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Lousa, giz e chumbo

Subfinanciamento da escola pública e privatização do setor estão entre os principais legados das políticas educacionais da ditadura

Em meio a um emaranhado de fusões de escolas e concentração de conglomerados universitários, o ensino superior privado brasileiro segue de vento em popa. Um levantamento da consultoria Hoper Educação, com base em dados de 2013, constatou crescimento de faturamento de 30% entre 2011 e 2013, de R$ 24,7 bilhões para R$ 32 bilhões. Conforme a consultoria, estão matriculados hoje no ensino superior privado 5 milhões de alunos.

Os números do setor têm reflexo no Censo Escolar do Ministério da Educação. Os dados de 2011, divulgados em 2013, indicam que das 2.365 instituições que participaram do levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 88% são particulares – percentual que praticamente repete o do censo anterior. Entre as dez maiores instituições de ensino superior em números de matrículas de graduação, nove são privadas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, mostra que em 2012 estavam na rede privada 74,6% dos estudantes, percentual que aumentou em relação ao ano anterior, que era de 73,2%. O crescimento da educação como negócio é inversamente proporcional à queda na qualidade dessa modalidade ensino, pouco fiscalizado.

A maioria dos cursos é noturna e alunos dessas faculdades dedica menos tempo aos estudos fora da sala de aula do que os das faculdades públicas. Justamente porque precisam trabalhar, não chegam a estudar mais do que cinco horas por semana em casa. E é na universidade pública, onde a qualidade do ensino é historicamente melhor, que estão os alunos com mais tempo para estudar. O dado revela mais um traço de desigualdade, já que ali estão os estudantes com melhor situação socioeconômica. Em 2013, dos mais de 10 mil estudantes aprovados no vestibular da Universidade de São Paulo – a mais procurada do Brasil –, apenas 28,5% estudaram em escola pública em algum momento da vida. O número é pouco maior que em 2008, quando era de 26,5%, conforme dados da Fundação para o Vestibular (Fuvest).

Esse cenário decorre do conceito de que a educação é um negócio, cuja missão é forjar cidadãos para atender às demandas do mercado. E é cria de um processo que ganhou grande impulso há 50 anos.

A educação que convém

À noite, à luz de lampião, 300 trabalhadores rurais da pequena Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, aprenderam a ler, escrever, fazer contas e a se enxergar como cidadãos. Bastaram 40 aulas. O êxito da experiência levou a reunir, em seu encerramento, em março de 1964, o então presidente João Goulart e o general Humberto de Alencar Castelo Branco.

Comandante da III Região Militar em Recife na época, ele já via no método pedagógico do educador Paulo Freire uma forma de “engordar cascáveis” naqueles sertões. No mês seguinte, houve a primeira greve no município, atribuída à “praga comunista” trazida pelas aulas e, logo em seguida, o cancelamento, pelos militares, da adoção do programa em todo o país que tinha então taxa de analfabetismo superior a 30%. Freire foi preso e exilado.

Não se sabe se o país teria erradicado o analfabetismo se a experiência de Angicos fosse ampliada para todo o território. Ou se ainda teria os mesmos 13 milhões de analfabetos. A certeza é que o golpe, que em 1964 brecou o processo de democratização em curso no país desde a década de 1940, fez  da educação instrumento de legitimidade, alvo de seus órgãos de repressão e deu cheque em branco ao empresariado amigo. Tanto que as diretrizes da política educacional dos governos militares, marcada pela transferência de recursos públicos para o setor privado – sangria que acabou colocando o ensino público brasileiro entre os piores do mundo –, foram traçadas no Rio de Janeiro, em 1964, num seminário do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organização que ajudou a criar o clima e a dar sustentação ao golpe. O tema do evento: “A educação que nos convém”.

Dali saíram as bases da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, aprovada duas semanas antes de ser baixado o Ato Institucional nº 5, o AI-5. A lei reorganizou o ensino superior numa concepção autoritária, segundo a qual mercado, e as instituições ao seu dispor, adequam as pessoas às suas necessidades. Criaram-se ainda mecanismos que justificaram abusos, intervenções, perseguição e cassação de professores e estudantes, censura à pesquisa e a subordinação direta dos reitores ao presidente da República.

E, claro, a lei permitiu também a abertura de vagas em faculdades particulares para atender anseios do empresariado, que dependiam de mais profissionais capacitados. Nos primeiros anos do golpe, enquanto a Argentina tinha 36% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos na faculdade, o Brasil não chegava a 12%. Para chegar perto, portanto, era preciso triplicar as vagas.

“Até aquela época eram poucas as instituições privadas, geralmente tradicionais, religiosas, como a presbiteriana Mackenzie e a Pontifícia Universidade Católica. O ensino superior era oferecido majoritariamente pelo Estado, que nos anos 1940 encampou faculdades privadas. Mas desde então a proporção se inverteu. Hoje, as vagas públicas não chegam a 25% do total”, aponta o professor Dermeval Saviani, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Dois meses após o AI-5, o presidente Arthur da Costa e Silva baixou o Decreto-lei nº 477, o AI-5 das universidades. Escrito sob a batuta de tecnocratas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), punia sumariamente professores, alunos e funcionários considerados culpados de subversão e os proibia de trabalhar ou estudar em outras instituições. Era a criminalização do movimento estudantil e de toda forma de contestação.

Na época foram presos, processados e mandados para o exílio professores como Celso Furtado, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Leite Lopes e Mário Schemberg. As forças militares invadiram universidades, incendiaram a sede a União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, fecharam escolas e destruíram bibliotecas.

