Notícias

Para atender povos indígenas, psicologia tem que passar por uma descolonização do conhecimento, defende profissional

Falhas na formação e conhecimento sobre o conceito de bem viver dos povos indígenas são os desafios para a classe

“Todo dia/ era dia de índio” cantaram Jorge Ben e Baby Consuelo ainda na década de 1980. “Antes que o homem aqui chegasse/ Às Terras Brasileiras/ Eram habitadas e amadas/ Por mais de 3 milhões de índios/ Proprietários felizes/ Da Terra Brasilis/ Pois todo dia era dia de índio/ Todo dia era dia de índio”. Depois do rápido resgate de nossa história antes da colonização portuguesa, a música nos lembra “Mas agora eles só tem/ O dia 19 de Abril”.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o país tem hoje 240 povos indígenas somando quase 900 mil pessoas em cidades e áreas rurais. Em 1500, ano da chegada dos portugueses por aqui, esse número estava entre 4 e 5 milhões.

Mesmo após um longo processo de genocídio da população originária e de sua cultura, elas ainda tem muito a ensinar para a classe da psicologia, desde seu conceito de bem viver, sua relação com a natureza.

Falha na formação

Para o psicólogo Bruno Simões, que trabalha com populações indígenas e povos da terra, a psicologia teria que passar por uma “descolonização dos saberes do conhecimento” para que possa, de fato, formar uma ciência mais voltada aos temas brasileiros e que respeite os modos de vida diferentes que o do homem branco de classe média.

Leandro Lucato Moretti, psicólogo que se formou na Universidade Federal de Dourados, no Mato Grosso do Sul, reforça que teve uma vivência um pouco mais próxima com as populações da região, mas acredita que os cursos precisam ser mais abertos para que os próprios indígenas possam se formar e cuidar de suas comunidades.

“Falta uma psicologia que explique mais a nossa realidade, a luta no campo, por exemplo. A gente pode ganhar muito se conseguirmos nos desprender desse conhecimento eurocêntrico e começar a pensar em práticas que existem nesses grupos e que tem conhecimentos também. Além disso, faltam psicólogos indígenas, mas muitas vezes os currículos dos cursos de psicologia inviabiliza a formação. Meu curso, por exemplo, era integral e um indígena não tinha a autonomia de ficar o dia todo na faculdade”, reforça.

Indígena da etnia Chiquitano, um dos 43 povos presentes no estado do Mato Grosso, Soilo Urupe Chua se formou em psicologia pela Universidade Federal do Mato Grosso recentemente e aponta que a metodologia e o ensino precisam evoluir muito no Brasil.

“As academias, por mais boa vontade que tiverem, dificilmente contemplarão nós indígenas e as classes minoritárias no modelo que se encontra a psicologia no Brasil hoje. Ele é um modelo impositor e agressivo que não considera as nossas especificidades”, afirmou.  

Novos desafios para o profissional da psicologia

Novos desafios estão sendo colocados para o profissional de psicologia dentro dos territórios indígenas, Simões reforça que o campo de atuação tem que ir além da saúde mental e começar a abranger mais áreas.

“A psicologia do senso comum é muito relacionada com saúde mental e não é diferente com os povos indígenas. Mas a gente pode trabalhar com educação, compor equipe de saúde da família, ajudar as populações a gerirem seus conflitos internos, questões relativas a violência de gênero, relacional, entre grupos diferentes, a gente pode intervir muito nesse campo”, aponta.

Ele explica também que muitas mulheres estão começando a questionar o machismo nas práticas cotidianas nas aldeias e até mesmo dentro dos mitos fundadores em certos povos. “Mas é um questionamento é muito diferente do que a gente chama de feminismo ocidental. Elas não vão rodar com livro da Simone de Beauvoir e queimando soutiens, é uma outra coisa, mas se trata de colocar na berlinda a coisa da divisão de poderes e de gêneros”.

Relação com a terra e o bem viver

O senso comum também atrapalha bastante o entendimento das diversas realidades indígenas no Brasil. Por mais de uma vez durante a entrevista, Simões corrigiu esse repórter que quis colocar todos os indígenas do Brasil dentro de um mesmo escopo de relação mais próxima com a terra e os animais. “Eu conheci uma mulher que foi se descobrir índia aos 20 anos de idade, porque os pais não disseram isso pra ela. Ela foi criada na periferia de São Paulo então a relação dela com a terra é totalmente diferente do que é passado pelo senso comum”, disse.

No entanto, ele explica que para muitos povos indígenas a concepção branca ocidental de subjetividade não faz sentido, e é nesse aspecto que a relação deles com a terra explica o mundo de uma forma diferente.

“Muitas das nossas visões de mundo, brancas e de classe média, são estranhas pra muitos povos indígenas. Pra nós, em última análise, o ser humano é separado de tudo, desde a natureza até de outros seres. Para eles é a união com a terra que determina aquilo que são. Nós vivemos em um mundo cheio de seres que tem vontades, se você matar o rio, por exemplo, você vai matar um parente dele. Se você matar muita anta, o espírito dos ancestrais daquela anta vai frequentar o seu sonho”, explicou.  

Solio reforça essa visão explicando que, até mesmo para obter os alimentos que seu povo necessita para comer, há todo um ritual de culto e respeito a terra. “Somos parte desta terra que é mãe e ela que nos sustenta. Nós a respeitamos. Quando fazemos roças, conversamos com a mata e com a terra e explicamos que vamos usar um pouco dela para plantar e tirar alimentos para nosso sustento e que por isso ela não deve ficar brava conosco”, encerrou.  

Deixe um comentário