela reparação dos efeitos historicamente causados pela proibição e, até mesmo, dos possíveis
efeitos da legalização (PRADO, 2020). É pertinente conceber a necessidade, inclusive, de pactuações que se estabeleçam não apenas nos âmbitos locais, mas também com compromissos internacionais, dada a dimensão global do proibicionismo, que é sustentado, em grande medida, pela própria Organização das Nações Unidas (ONU) e seu aparato institucional (CARNEIRO, 2018). Entretanto, essa reparação, infelizmente, não está garantida na ordem do dia. Como dito, há diversos modelos recentemente implantados de descriminalização e legalização da produção e do uso de drogas, sobretudo da maconha. Nesse sentido, há iniciativas importantes, como as do estado de Illinois, que reconhece explicitamente nos
em seus novos marcos legais os danos sociais causados por sua antiga política de drogas e concilia a legalização da maconha à criação de mecanismos de integração de antigos vendedores do varejo, que antes se encontravam na condição de criminalidade, ao mercado recém legalizado, bem como à criação de programas sociais e de infraestrutura voltados para comunidades marcantemente afetadas pela “guerra às drogas” (PRADO,
2020). Porém, embora a agenda seja promissora, não só o proibicionismo se mantém hegemônico, como também as próprias iniciativas de legalização, de um modo geral, minimizam ou simplesmente não consideram a necessidade da reparação dos efeitos do longo período de proibicionismo. Trata-se de um problema de grandes dimensões e que precisa ser assim concebido e enfrentado.

Nesse sentido, compreende-se que há a necessidade de se avançar em estudos que norteiem a formulação de políticas de drogas anti proibicionistas e alinhadas aos direitos humanos, mas, para além disso, é vital aglutinar forças políticas no sentido de se demarcar o debate público pela ótica da necessária reparação de décadas de catastróficas políticas
de drogas. A discussão em torno do uso medicinal da maconha, sem dúvida, tem mostrado um grande potencial em desinterditar o debate público e, assim, situá-lo em bases minimamente plausíveis, superando o predomínio do viés moralista e assumindo o tema como uma questão de saúde pública. A despeito de se tratar de uma questão da mais absoluta relevância, convém destacar que se trata apenas da ponta do iceberg das diversas
questões sociais que perpassam e são perpassadas pela temática da (des) criminalização das drogas no Brasil.
De fato, em torno da reivindicação do uso terapêutico da cannabis, são percebidas na superfície demandas absolutamente legítimas que apontam para consequências nefastas do proibicionismo para a saúde pública, que vê há muito tempo dificultado o estudo de diversas substâncias e o acesso a seus benefícios (MEDEIROS; TÓFOLI, 2019). Impõe-se, assim, de modo totalmente desnecessário, a uma grande parcela da população, condições adversas de saúde e de vida em sentido amplo. Por outro lado, o debate público não pode se limitar ao aspecto terapêutico, sob o risco de, simplesmente, garantir uma “velha nova roupagem” à perspectiva moral que há tempos divide os diferentes usos de drogas entre “o bem e o mal” e/ou de se negar os impactos sociais da proibição e dos distintos modelos de legalização. É possível que alguém mais otimista imagine estar diante de avanços graduais e inevitáveis. Porém, não se deve, sob nenhuma hipótese, negligenciar a correlação de forças políticas e a importância da luta, ainda mais em um país tão desigual como o Brasil, que, inclusive, demonstra grande capacidade em soterrar suas memórias e em negar a necessidade de reparação de períodos tenebrosos de sua história, como a escravidão
(FERNANDES, 2007). O mesmo ocorre, inclusive, em relação à ditadura (SOARES, 2019; TELES; SAFATLE, 2013). Não por acaso, essas duas heranças guardam íntima relação com a maneira pela qual se materializa a “guerra às drogas” no país, mantida através de um aparato militar voltado para a repressão violenta dos segmentos populares, sobretudo contra a população negra e periférica (MACIEL, 2020).
Não encarar esse aspecto como central é, a despeito de alguns avanços pontuais, manter a situação em seus traços essenciais. Hoje o que ganha destaque no debate público é, em linhas gerais, a busca por maneiras de atenuar alguns efeitos colaterais do proibicionismo, enquanto não são discutidos seus fins e seus efeitos mais estruturais. Para de fato se avançar nesse debate é necessária uma visão integrada que considere as mais
diversas substâncias e contextos de uso, bem como modelos de reparação e
regulamentação, em um processo amplo que deve ser estabelecido por meio da participação popular, sobretudo, como bem aponta Prado (2020), com protagonismo das populações mais intensamente afetadas pela proibição. É fundamental incluir nessa discussão formas de reparação aos inúmeros prejuízos à vida de famílias, indivíduos e populações inteiras marcadas pelo encarceramento, pela morte decorrente de confrontos e execuções, pelo cotidiano em territórios marcados por conflitos e pela repressão que impõem grandes obstáculos a atividades diversas, do
trabalho ao acesso à saúde, à educação, ao lazer, dentre outros. Além disso, é imprescindível discutir formas de integração das pessoas envolvidas em atividades ligadas ao comércio das drogas no varejo em um possível futuro comércio regulamentado, sendo inaceitável a possibilidade de segregá-las desse ramo justamente em face da legalização ou até mesmo de aumentar a exploração, o que, sem o devido controle público, lamentavelmente tende a ocorrer.
Há de se ter em mente, claro, que as desigualdades e injustiças sociais no Brasil não foram inauguradas pela “guerra às drogas”, mas sim guardam raízes na herança escravocrata e colonial, bem como nas próprias características do desenvolvimento capitalista aqui observado (FERNANDES, 2007; GIMENEZ, 2008). Assim, de modo algum se espera que, pura e simplesmente, a partir de um modelo de regulamentação das drogas hoje ilícitas sejam solucionados os profundos problemas sociais que arcam a sociedade brasileira, o que seria tarefa a ser remetida a um patamar muito superior de formulação de políticas aliadas ao desenvolvimento da nação. Entretanto, como já mencionado, além de ser inegável que a “guerra às drogas” é um potente instrumento de repressão popular com vistas à manutenção da estrutura desigual e que, por isso, deve ser rechaçada pelas forças progressistas, é fato que o debate em torno da legalização de usos
abre uma janela histórica importante para tratar de temas sociais de grande relevância como a reparação.
Destaca-se que, felizmente, há vozes potentes no Brasil que tem se dedicado à denúncia dos destrutivos impactos sociais do modelo proibicionista e à luta por uma outra política de drogas, como a Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, bem como órgãos de classe e entidades profissionais e diversos coletivos e movimentos da luta antimanicomial, de redução de danos e de drogas e direitos humanos, dentre outros pelo Brasil afora. Observa-se, inclusive, que os atuais avanços no debate público são, em certa medida, consequências dessas lutas.

