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Usuários de serviço de saúde mental fazem fantasias em ateliê inclusivo

Empreendimento economicamente solidário, projeto “Loucos pela X” mantém parceria com X-9 Paulistana há 14 anos e luta contra preconceito, internações e segregação no tratamento psiquiátrico

Reconhecido como o empreendimento mais economicamente inclusivo do carnaval brasileiro no 1º prêmio Edison Carneiro, promovido pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em novembro de 2014, o projeto reúne o grupo de aderecistas carnavalescos há 14 anos.

O encontro do grupo que hoje compõe a Loucos pela X começou dentro de um serviço municipal de saúde mental localizado também no Jaçanã. Com o objetivo de promover a inclusão social de usuários do serviço por meio da geração de trabalho e renda, os profissionais de saúde organizaram, em 2001, um projeto baseado na reciclagem de papel.

“Era bem modesto, bem pequeno. A gente reciclava papel e produzia objetos para vender em feiras de artesanato, tentando se aproximar do campo da economia solidária. Nosso interesse era sair do ciclo doença mental-incapacidade-improdutividade. Queríamos começar a criar vínculos com a cidade”, explica a psicóloga Simone Ramalho, uma das coordenadoras e fundadoras da Loucos pela X.

O esforço do grupo ganhou repercussão no Jaçanã e chegou aos ouvidos de Lucas Pinto, carnavalesco da X-9 naquela época. Devido a problemas com direitos autorais, o carnavalesco não pôde contar a história do artista sergipano Arthur Bispo do Rosário, expoente das artes plásticas que passou mais de 50 anos internado em um hospital psiquiátrico. Ele então convidou o grupo de reciclagem para participar do desfile da escola no ano seguinte. Sua ideia era destacar a potência criativa da loucura.

Imortalizado pelo sambista Adoniran Barbosa, o “Trem das Onze”, de fato, nunca existiu. O compositor, que também não era filho único, jamais morou no Jaçanã e disse ter usado o nome da região em sua música apenas porque rimava com “só amanhã de manhã”. No entanto, o bairro da zona norte paulistana parece ter uma vocação para ser cenário de grandes histórias do samba.

Localizado em uma pequena rua daquela região está instalado o ateliê dos “Loucos pela X”, que abriga um empreendimento coletivo de trabalhadores formado por profissionais e usuários de serviços de saúde mental. Além de manter uma ala nos desfiles da X-9 Paulistana, o grupo confecciona fantasias da escola de samba e de outras agremiações do grupo especial e de outras divisões do carnaval de São Paulo.

O grupo aceitou o convite e criou a própria fantasia, inspirada na obra de Bispo do Rosário, feita com flores de papel reciclado por seus integrantes.

A psicóloga relata que a experiência de preparar aquele carnaval foi intensa. Usuários, seus familiares e até mesmo vizinhos do serviço de saúde participaram do mutirão para confeccionar as fantasias daquele ano. O grupo começou a frequentar a quadra da X-9 e a participar dos ensaios para aprender o que era harmonia e evolução. “A gente foi percebendo que este é um grupo carnavalesco. Cada um foi se descobrindo em outro corpo, outro papel.”

A primeira participação no Sambódromo, em 2002, foi um sucesso. Homenageado pela X-9 como uma das alas de destaque do carnaval daquele ano, o grupo foi convidado para integrar uma ala permanente, que hoje já é uma das mais antigas da agremiação.

“O mais interessante no início deste projeto é que o chamado veio da comunidade. Para a escola de samba, um lugar plural, que também tem essa história de resistência, não havia nenhum problema que pessoas diferentes, do ponto de vista subjetivo, tomassem parte de seu carnaval como qualquer outro folião”, destaca Simone.

Desde então, o projeto cresceu. A ala é hoje composta por 40% de usuários de serviços de saúde mental no Jaçanã e em outras regiões da cidade. “Isso tem um impacto no que a gente chama de cultura manicomial. Manter esta ala circula a mensagem de que o lugar de quem é diferente é de cidadania. Cuidar em liberdade, o grande lema da luta antimanicomial, é tentar reverter o histórico de segregação, se ocupando daquilo que é dificuldade, mas se ocupando também da vida, para poder desfazer essa história de preconceito construída durante muito tempo”, afirma Simone.

