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Mães encarceradas: relatos de violações e dificuldades vividas por essas mulheres

Após 1 mês da decisão que permite prisão domiciliar para mães, o Brasil de Fato ouviu relatos de algumas delas

“Fui presa no sábado, grávida ainda. Quando cheguei na delegacia, já estava com dor. Dormi lá no chão. Com o nervosismo por estar naquele lugar, no fedor, com bichos, só piorou. Acabei entrando em trabalho de parto com ele. Pediram para eu ter calma, não ter filho naquela hora”.

Essa é a história de Jéssica Monteiro, de 24 anos. Acusada de tráfico de drogas, após a Polícia Militar invadir a ocupação onde vivia e encontrar 90g de maconha, foi detida mesmo prestes a completar o nono mês de gestação. Entrou em trabalho de parto na delegacia na mesma madrugada, foi levada ao hospital, e depois voltou para a cela suja, junto ao seu recém-nascido, o pequeno Enrico.

O caso de Jéssica motivou uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF). Um pedido de habeas corpus coletivo para todas as presas provisórias do país que sejam gestantes, mães de crianças de até 12 anos ou de deficientes sob sua guarda, converte a pena delas para prisão domiciliar. Estima-se que um terço da população carcerária feminina se enquadre neste contexto, o que corresponde a cerca de 14 mil detentas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), 5 mil mulheres podem ser contempladas pela decisão, que completa um mês nesta terça-feira (20).

O Brasil de Fato conversou com mulheres presas e meninas, internas da Fundação Casa, que enfrentam as violações e dificuldades da maternidade no encarceramento.

É o caso de Berta Lúcia Pereira, de 26 anos, que foi presa em agosto de 2016, em Presidente Prudente, interior paulista, enquanto estava grávida de seis meses. Ela ficou em prisão domiciliar até sua filha completar 10 meses de vida. Então, voltou ao regime fechado por mais três meses, até conseguir outro habeas corpus no final do ano passado. “Foram três meses de muita angústia, parece que não acabava mais, perdi o primeiro passinho dela. Quando eu cheguei em casa ela não queria vir comigo, deu uma estranhada. Foi muito difícil, é uma dor tremenda que a gente sente”, afirmou.

Para Berta, a forma como as mulheres são tratadas dentro da prisão é uma das piores partes desse processo. “No meu caso, dava o horário de amamentar e meu peito ficava dolorido, começava a apedrejar. A alimentação é ruim, principalmente para as gestantes, muitas vezes a comida chega azeda. Às vezes tem grávidas quase ganhando e eles esperam passar mal para dar atendimento”, conta.

Um estudo divulgado em junho de 2017 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisou a situação da população de mulheres que vivem com seus filhos em unidades prisionais do país e diagnosticou que 36% delas não tiveram acesso adequado à assistência pré-natal e 15% afirmaram ter sofrido algum tipo de violência.

Jacqueline Chagas Santanas, de 25 anos, natural de Araraquara, no interior de São Paulo, foi contemplada pelo habeas corpus coletivo, depois de seis meses presa, já grávida. “Tinha hora que eu estava com dor, mas eles não me davam remédio nem me levavam para o hospital. Falaram que não podia ter atendimento de madrugada, que não tinha médico. Eu estava com muito medo, porque lá não tem muita estrutura para grávida”, disse.

Ela recorda a preocupação que passou nos últimos meses, principalmente em relação ao nascimento de seu filho Davi Henrique, previsto para este mês de abril. “O filho de uma moça lá até morreu por causa das bombas que os seguranças soltam. Aí o menininho ficou surdo e morreu com o susto. Eles soltam bomba quando vão fazer blitz dentro da cela. O bebê não aguentou. Eu fiquei com mais medo ainda”, denunciou.

Jacqueline lamenta ainda a situação que passou com sua outra filha, de quatro anos, da qual ficou afastada. “Minha irmã falou que ela só chorava, deu febre, vomitava, emagreceu, porque eu não estava perto dela”, contou.