“O argumento era colocar o país em ordem numa perspectiva estratégica de progresso conforme as convicções do regime, calando as insatisfações sociais e políticas que brotavam sobretudo nesses espaços”, lembra o professor José Willington­ Germano, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autor do livro Estado Militar e a Educação no Brasil 1964-1985.

Obviamente, nenhuma medida se impõe exclusivamente pelo retrocesso. Ali se implementava também a pós-graduação no país, proporcionando a pesquisa universitária – ainda que de forma mutiladora, de universidade operacional, voltada à técnica e ciência instrumental, burocratizada, orientada pelo mercado, longe do ideal autônomo, pluralista e crítico, como observa Willington. A novidade, porém, acabou sendo um tiro pela culatra ao aglutinar professores e pesquisadores contrários à repressão. “Houve uma produção importante nas ciências sociais, humanas e da educação que despertou o senso crítico e levou à desconstrução do discurso hegemônico”, observa Saviani, da Unicamp.

Os movimentos de educação e cultura popular também foram duramente reprimidos, entre elas as escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base (MEB), da Arquidiocese de Natal. O rádio que alfabetizava também incentivava a participação sindical dos trabalhadores rurais e a defesa da reforma agrária como enfrentamento à miséria. Ao discurso reformista democratizante foi contraposto o da Doutrina de Segurança Nacional, com disciplina e ordem enaltecidas, por exemplo, no ensino de Educação Moral e Cívica ministrado em todos os níveis, inclusive na pós-graduação.

Promessa não cumprida

Inspirada na teoria do capital humano com apelos de correção das desigualdades sociais defendida pelo empresariado do Ipes, a Lei nº 5.692, de 1971, ampliou de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória no então ensino de primeiro grau. Teoricamente, todas as crianças brasileiras entrariam no primeiro grau e no quinto ano seriam sondadas quanto a aptidões para o mercado de trabalho, sem ter de mais passar pelo exame da ­admissão para subir do primário para o ginasial. E no segundo grau já seguiriam para um curso profissionalizante, com a justificativa de que o ensino profissional deveria ser destinado a todos, garantindo a todos uma profissão de nível médio.

De certo modo, seria uma conquista comparada à escolaridade obrigatória anterior, de quatro anos, mas que na prática não se sustentou. Primeiro, porque o próprio primeiro grau não foi universalizado até hoje em algumas regiões periféricas. E, segundo, porque não foram feitos investimentos proporcionais ao crescimento. “Com o novo ensino de primeiro grau, com oito anos, e abolido o exame de admissão, mais alunos puderam continuar estudando”, reconhece a professora Alzira Batalha Alcântara, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Porém, sem a injeção de mais recursos, não havia como construir mais escolas para atender à demanda, faltavam laboratórios em escolas profissionalizantes de segundo grau, o currículo foi enxugado para reduzir a necessidade de mais professores, não havia concursos, os salários foram sendo achatados e a qualidade caiu”, completa.

Pelas contas do professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nicholas Davies, houve mesmo redução nos investimentos. Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1961, cabia à União investir no mínimo 12%, o que a Constituição de 1967 suprimiu. Em 1969, pela Emenda Constitucional n° 1, os municípios continuaram obrigados a investir 20% da receita no ensino primário. Porém, estados e União ficaram livres de um percentual mínimo. Entre 1960 e 1965, o Ministério da Educação (MEC) investia entre 8,5% e 10,6%, percentuais que foram reduzidos para 4,4% e 5,4% no período de 1970 a 1975, do chamado “milagre” econômico.

Só em 1983, com a Emenda Constitucional n° 24, do senador João Calmon, foi fixado mínimo de 13% para a União e 25% para estados, Distrito Federal e municípios. O dinheiro que faltava para o ensino público seguia para o setor privado, via isenções fiscais e incentivos.

Um dos mecanismos era o salário-educação, criado em 1964 para financiar a educação primária. No entanto, permitia às empresas abrir escolas para filhos de funcionários ou pagar bolsas em escolas particulares em troca da isenção do recolhimento. Estudos mostram que em meados da década de 1980 metade de toda a rede particular que oferecia educação fundamental era mantida com o salário-educação.

As escolas particulares proliferaram, sempre contando com a isenção de impostos sobre patrimônio, de renda e sobre serviços e financiamentos com juros negativos. O perfil privado, sem a representação democrática de todas as parcelas da sociedade, é, aliás um traço do período da ditadura que se mantém nos dias de hoje no estado de São Paulo, por exemplo. A combinação de um regime que inibia as possibilidades de contestação social com a deterioração da qualidade do ensino público criou mais um alicerce para a edificação do ensino privado. Em vez de contestar e exigir ensino estatal de qualidade, a classe média passou a incluir a escola particular cada vez mais em sua cultura e em seu orçamento.

Passados 50 anos do golpe, os estudiosos não sabem dizer também se as medidas tomadas pelos governos autoritários teriam sido adotadas num eventual ­regime de alternância regular de poder civil. Mas quase 30 anos depois de iniciada a redemocratização, o que se sabe é que ainda são sentidos os efeitos do pós-1964 no ensino. E a luta por mais recursos para a educação pública é uma das principais bandeiras da sociedade que hoje pode e vai às ruas. “O mais perverso e injusto é o elemento ideológico resultante de todo esse processo que ainda persiste: que o público é ruim e o particular é bom”, diz o professor Luiz Antônio Cunha, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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