Notícias

SUS, um direito por defender

Professora da FGV diz que alianças conservadoras em busca de manutenção dos privilégios seguem sendo entrave à universalização da saúde no Brasil e que política econômica atrapalha política social

Histórica militante dos direitos sociais no Brasil e doutora em ciências políticas, Sonia Fleury participou ativamente da luta pela democratização, como liderança em algumas das mais atuantes instituições do setor saúde como o Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), onde foi formulado e impulsionado o projeto da Reforma Sanitária Brasileira que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A experiência associada de militância e especialização na área de seguridade qualificou Sonia para exercer o papel de consultora da Assembleia Nacional Constituinte, para a elaboração do capítulo sobre a Seguridade Social da Constituição de 1988. Hoje, coordena o Programa de Estudos sobre a Esfera Pública na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas, onde é professora titular.

Em entrevista exclusiva ao blog Padrão Brasil, Sonia trata do significado das manifestações de 2013 para a consagração dos direitos sociais, da necessidade de integrar as lutas de diversos campos da área social e explica por que todos os governos desde a redemocratização resistiram em colocar o SUS como política pública prioritária. Ela afirma que os direitos sociais de cidadania só serão protagonistas na agenda nacional quando a população se mobilizar e, para isso, cobra mudanças na legislação para facilitar e efetivar a participação política dos cidadãos brasileiros na tomada de decisões e, assim, permitir a reivindicação dos direitos assegurados pela Constituição Federal.

Qual o significado das manifestações de 2013 para a saúde pública e os direitos sociais de modo geral?

Foi importante porque mostrou que a população tinha consciência de que tem direitos, em primeiro lugar, e que esses direitos estavam sendo renegados. Que eles não estão sendo respeitados pelos poderes que deviam estar assegurando. As reivindicações foram em torno de transporte, de saúde, educação. Um conjunto de direitos sociais que tem a ver com a qualidade de vida da população, que está sendo cotidianamente desrespeitado em situações de grande violência institucional. Um hospital caindo aos pedaços ou o transporte lotado e sem condições de atender às pessoas não é casualidade. São responsabilidades públicas, por isso, podemos chamar de violência institucional quando isso acontece.

Desde 1988 nenhum governo alçou o SUS à posição de política pública prioritária. E ao longo desses 25 anos o que se viu foi um afastamento de setores sociais importantes que defendiam a saúde universal. Isso fortaleceu a ideia de SUS pobre para pobre. Isso fragiliza a ideia de sociedade solidária que estava presente na Constituição de 88?

É preciso entender que o Brasil é um país de enorme diferenciação em que as políticas sociais foram originariamente estratificadas. De um lado, quem estava incluído dentro do seu quadrado, e a maioria da população excluída. Essa é a memória que nós construímos. O SUS era um rompimento com isso. Para universalizar e dar direito a todos independente da capacidade contributiva de cada um. Mas não é fácil mudar a cultura elitista que existe na população, inclusive dentro da classe trabalhadora.

Como essa cultura se manifesta na prática?

Todos querem se diferenciar, ninguém quer ser igual no Brasil. Ser igual é estar na pobreza, em vez de prevalecer a noção democrática de ser igual, que é ser cidadão. Nós temos um problema de cultura política, de alianças conservadoras que impedem que mais recursos sejam destinados a essas políticas igualitárias. Na medida em que você criou um sistema para todos, mas ao mesmo tempo não deu os recursos suficientes para isso, cada um desses grupos que tem capacidade de pressão tentou ter seu benefício, seu privilégio, diferentemente da política para todos.

Desde sempre as centrais sindicais mantêm uma posição dúbia. Elas apoiam o SUS, como fizeram recentemente no Movimento Saúde+10, mas ao mesmo tempo defendem a manutenção de planos de saúde para seus trabalhadores. Isso igual aos funcionários públicos e igual a todo mundo. É uma dubiedade da sociedade brasileira.

