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Quem são as mulheres que lutam pelo aborto legal no Brasil

“Eu tinha um laudo psiquiátrico falando de todas as minhas doenças e não aceitaram”, conta Fernanda

Uma em cada cinco mulheres, na faixa etária dos 18 aos 39 anos de idade, já realizou pelo menos um aborto na vida. Somente em 2015 foram realizados cerca de meio milhão de abortos, segundo Pesquisa Nacional de Aborto realizada pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em parceria com a Universidade de Brasília. Os números podem ser maiores já que a pesquisa não abrangeu adolescentes, mulheres em áreas rurais e após os 49 anos.

Todos os dias quatro delas morrem nos hospitais após complicações de uma interrupção mal feita. O aborto é a 5ª causa de morte materna no país, de acordo com Ministério da Saúde.

Ainda assim o tema ainda é um tabu. Gera medo, culpa e vergonha. Para além de ser um crime previsto em Código Penal, ainda é visto como algo imoral e um tema proibido em país laico, relata Fernanda Silva, nome fictício.

“Minha mãe tinha falecido há um ano. Desde então comecei a ter ataques de pânico frequentes e entrei em depressão, o que não me deixava ter uma vida normal. Eu tinha mais de um ataque por semana e tinha que ir para o pronto socorro. Eu me sentia doente. E gravidez era uma luta para mim, eu olhava e não conseguia ver futuro”.

Fernanda tem 38 anos e mora no interior de São Paulo. No ano passado, ela descobriu que estava grávida, mas não tinha condições de saúde para levar a gravidez adiante. O marido acompanhou e apoiou a decisão. Mãe de cinco filhos, ela conta que por causa do adoecimento não tinha forças para sair do quarto e cuidar deles.

“O dia passava, anoitecia, eles dormiam e eu me sentia muito mal, queria ter forças e vontade para ficar com eles, mas não conseguia”, relembra.

A lei permite que uma mulher interrompa a gravidez apenas nos casos de estupro; quando há risco de vida à mulher; ou anencefalia do feto.

Ela buscou na internet locais onde poderia realizar o aborto de forma segura e legal no Brasil e foi até o Hospital Pérola Byington, referência em atendimento público na realização de aborto legal. “Eu sai de lá com medo de ser internada, sai assustada.”

Ela conta que foi atendida pela diretora da instituição que informou que a gestação não poderia ser interrompida, mas se ela estava bem precisava ser internada para preservar as duas vidas.

“Eu tinha um laudo psiquiátrico falando de todas as minhas doenças e não aceitaram. A saúde que eles consideram é só física, não consideram o psicológico, percebi que a minha doença não era uma doença.”

Estado brasileiro falhou
Após a tentativa frustrada de fazer aborto legal no Brasil, Fernanda decidiu que faria em outro país. Foi para a Colômbia, onde há restrições para realização do procedimento, mas desde 2006 permite aborto em casos em que a saúde física ou mental da gestante está em risco. Ela relata que foram três dias de medo e insegurança, mas foi bem assistida pelos profissionais de saúde.

“Eu me senti assim lá não por causa do procedimento, mas porque já não estava bem por conta dos surtos mesmo; e lá eu tive, fiquei muito mal. Teria sido tudo mais fácil se fosse aqui, né? Meu marido ia estar perto. Eu precisei sair do meu país para me sentir acolhida e buscar um direito meu de cuidar de mim. Eu só queria ter o direito de cuidar da minha saúde, de preservar o pouco de sanidade que tinha na época e nem isso permitiram. O Estado brasileiro falhou comigo, não permitiu que eu cuidasse de mim.”

Na Colômbia, ela apresentou o mesmo laudo médico e conseguiu realizar o aborto de forma gratuita, legal e segura.

“O Estado brasileiro entende que é possível interromper uma gestação para que uma mulher não morra, mas não está dizendo que é possível interromper a gravidez se ela provoca um dano à saúde física ou mental. O governo brasileiro acha razoável e tolerável que uma mulher perca a função dos rins, mas não faça um aborto; que uma mulher perca a visão, mas que não faça o aborto; que uma mulher tenha uma grave complicação neurológica, mas que não faça o aborto. Ou seja, ele não é permitido para preservar a saúde da mulher.”

É o que explica o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett Ferreira, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Durante 25 anos, ele realizou 2.200 mil abortos legais, quando coordenou o Pérola Byington. A unidade que fica no centro da capital paulista e presta atendimento integral a mulheres, meninas e meninos vítimas de violência sexual.

Pela convicção da mulher
Para o médico, o aborto deveria ser permitido em qualquer circunstância que a mulher considere que não pode prosseguir com a gestação. Ele explica que a lei brasileira é restritiva e só prevê evitar a morte, mas não a preservação da saúde da mulher.

