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3ª Conferência de Saúde Mental ocorre em clima de emoção, esperança e desafios

Por Norian Segatto

Entre os dias 13 e 15fev aconteceu em Águas de Lindoia, a 3ª Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado, evento que não ocorria há mais de uma década. Tanto em decorrência do tempo em que ficou ausente da agenda das políticas de saúde, como o momento político que o país vive, com esperanças de reversão do desmonte na Saúde promovido pelo governo Bolsonaro, a 3ª Conferência foi cercada de muita expectativa e emoção.

A diretora do SinPsi, Francenilda Lima, que participou da equipe de organização da Conferência, afirma que participar da comissão que organizou o evento foi uma das maiores experiência de sua vida:

Francenilda Lima, a “Fran”, dirigente do SinPsi-SP e membra da comissão organizadora

Valter Martins, também diretor do Sindicato, destacou: “Estou acompanhando os trabalhos de discussões sobre a RAPS e Atenção Básica e percebo que os delegados e delegadas que estão aqui contribuem de maneira relevante no debate das diretrizes aprovadas nas etapas macrorregionais, preservando, democraticamente as duas diretrizes que contemplem a síntese dos trabalhos e serão conduzidas à plenária final”.

Dia da abertura foi marcada por emoção e expectativa

Na abertura Fernanda Magano destacou os cuidados em liberdade como um dos princípios da saúde mental (confira no vídeo abaixo) e, ao final do evento destacou a importância da realização da Conferência, mas advertiu que “são muitos problemas para reconstruir a rede de atenção psicossocial e o cuidado em liberdade para o Estado. As propostas que saíram de São Paulo serão apreciadas na conferência nacional”.   

Comunidades terapêuticas não podem ter dinheiro público, afirmou Fernanda Magano na abertura da Conferência

Manifesto  

Durante os últimos anos, a implementação das políticas neoliberais de retirada de direitos, de destruição e morte, principalmente da população pobre, preta, periférica, indígena, LGBTQIAPNB+ e de mulheres, com uma redução drástica do financiamento das políticas sociais, passamos por um processo de aprofundamento do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) com ataques diretos à Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas e o desfinanciamento da Rede de Atenção Psicossocial, ao mesmo tempo em que tem favorecido o financiamento público das Comunidades Terapêuticas, instituições privadas, com ações que colaboram para a legitimação conservadora da cultura manicomial, interesses do complexo industrial da saúde e da “guerra às drogas”, em que foram identificadas, a partir da inspeção de órgãos vinculados à defesa de direitos humanos, diversas irregularidades e até crimes, como: a privação da liberdade; trabalhos análogos à escravidão; falta de equipes técnicas; uso da abstinência e não da redução de danos como estratégia de cuidado; práticas religiosas como forma de “tratamento”; desrespeito e violência às diversas identidades de gênero e orientações sexuais; relatos de violência física, psicológica e sexual, fortemente ancoradas por interesses religiosos, moralistas e neoliberais quedes figuram a Política de Saúde Mental prevista na Lei 10.216/2001, na Lei 13.146/2015, LBI – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e na resolução da ONU 186/2008 com a Inclusão dos Direitos dos Transtornos Psicossociais.

A Emenda Constitucional (EC) nº 95, congelou os recursos financeiros para o Sistema Único de Saúde (SUS) durante 20 anos que afetou a Política de Saúde Mental de modo implacável, ferindo seus princípios de cuidado em liberdade, com justiça social, no território e na comunidade. Ainda nos deparamos com o avanço da organização da extrema direita nos últimos governos, os ataques aos direitos humanos, o fortalecimento da lógica do projeto manicomial e higienista que vem avançando a largos passos. Diversos movimentos sociais, frentes, fóruns, coletivos, conselhos, associações, entidades e sindicatos comprometidos com a Luta Antimanicomial e Antiproibicionista e com a Defesa da Saúde Pública, Universal, Estatal, Gratuita, Popular, Laica e de Qualidade, construíram ações e diretrizes importantes de resistência, em encontros, plenárias, conferências populares, conferências livres, atos públicos, produção de relatórios e documentos propositivos para orientar as políticas públicas com relação à promoção de saúde e tratamento de pessoas em sofrimento psicossocial. Neste cenário tão adverso de ataques aos direitos da classe trabalhadora, intensificado pelo contexto pandêmico da COVID19, o posicionamento crítico sobre qual política de Saúde Mental queremos construir se faz urgente, sendo importante retomar a radicalidade da defesa da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, conforme inscrita na carta de Bauru de 1987 e reafirmada em 2017 no evento de “30 anos do Encontro de Bauru”.

Assim, temos diante de nós o desafio de construir uma Conferência Estadual e Nacional nessa conjuntura de intensos ataques à classe trabalhadora, dos setores mais oprimidos da sociedade, como a população periférica, negra, indígena, LGBTQIAPNB+, com destaque às mulheres trans e travestis que tem uma expectativa de vida de apenas 35 anos, pessoas em situação de rua, pessoas com transtornos mentais, usuários e usuárias de substâncias, sujeitos manicomializados, que sofrem com o aparato ideológico de repressão e encarceramento das mentes e corpos que fogem aos padrões de normalidade. Repudiamos veementemente a criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas criado no Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome, que chancela a consolidação de um modelo de política social manicomial, proibicionista, racista, LGBTfóbico, patriarcal e punitivista, cujos pilares são a privação da liberdade e inúmeras violações de direitos humanos de pessoas usuárias da Saúde Mental, sobretudo pessoas usuárias de álcool e outras drogas.  Apesar das comunidades terapêuticas estarem previstas na Lei nº 13.840/2019, na Portaria de Consolidação MG/MS nº003/2017, Resolução do CONAD Nº 001/2015, entre outras portarias, não há legislação que responsabilize seus proprietários e/ou gestores pelos crimes cometidos. Diante disso, exigimos que haja a responsabilização de proprietários/gestores das comunidades terapêuticas judicialmente, para que respondam pelos crimes cometidos e torturas sofridas pelos sujeitos que estão nesses espaços.