Rogério Giannini, presidente do SinPsi, afirma que carnaval de fato rima com saúde mental. “Fui chefe de ala, desfilei e frequentei quadra por 5 anos e pude testemunhar a dimenssão inclusiva do mundo do samba. Na quadra é como se todos viessem para somar e há um clima de aceitação muito forte de todas as diferenças. Caranaval é também promoção de saúde” afirma Giannini.

Economia solidária

Em outra frente, a Loucos pela X também cresceu. O ateliê no Jaçanã hoje conta com 20 integrantes fixos, entre usuários, familiares e profissionais de saúde, todos trabalhando como aderecistas.

“Nós somos um coletivo de trabalho. Nossas decisões são tomadas coletivamente. Fazemos reuniões com frequência para discutir quais decisões a gente vai tomar no processo de trabalho e também com a renda, como faremos nossos investimentos, o que vamos comprar. Este é um princípio importante da economia solidária: o dinheiro é de todos, o trabalho é de todos”, afirma Simone.

Cada aderecista trabalha com o que tem mais habilidade e todos recebem a mesma quantia de dinheiro. As remunerações não são baseadas na produtividade individual de cada trabalhador. Todas as tarefas, inclusive a organização do barracão, são consideradas importantes para a manutenção da cadeia de produção dentro do ateliê.

Simone destaca que a inserção social pelo trabalho é fundamental por promover a sustentabilidade econômica de pessoas com a marca da psiquiatria em suas vidas.

“Quando alguém está desempregado, sua circulação no mundo fica diminuída. Existe uma questão concreta neste projeto que é possibilitar autonomia, além de mudar identidades. Historicamente, estas pessoas foram identificadas como incapazes, mas não existe ninguém incapaz. Estes trabalhadores são aderecistas disputados, que produzem fantasias e alegorias para escolas do grupo especial de São Paulo há 14 anos”, diz a coordenadora do projeto.

Nos últimos quatro anos o coletivo se fortaleceu, inclusive economicamente. O ateliê conseguiu aumentar a oferta de serviços para a X-9 e outras escolas e hoje consegue sustentar, de maneira autônoma, o pagamento do aluguel do espaço e todo o empreendimento.

“É um negócio como qualquer outro. A gente precisa correr atrás de grana, de como vamos nos sustentar. A gente pode ter dificuldades, mas todo ano tem carnaval. E em todo carnaval a escola de samba tem que começar do zero”, ressalta Simone.

Em 2014, além da oferta de serviços para a X-9, a Loucos pela X fez todas as fantasias da escola Imperatriz da Pauliceia, do grupo 3 do carnaval de São Paulo. Além dos aderecistas, o grupo conta com 3 coordenadores: a própria Simone e os psicólogos Kátia Maria Souza e Pedro Gava.

Além do carnaval

Percebendo a necessidade de atuar de forma mais consistente no coletivo para garantir o crescimento do empreendimento, Gava deixou seu cargo na coordenação de um serviço de saúde para se dedicar exclusivamente ao grupo, recebendo a mesma remuneração dos demais integrantes.

Seu trabalho já rendeu bons frutos. A Loucos pela X venceu no início deste ano um edital do Programa de Ação Cultural (Proac) da Secretaria de Estado da Cultura. A verba subsidiará um projeto de parceria com serviços de saúde mental municipais.

Após o carnaval, o coletivo receberá usuários que serão alunos em uma oficina de confecção de fantasias de carnaval, com os aderecistas como professores. Para as aulas, materiais usados em fantasias da X-9 serão reciclados.

Além disso, a Loucos pela X também é um espaço de formação de profissionais de saúde. O ateliê é campo de estágio da PUC de São Paulo na disciplina de psicologia do trabalho e mantém parceria com a Escola de Enfermagem da USP.  No carnaval deste ano, cinco psicólogos estão trabalhando voluntariamente com o coletivo.

Assista aqui a reportagem.

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