“É interessante pensar que consideramos que o aborto é possível desde que esse motivo esteja de acordo com o que concordamos. O Estado brasileiro concorda que uma mulher realize uma interrupção de gestação decorrente de um estupro. Aceita-se o aborto desde que o motivo seja aceito. O aborto não deve ser feito pela minha convicção, mas pela convicção de cada mulher, ela que deve decidir se isso é possível ou não. Os motivos não deveriam ser do Estado, mas da mulher”.

O hospital estadual atende a casos de violência sexual contra crianças, metade das quais são meninos. O atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar, que inclui acolhimento psicológico, social e médico.

Andre Malavasi, diretor do setor de ginecologia do hospital, explica que o atendimento a vítimas de abuso sexual não é exclusivo do Pérola, mas deve acontecer em todo serviço público de saúde que tenha médico, para que sejam adotadas medidas profiláticas de prevenção de urgência à infecção pelo HIV, hepatites virais e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST).

Peregrinando pela garantia do direito
Porém, para conseguir acessar o serviço pelo SUS, muitas mulheres peregrinam de outros estados para a capital paulista. Cerca de 60% das pacientes são de fora do estado de São Paulo.

“Nós temos mulheres da Grande São Paulo, interior e de outros estados. Isso porque, principalmente em algumas regiões, elas não conseguem o acolhimento adequado. Os perfis variam desde crianças até pacientes de 90 anos de idade”.

Segundo o diretor, a unidade realiza em média quatro abortos por semana. Um dos diferenciais do Pérola é que alguns serviços essenciais para as vítimas de estupro estão concentrados no mesmo local de atendimento.

“Conseguimos colocar um serviço do Instituto Médico Legal dentro do hospital. Isso faz com que a vítima faça dois atendimentos juntos, tanto exame de perícia como o médico. Isso faz com que o processo seja menos traumático para a paciente que sofreu abuso sexual. Esse é um modelo que gostaríamos que fosse aplicado em outros locais.”

Malavasi explica que o principalmente obstáculo é a questão enfrentada por essas mulheres para continuar o cuidado com a saúde após o procedimento.

“O problema é a dificuldade que uma mulher tem para dar prosseguimento ao tratamento após o aborto. Por exemplo, uma mulher vítima de estupro que é de Peruíbe [litoral sul de SP] e não consegue ser atendida lá porque o serviço não funciona 24 horas ou [não dispõe de] pílula do dia seguinte, ela engravida. Ela vem, [apenas] com dinheiro da passagem, pro Pérola para fazer a interrupção. Depois ela precisa dar prosseguimento ao atendimento psicológico e falta porque não tem recursos para vir e ter atendimento conosco”.

Priscila Monteiro é psicóloga do Espaço Casulo, na Favela da Maré, Rio de Janeiro. A iniciativa promove acolhimento de saúde para vítimas de violência. Por conta da violência de Estado no território, ela relata que as mulheres têm dificuldades de buscar apoio, principalmente após o aborto, pela culpa que carregam.

“Tem uma concepção social de que a mulher nasceu para gerar independente da situação que ela esteja submetida. Como ela vai fazer pra gerar? É colocado para nós mulheres que não é possível o aborto, por mais que seja fruto de uma violência e mesmo que ela não tenha condições de seguir em frente com a gestação, por conta da educação sexista e machista, é alimentado em nós a falsa crença social de que elas estão fazendo algo errado.

As vítimas de estupro não precisam de boletim de ocorrência para ter o direito ao aborto, ou seja, basta a palavra da mulher para que seja feita avaliação e realização do procedimento.

Atendimento não, punição sim
Uma pesquisa da ONG Artigo 19 revelou que dos 176 hospitais listados para realização do procedimento, apenas 76 locais confirmam a oferta do serviço. Os serviços de saúde pública têm o dever de realizar aborto nos casos previstos em lei, mas, na prática, a legislação não é cumprida.

Ao mesmo tempo, uma mulher que tenta abortar no Brasil pode ser considerada criminosa até três anos após a prática. O profissional de saúde envolvido pode pegar até quatro anos de prisão. A restrição do aborto incentiva a busca por práticas inseguras e deixa mais vulneráveis as mulheres pobres e negras.

“O aborto na real é algo que já acontece, mas na forma segura é delimitado para alguns. Quem tem poder aquisitivo, sai de lá ilesa, mas a mulher pobre e preta vai procurar um lugar que ela pode pagar e se submetem a lugares que põe em risco a sua própria vida.”

Há um ano, o aborto estava sendo discutido no Supremo Tribunal Federal. A ação que pede a descriminalização até 12ª semana de gestação está paralisada desde agosto do ano passado. Até então, não há perspectivas de que a pauta volte à ordem do dia e a proposta seja julgada.

O Brasil de Fato procurou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que em resposta disse não dispor de agenda para falar sobre o assunto.

 

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