Qual a responsabilidade dos governos nesse processo de afastamento da população do SUS?

Os governos não se comprometeram. Não fizeram o esforço necessário para saúde e educação, que são os dois sistemas universais, e houve uma queda desses dois sistemas em termos de qualidade e as pessoas tentaram fugir para um serviço privado, mas que é patrocinado e subsidiado pelo dinheiro público.

E o que está acontecendo é que os planos de saúde estão cada vez piores. O acesso das pessoas tem piorado enormemente. Consultas, exames, tudo cada vez mais restrito.

Sobre as escolas privadas, o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) mostrou que os 25% de maior nível socioeconômico no Brasil têm piores resultados que os 25% mais pobres do resto do mundo. Então nós estamos tendo uma queda de qualidade no setor privado. Isso porque quem dá o padrão é o setor público. Essa é a grande ilusão da classe média, ao imaginar que vai sair e ter seu plano privado e tudo estará bem. Isso não dá certo, porque se você não tiver para onde correr seu plano vai cair de nível. A sua escola vai cobrar caro e vai cair de nível. Nós temos que reconquistar a classe média não a obrigando a usar o SUS, mas mostrando que sem um sistema público bom o privado vai para o mesmo buraco.

Por que governo após governo a Constituição continua a ser descumprida no que diz respeito aos direitos sociais universais de cidadania?

Nós temos uma política econômica que tem comprometido as políticas sociais. As política universais, como o SUS e a escola pública, dependem de um Estado forte, com capacidade de regular o mercado e ao mesmo tempo tributar. Um sistema tributário altamente progressivo para que o governo possa distribuir fazendo políticas de qualidade. Nós não temos essas condições aqui. Houve um debilitamento do Estado, das carreiras públicas, dos sistemas públicos de prestação de serviços que veem deteriorando nas últimas décadas e não há investimento contra isso. Nós também não temos uma política de crescimento econômico que seja casada com essa política redistributiva social.

E sobram poucos recursos para o social, ainda mais porque o governo tem usado políticas de desonerações que afetam a seguridade social, que afetam os governos municipais, que são responsáveis por saúde e educação. Então, há uma dissociação dos planos do governo, em que a área econômica está extremamente comprometida com a estabilização da moeda, e tudo isso tem deixado poucos recursos para a área social.

Mas nos momentos eleitorais a ênfase no social é muito forte…

A opção dos governos tem sido por políticas sociais de grande impacto, por exemplo a transferência de renda, mas são políticas que comprometem muito pouco dos recursos do PIB, enquanto um grande volume de recursos continua sendo usado para pagamento de serviços da dívida pública e compromissos relacionados ao capital financeiro, porque a taxa de juros, embora tenha abaixado, ainda é alto. O que vivemos é um aprisionamento dos governos em relação ao mercado financeiro. Isso tem acontecido no mundo inteiro, mas aqui com muito mais virulência e não existe capacidade estatal para enfrentar isso. Mas é preciso que a população cobre, porque a correlação de forças tem sido muito desfavorável para o lado dos direitos sociais.

Essa é uma prática neoliberal, que se mantém desde a década de 1990?

Essa era uma visão de que era preciso reduzir o Estado e valorizar o mercado. Essa visão entrou por dentro do Estado de uma forma muito forte. Nós temos ainda quem ache que a salvação do SUS são as PPPs, OSs, OSCIPs, enquanto na verdade nós sabemos que não é isso que vai melhorar. O que precisa é de uma política pública realmente pública, de grande qualidade e que tivesse a capacidade de mudar tanto a educação quanto a saúde no país. Apesar de o neoliberalismo ter se mostrado fracassado nas suas políticas econômicas e sociais, a ideologia se entranhou muito fortemente e impediu que fosse criada uma alternativa nacional, desenvolvimentista que possa dar conta de criar alternativas reais para um outro projeto político e ideológico.