Em 2019, com a publicação da Nota Técnica nº 11 (Brasil, 2019), a redução de danos deixou de ser uma estratégia de cuidado, o que implicou em mais um retrocesso na Política Nacional de Saúde Mental juntamente com as novas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, fundamentadas na prática da abstinência para o tratamento do uso problemático de substâncias psicoativas e no aumento do investimento em comunidades terapêuticas. Exigimos, portanto, o retorno da Política Nacional sobre Redução de Danos como estratégia de cuidado humanizado, laico e em liberdade. Segundo informações da ABRASME, no ano de 2021 o financiamento das comunidades terapêuticas foi maior que todo o financiamento das redes de CAPS AD no Brasil, equivalente a 50% do total destinado a toda a rede de atenção psicossocial do país e para esse ano, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas será responsável pelo financiamento amplo dessas instituições. No início deste ano, foi anunciada a criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas criado no Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome, que chancela a consolidação de um modelo de política social manicomial e proibicionista. Nos posicionamos radicalmente contrários à criação de tal departamento.

No Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, temos 26 hospitais psiquiátricos, sendo 16 de gestão estadual e 10 municipais, além de 10 comunidades terapêuticas financiadas pela saúde e aproximadamente 42 pela secretaria de desenvolvimento social, totalizando quase 1400 leitos apenas pela assistência social. Não bastasse esse investimento, que poderia ser utilizado para a implementação da rede de atenção psicossocial, ainda temos 580 pessoas moradoras em hospitais psiquiátricos, o que nos mostra que temos muita luta a fim de termos uma sociedade sem manicômios. Na cidade de São Paulo, a região denominada “Cracolândia”, onde encontramos uma imensa população em situação de vulnerabilidade, nos últimos anos, pudemos observar intensas ações dos governos municipal e estadual como violência policial, internações compulsórias, cerceamento de direitos básicos, o que revela graves retrocessos e descumprimento da Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas.

No início do ano de 2023, durante a posse, o governador do Estado de São Paulo, Tarcísio Freitas, afirmou que implementará a “Justiça Terapêutica”, defendida pelo atual prefeito da cidade de São Paulo Ricardo Nunes, que consiste, muitas vezes, em abordagens violentas, pela polícia militar, contra pessoas usuárias de álcool e outras drogas. Supostamente essas pessoas podem escolher entre cumprir medidas terapêuticas ou responder criminalmente, sendo inclusive, conduzidas à prisão. Estas medidas intensificam o projeto político da “guerra às drogas”, que criminaliza as pessoas em uso excessivo / uso prejudicial de substâncias psicoativas. Nos últimos anos, algumas gestões municipais no Estado de São Paulo têm levado ao legislativo, projetos de lei com caráter higienista, manicomialista, racista, fobia aos pobres/periféricos e punitivista, que não ofertam cuidado integral, em liberdade, laico, equânime, recomendando internações involuntárias às pessoas em situação de rua e/ou em uso excessivo/prejudicial de substâncias psicoativas.

Diante de tantas ações contrárias à Luta Antimanicomial, manifestamos também nosso repúdio ao descaso de algumas gestões municipais que não garantiram a participação de usuárias/es/os e familiares nas etapas preparatórias para a III Conferência Estadual de Saúde Mental de São Paulo. Durante as etapas preparatórias há inúmeras denúncias do impedimento da participação de pessoas usuárias, familiares e trabalhadoras nos processos de organização, debate e realização das pré-conferências. A III CESMSP teve atrasos nos processos licitatórios e pouca transparência de informações, em descumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI) nº 12.527/2011, sendo o último Estado da Federação a realizar a etapa Estadual para a V Conferência Nacional de Saúde Mental. Nós nos manifestamos contra qualquer articulação que altere a data de realização da V Conferência Nacional de Saúde Mental, aguardada há mais de 12 anos, e convocada desde 2020 pelo Conselho Nacional de Saúde.

Considerando os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, as inúmeras notas de repúdio lançadas por inúmeros Movimentos, Entidades, Coletivos, e a própria recomendação contrária do Conselho Nacional de Saúde à criação Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, entre outras providências, nos posicionamos veementemente contra qualquer medida, ação, política pública que viole os direitos humanos, a constituição federal, assim como repudiamos qualquer iniciativa governamental que privilegie ou fortaleça comunidades terapêuticas, entidades privadas e similares, que reforçam a lógica manicomial com privação de liberdade, interesses religiosos que desfiguram a Política Nacional de Saúde Mental assegurada na Lei nº 10.216/2001. É o momento de lutarmos por uma política de saúde mental plena, com garantia incondicional de cuidado em liberdade, público, estatal, popular, laico e de qualidade, através do fortalecimento do Sistema Único de Saúde.

NÃO A TODAS AS FORMAS DE MANICÔMIO! CONTRA AS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS! CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE E PELO FORTALECIMENTO DO SUS!

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