O CRP/SP apresenta seu posicionamento e suas orientações à categoria sobre o tema da Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência na Rede de Proteção.
Nossas reflexões sobre esse aspecto da conduta profissional tiveram início em 2005, após recebermos notícias da participação de psicólogas/os no chamado Depoimento Sem Dano, um projeto realizado pelo Judiciário em Porto Alegre, desde 2003.
Nosso entendimento se debruça, a princípio, sobre dois aspectos: o papel profissional da/o psicóloga/o e a garantia de direitos. O papel profissional é pensado a partir da reflexão sobre quais escutas estão atribuídas à prática de psicólogas/os ou como essas poderão ocorrer, considerando-se o comprometimento ético, político e técnico da Psicologia.
Em decorrência da situação peculiar de desenvolvimento em que se encontram crianças e adolescentes, considerando o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação específica da nossa profissão e nossos marcos teórico-técnicos e metodológicos, enquanto ciência e profissão, sustentamos o entendimento sobre a diferença entre a escuta psicológica e a inquirição judicial, feitas por meio do diálogo informal, da investigação policial, dentre outros modos de recolher dados dos envolvidos em situações de suspeita de violação de direitos.
A ciência psicológica se dedica, especialmente, ao estudo e compreensão das diversas formas de subjetivação e as diferentes subjetividades que a escuta psicológica engendra, debruça sua atenção a contribuir na constituição de múltiplos sujeitos, numa articulação constante com sua historicidade. Nessa esteira, a escuta psicológica se caracterizará, também, pelo cuidado do profissional em acolher, compreender e trabalhar as demandas do outro de maneira acolhedora e não invasiva.
Por outro lado, o CRP compreende que a inquirição se configura em um procedimento jurídico, composto de interrogatórios, os quais procuram reunir depoimentos para elucidar e provar possíveis fatos. A inquirição é, nesse sentido, a busca pela verdade real e fática e se confirma como meio de provas para instruir lides, sendo esse o seu objetivo precípuo no processo judicial. A escuta, por sua vez, possui outro caráter, ela se caracteriza pela busca de sentidos, de significações diversas, caracteriza-se por prestar atenção, ouvir, perceber as subjetividades, ressignificá-las.
Como resultado de nossas discussões no Sistema Conselhos de Psicologia, o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução nº. 010/2010, em junho de 2010, norma que instituiu a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, como vítimas ou testemunhas, na Rede de Proteção. Essa normativa indicou os princípios norteadores e esclareceu os referenciais técnicos para a realização dessa escuta pela(o) psicóloga(o).
A Resolução foi construída com base na legislação Profissional da/o Psicóloga/o, em especial no Código de Ética, e nos marcos legais de proteção integral da criança e adolescente, como o ECA (Lei Federal 8069, de 13 de Julho de 1990), a Convenção dos Direitos da Criança (promulgada no Brasil pelo Decreto 99710, de 21 de novembro de 1990) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança.
Entretanto, o argumento principal foi o direito das crianças de se manifestarem e serem ouvidas em seu tempo e dentro de suas condições psíquicas e históricas. Daí a compreensão de que precisam ser respeitadas as condições subjetivas das crianças e adolescentes que, por vezes, as colocam sem condições de se expressarem sobre a violência vivida ou presenciada, se submetidas, por exemplo, ao denominado depoimento sem dano. É na modalidade de depoimento sem dano, ou especial, que se encontra postulada a inquirição, logo, ela não se configura como prática psicológica.
É nesse sentido que a revogação da Resolução CFP 10/2010 não significou, em nenhuma hipótese, a dissolução dos princípios éticos contidos em nosso Código de Ética Profissional que devem pautar toda conduta profissional, especialmente, no campo da escuta psicológica. Logo, a psicologia continuará contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em que pese às diferenças entre escuta e inquirição, reiteramos a escuta psicológica, em sua essência prática, ser incompatível com a prática da inquirição. Importante destacar que a inquirição viola os direitos humanos de crianças e adolescentes.
Há aqui o entrelaçamento da atuação profissional com a garantia de direitos, porque, a atuação de psicólogas/os na escuta de crianças e adolescentes em situação de violência se dá justamente em um campo tensionado e marcado por práticas diversas, que também se nomeiam garantidoras de direitos. A participação de crianças e adolescentes em depoimentos objetiva aferir fatos empíricos, com possível punição daqueles que violaram direitos e ocorre em nome dessa mesma defesa de direitos. Por ser desse modo, ou seja, para garantir direitos, muitas vezes, direitos são violados. Dessa forma, é importante que a função dos diferentes serviços e equipes profissionais seja garantida, com o compartilhamento de propostas distintas de atuação, consoante e pertinente a cada área de atuação, e que possam se entrelaçar em objetivos comuns.
Outro elemento diz respeito à autonomia entre diferentes serviços/equipes e entre profissionais. Isso equivale a dizer que não deve haver hierarquias entre os serviços envolvidos, sobretudo do Judiciário em relação à rede de serviços. Da mesma forma, é importante que seja criada e mantida horizontalização das relações entre os atores profissionais, sobretudo, entre o juiz e os demais técnicos, que não deverão apenas cumprir determinações. Nesse sentido, a (o) psicóloga (o) deverá manter sua autonomia para planejar seu trabalho, escolher instrumental e técnicas e se manter em diálogo interdisciplinar com os demandantes de seus serviços, o que é diferente de somente cumprir a tarefa solicitada.
Especial atenção ao sigilo de informações, previsto nos artigos 9º e 10º do Código de Ética. O profissional deverá garantir a proteção do atendido, resguardando a confiabilidade e a confidencialidade das informações, preservando sua intimidade, sem exposição a constrangimentos. O profissional avaliará os casos em que poderá quebrar o sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo; para tal, deve ter autonomia, e, caso decida pela quebra de sigilo, irá expor apenas o estritamente necessário a outros serviços e/ou outros profissionais que serão fundamentais na garantia dos direitos do atendido.
Nesse sentido, a (o) psicóloga (o) está, impreterivelmente, comprometida(o) com o respeito à dignidade, à liberdade e à integridade da pessoa humana, com seu trabalho pautado pela ética profissional, pelos dispositivos dos Direitos Humanos, de modo que sua escuta promova ao sujeito atendido emancipação, fortalecimento de vínculos, possibilidades de vida para além do sofrimento e das sintomatologias. Logo, entendemos que o papel do profissional não reside na inquirição, que tende a perpetrar as violações de direitos. Nesse sentido, também é importante saber se crianças e adolescentes estão tendo garantido o direito de falar ou estão sendo obrigadas a falar, como testemunhas, para instruir processos judiciais, seja pelo uso da escuta especial – depoimento sem dano -, seja pelo uso da escuta judicial tradicional.
Quanto ao específico Projeto de Escuta Especial Não-Revitimizante do TJSP, o CRP SP segue na perspectiva de manter aberto o diálogo com a categoria atuante nesse campo específico de atuação profissional. O CRP SP dará continuidade a esses debates democráticos com as(os) psicólogas(os) para buscarmos avançar juntos na construção de nosso posicionamento ético-político na garantia de direitos das crianças e adolescentes, bem como potencializar as contribuições da Psicologia como ciência e profissão na interface com o sistema de justiça, a partir dos processos de escuta e não de inquirição.