Para a advogada criminalista Bruna Angotti, integrante do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHU), que participou da elaboração do habeas corpus, a decisão do STF foi uma grande vitória. “Todos os dias, desde a votação, eu recebo, em diversos grupos dos quais faço parte, notícias de mulheres saindo, mulheres grávidas, recém-mães, ou que estavam com as crianças em situação de vulnerabilidade por sua ausência em casa. A situação prisional brasileira é de extrema violência, nenhum direito fundamental é respeitado”, criticou.
Tráfico

Jacqueline, assim como Berta, foi presa em flagrante após a polícia encontrar 25g de maconha em sua casa. Ambas alegam que a droga pertencia aos seus respectivos ex-maridos e que não tinham conhecimento da droga, situação muito comum entre as detentas.

No Brasil, 64% das mulheres encarceradas foram presas por crimes relacionados às drogas. No caso dos internas da Fundação Casa, o tráfico é responsável por 41,65% das medidas socioeducativas, mas as meninas representam apenas 3,92% do total de internos do país, de acordo com um levantamento feito pela própria instituição em novembro de 2017.

Com base nos relatos que ouviu ao longo de sua internação, Beatriz, de 17 anos, elabora suas próprias estatísticas. “A menina vai presa por tráfico e era B.O. do namorado. Isso acontece muito, é o que mais acontece, principalmente com menor de idade”, denuncia.

A própria Beatriz assumiu o crime praticado pelo seu namorado maior de idade: um assalto à mão armada ao qual presenciou. Arrependida, a jovem, mãe de uma menina de dois anos de idade e grávida de sete meses de outra menina, conta que a maior preocupação da internação concerne às filhas. “É uma sensação muito ruim saber que minha filha já está privada da sociedade por um erro meu”, disse.

Beatriz é interna há 15 dias do Programa Materno Infantil (PAMI), que se situa na Fundação Casa Chiquinha Gonzaga, na zona leste da capital paulista. No programa, atualmente, nove meninas cumprem a pena socioeducativa em uma casa especial, decorada com paredes, cortinas, e barras de metal coloridas nas janelas. De lá, os bebês não podem sair, nem mesmo com outros familiares. Eles cumprem a restrição de liberdade junto com suas jovens mães.

Essa restrição já começa a incomodar a pequena Jade, de dois anos e três meses de idade. Filha da interna Carolina, que completa agora seu terceiro ano no programa, a criança começou a questionar o espaço gradeado que pode ocupar. Carolina conta que a situação lhe traz muita culpa. “Ela sempre quer ficar lá fora com os funcionários. Antes eu ficava chateada, achava que ela não gostava de mim. Mas entendi que ela não tem isso todo dia então ela quer mais. Eu me sinto culpada porque ela está aqui por causa de mim. Ela não sabe as coisas de crianças normais, o que é um sorvete, brincar. Conforme as crianças vão embora daqui, ela perguntava para mim: “cadê?”, contou.

Já a jovem Bianca, de 15 anos, descobriu que estava grávida apenas após ser internada. No PAMI há sete meses por tráfico de drogas, ela agora é mãe de Ana Maria, que tem apenas duas semanas de vida, e conta que está aprendendo a maternidade com as outras internas e funcionárias da unidade.

“Eu tinha começado a traficar há dois meses e fui presa três vezes nesse meio tempo. Eu usava cocaína, comecei a vender também. Fui só eu e uma funcionária [para o hospital]. Foi bastante difícil. Uma funcionária do hospital ficou perguntando qual tinha sido meu B.O. quando eu estava em trabalho de parto”, contou.

Habeas corpus

De acordo com Bruna Angotti, a partir de agora é mais fácil que as meninas da Fundação Casa sejam contempladas pelo habeas corpus da prisão domiciliar do que as condenadas do sistema prisional. No entanto, a advogada afirma que a decisão ainda pode se expandir para condenadas, dependendo do entendimento de cada juiz. “Na hora de fazer o cálculo precisa ser um juiz com humanidade para perceber que a perda da liberdade desmantela famílias, e existem outras maneiras de resolver isso”, apontou.

Para Jéssica, que agora vive em uma ocupação no centro da cidade, a decisão do STF pode beneficiar principalmente os filhos das presidiárias. “Eu vi duas crianças que completaram seis meses indo embora. É doloroso, a criança fica desesperada, a mãe fica desesperada pela situação. Eu pensava que ia passar a eternidade lá”, disse.

Os juízes de primeira instância têm 60 dias desde a votação do habeas corpus coletivo para colocar a decisão em prática. No próximo mês, espera-se que muitas outras mulheres sejam contempladas pela decisão, e consigam viver a maternidade em casa, sem as violações do encarceramento.

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