O auge do neoliberalismo na década de 1990 incutiu fortemente a ideia do Estado menor e apresentou a saída para os problemas sociais pela via de mercado. Isso ainda hoje persiste. É possível construir um país, com uma Constituição como a que temos, com as mentes de boa parte (47%) da população defendendo menos Estado?

Prefiro olhar pelo outro lado. Não foi a maioria. O que mostra que as pessoas querem saúde e educação, com ação do Estado. É importante fortalecer a ideia para a população de que ela tem direitos e o Estado vai ter que se dar conta de que para garantir o direito da população não se pode permitir que o capital se desenvolva e absorva recursos públicos nessa disputa que hoje ocorre pelos fundos públicos. É possível e viável, mas depende realmente da exigência do direito. E o Estado, ao ter que cumprir o direito, vai se dar conta que o cumprimento do direito mantendo taxas de lucratividade absurdas em medicamentos, equipamentos e nos próprios serviços é inviável e, por isso, vai ter que viabilizar isso através de políticas públicas e serviços públicos mais racionalizados e mais bem organizado.

Nessa conjuntura política e econômica desfavorável aos direitos sociais, é possível ainda lutar pela plena implementação do que a Constituição garante aos cidadãos?

É claro que é possível! Senão você desiste da democracia. É claro que as condições não são as mesmas da criação da social democracia, mas são as que nós temos que enfrentar. E estando num regime democrático nós vamos enfrentar isso tanto no voto quanto fazendo pressão através dos diferentes movimentos sociais que precisam colocar pressão pela exigência de seus direitos. É só isso que pode mudar. A pressão do mercado financeiro é cotidiana. A pressão do empresariado é constante para atender aos seus interesses e a população tem interesses muito dispersos. A população não está organizada como lobbies, como grandes grupos corporativos para fazer esse tipo de pressão.

Medidas como uma reforma política, que diminua o papel do financiamento privado das campanhas e ao mesmo tempo fortalecer os instrumentos de participação da sociedade é a saída para fazer a coisa pender para o lado da população. E isso é um processo histórico de correlação de forças que vai continuar existindo de luta por direitos. O mais importante é que nós temos uma Constituição onde estão expressos os direitos, não houve retorno nem desmantelamento do sistema de proteção social, nem legal nem institucional. Há uma consciência cada vez maior da população de que ela tem direitos e que, portanto, ela pode reivindicá-los e exigi-los. É preciso transformar isso em voto, em poder organizado para poder mudar um pouco a realidade.

Há outras reformas estruturais, além da política, necessárias no país para consolidar os direitos sociais de cidadania. É possível fazermos essas mudanças diante da conjuntura política e econômica atual?

Nós sofremos muito com essa forma de presidencialismo, chamado de presidencialismo de coalizão, em que o presidente fica dependente de construir maiorias com grupo extremamente conservadores, que estão no Congresso. Mas apostar todas as fichas nas reformas institucionais eu acho equivocado. Pensar que fazendo a reforma política você vai resolver… eu acho que não. Porque aí colocaríamos um peso desmesurado na parte institucional em vez de ser na participação política. A sociedade conseguiu fazer a maior mudança institucional deste país, que foi a Lei da Ficha Limpa. Existem outras possibilidades, inclusive de reforma política, vindas pela própria sociedade na capacidade de usar esse poder legislativo que a Constituição colocou, mas é preciso reformular a regulamentação para facilitar a criação de leis de iniciativa popular e para que esse projetos tenham prioridade na tramitação interna do Congresso. Mas as duas coisas precisam ser somadas. A sociedade não pode desistir.

Então a defesa dos direitos e de maior participação política da população passa pela “radicalização da democracia”? O que é esse conceito e como se efetiva?

A ideia de democracia está sendo tomada como se democracia fosse a criação de grandes consensos, grandes negociações para se chegar a um ponto médio, que não afete interesses nem de um lado nem de outro. Como se o conflito fosse algo ruim para a política. Essa é uma visão equivocada de democracia. A política nasce exatamente da ideia de construção de sujeitos que têm um ponto de vista diferente do outro.