Porém, é imprescindível que esse debate ganhe novo fôlego e avance, diante dos novos desafios e armadilhas postos pela atual agenda. Em um momento no qual o Estado, pressionado, volta-se para uma parcela da população e acena com a legalização de determinados usos de uma droga que é, até então, ilícita e, em muitos casos, ainda violentamente reprimida, torna-se absolutamente necessário, concomitantemente à defesa
de pontuais avanços (até pelo fato de que há vozes conservadoras dissonantes), combater o cinismo mórbido de quem, direta ou indiretamente, tanto matou, tanto mata e, a menos que se tenha suficiente reação, tanto continuará matando em nome de uma hipócrita “guerra às drogas”.

É necessário olhar vigilante, pois, ainda que o debate por aqui seja, de certa forma, embrionário, não seria de se surpreender que modelos de legalização fossem concebidos e implantados sem a devida participação popular e, portanto, sem abranger questões sociais fundamentais. Os desafios são grandes, os avanços preliminares são bem-vindos, a luta é longa, mas não se pode fragmentá-la. A reparação, ainda mais no caso brasileiro, deveria nortear qualquer alteração considerada progressista na política de drogas. A reparação não é uma pauta secundária. A reparação não pode esperar.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo:
Autonomia Literária, 2018.
CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO. Tráfico de
drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados, famílias e rede de proteção social. São Paulo: Núcleo de Etnografias Urbanas, 2018. Disponível em http://cebrap.org.br/wpcontent/uploads/2017/04/Apresentacao_NEUFUMCAD_Final.pdf. Acesso em: 16 jul. 2021.
D´ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os
traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Global Editora,
2007 (1ª ed. 1972).
GIMENEZ, Denis Maracci. Ordem liberal e a questão social no Brasil.
Campinas: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, 2008.
MACIEL, Natalia Cardoso Amorim. A criminalização da favela por meio da
categoria “lugar da ação” em sentenças de crime da Lei de Drogas no Rio de Janeiro. Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, São Paulo, v.4, n.4, 2020. Disponível em: https://pbpd.org.br/revistaplato/. Acesso em: 16 jul. 2021.

MEDEIROS, Débora Gomes; TÓFOLI, Luís Fernando. O impacto da
descriminalização de drogas nas políticas públicas. Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, São Paulo, v.3, n.3, 2019. Disponível em:
https://pbpd.org.br/revistaplato/. Acesso em: 16 jul. 2021.
OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS. Novas configurações das redes
criminosas após a implantação das UPPs. Rio de Janeiro/RJ, 2018. Disponível em: http://of.org.br/wp-content/uploads/2018/07/E-BOOK_NovasConfigura%C3%A7%C3%B5es-das-Redes-Criminosas-ap%C3%B3simplanta%C3%A7%C3%A3o-das-UPPs.pdf. Acesso em: 16 jul. 2021.
PRADO, Monique. “As bocas de fumo devem ser tombadas?”: o que significa
reparação histórica para quem trabalha no narcotráfico?. Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, São Paulo, v.4, n.4, 2020. Disponível em: https://pbpd.org.br/revistaplato/. Acesso em: 16 jul. 2021.
SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
SOUZA, Marcos Barcellos. Capitalismo e clandestinidade: os subcircuitos
ilegais da economia urbana metropolitana. Orientador: Carlos Antonio Brandão. 174 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP, 2007. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/285800. Acesso em: 16 jul. 2021.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a
exceção brasileira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
VIEIRA, Athos. Maconha e raça: impactos da regulamentação do mercado no Colorado. Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, São Paulo, v.4, n.4, 2020. Disponível em: https://pbpd.org.br/revistaplato/. Acesso em: 16 jul. 2021.

Deixe um comentário