É preciso radicalizar nesse sentido de construir identidade políticas. O fato de existir um movimento operário nos anos 1970 que radicalizou as suas demandas salariais e por democracia, como foi o movimento do ABC, permitiu a construção da democracia junto com outros movimentos da sociedade, como o movimento sanitarista, que se construíram como sujeitos se diferenciando da política do outro. Dizendo: ‘Não é essa política que eu quero para a saúde’. Então, a política é conflito. É claro que na democracia o conflitos não vão para a barbárie, são mediados, discutidos para se chegar a entendimentos ou não. Mas tomar de princípio a democracia como consenso é caminhar para um cento direita.

Então o que ocorre no Brasil hoje, no Congresso, tem fortalecido o conservadorismo. Isso é um risco para os direitos sociais?

É como se isso fosse o ideal de democracia: temos que chegar a grandes acordos, que vai do capital financeiro aos empresários, os trabalhadores e todo mundo. Por que nós temos que chegar a esses acordos? Aí perdem-se as identidades. E o que perde é a política, que é o diálogo mantido a partir de sujeitos que têm posições divergentes. Por isso, o conflito não deve ser tratado como algo ruim para a democracia, mas sim deve ser entendido como o cerne da democracia. Essa ideia de buscar sempre grandes consensos, coalizões amplas e ideias majoritárias é muito boa para os grupos conservadores, mas não é bom para a sociedade nem para as mudanças que queremos fazer.

A ideia da radicalização da democracia é a de uma construção de identidades políticas e de elaboração clara dos conflitos e de como sair deles com projetos estratégicos e táticas diferenciadas. E não de afastar o conflito, como se ele fosse antidemocrático. Antidemocrático é a ideia de um consenso a priori, porque ele desfaz as identidades políticas e favorece o conservadorismo.

Uma alternativa é pensar e lutar por direitos sociais de modo integrada, não setorial…

A construção da própria democracia partiu de movimentos sociais e corporativos, como esses que falei antes, mas que tiveram uma visão que transcendiam seus interesses específicos, porque senão não se constrói coisa alguma. As políticas públicas são setorializadas e a participação política da sociedade acontece em conselhos também setoriais. Por isso, houve esse retrocesso de se pensar área por área e não formular um projeto maior. Cada vez mais percebe-se que estar isolado diminui a força da sociedade, pensar setorialmente e não pensar através de direitos coletivos que têm a ver com toda a vida da população. Mais recentemente, esse movimento cresceu, tentando superar a setorialidade, porque hoje o pensar setorial é um limite, não é mais um avanço. É preciso pensar e evoluir para integrar a participação da sociedade nos conselhos e buscar formas de institucionalizar as participações de forma mais integrada.

Onde estão hoje os principais inimigos da concretização dos direitos universais no Brasil?

A cultura elitista, da diferenciação em vez da igualdade é extremamente perversa. Ela não ajuda a construir a ideia social democrata pró-cidadania. Precisamos trabalhar nós mesmos e não jogar nos outros a culpa pelos problemas. Nós partilhamos uma cultura de extremo elitismo em que as pessoas querem se diferenciar. Precisamos construir um projeto igualitário e acabar com essa cultura.

E as instituições participativas (conferências e conselhos) têm perdido importância. Por isso, é preciso rever o modelo de participação porque efetivamente ouve-se a população, mas as decisões não estão sendo tomadas. É preciso aumentar o controle da sociedade sobre o processo decisório do governo para diminuir a influência dos atores empresariais, que têm enorme influência.

E como grande inimigo nós temos a financeirização da política, de tal forma que todos os estados nacionais estão subordinados ao capital financeiro e não têm nenhum compromisso com direitos sociais.

Deixe um comentário