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A lama que transformou gente em número

Quando estive em Mariana pela primeira vez após a tragédia do rompimento da barragem da mineradora Samarco, controlada pela Vale e a australiana BHP Billiton, presenciei a desolação de gente que havia perdido tudo pelo mar de lama que arrastou e destruiu o que havia pela frente. Eu estava a cerca de 60 quilômetros de Bento Rodrigues e não fazia ideia, na ocasião, das perdas do povo de lá. Mortos e desaparecidos eram um fato cada vez mais crescente: os números eram sempre corrigidos. O que me incomodava, além das perdas noticiadas, era exatamente isso: eram números e não nomes.

Embora listagens haviam sido publicadas em alguns veículos, a impressão que eu tinha é que a importância dada às pessoas que morreram ou estavam – algumas ainda estão – desaparecidas era menor que os bens materiais. Algo que constatei quando resolvi, por conta própria, dar nomes e rostos a “alguns números”.

A cada pessoa que eu ligava ou abordava pessoalmente procurando informações sobre o paradeiro dos familiares dessas vítimas, a conversa sempre acabava com a frase: “mas aqui tem um monte de gente que perdeu tudo que tinha, mas morte não tem não”.

Quando um amigo, que viajou comigo para Mariana, ligou para o secretário-adjunto de Defesa Social da cidade, João Paulo Felipe, para perguntar sobre o paradeiro dos familiares e, também, sobre as vítimas, a resposta: números. Ele também disse que talvez a Defesa Civil poderia nos ajudar a conseguir o que procurávamos. Mas não foi preciso, fui direto aos hotéis, e ali, a solidariedade dos moradores de Bento Rodrigues citava nomes.

Com um bom tempo de conversa por ali, descobri o paradeiro dos parentes da Emanuelly Vitória, de apenas 5 anos, que amava ir à escola e assistir “O rei Leão”. Do Ailton Martins dos Santos, 55 anos, eternizado nas lembranças do filho como um grande pai. Da Maria Eliza Lucas, 60 anos, uma senhora guerreira que enfrentou diversas doenças na vida e que, segundo o filho, “estava vivendo os melhores dias da saúde dela”. E do Daniel Altamiro de Carvalho, 53 anos, um pai e esposo dedicado, que fazia de tudo pra cuidar da família.

Pelas ruas de Mariana, Bento Rodrigues

Na rua do Hotel Providência, onde grande parte dos moradores afetados pela tragédia está hospedada, se vê a comunidade de Bento Rodrigues. Em frente ao local as conversas são cheias de emoções e lembranças de tudo o que se foi.

Enquanto uma mãe explica para o filho que seus brinquedos foram levados pela lama, um homem lamenta: “De bem material eu não perdi nada, morava na parte alta de Bento. Mas perdi minha vida, meu passado”, explica, dando importância à sua história.

Do outro lado da rua, um senhor com seu rádio debaixo do braço escutava alto a canção “O homem de Nazaré”, cantada por Chitãozinho e Xororó. “Ele modificou o mundo inteiro… Ele revolucionou o mundo inteiro…”, dizia a música, dando esperança ao coração do velho cheio de fé. Próximo a ele, um grupo de jovens conversava sobre um torneio que futebol que ia acontecer em Mariana, e o time de Bento iria jogar: “É bom, pelo menos alivia as ideias”, disse um deles, com a expectativa de se livrar, pelo menos por algumas horas, das lembranças.

Tentando existir no meio do caos

Maria Eliza lutou contra a obesidade, diabetes e trombose, venceu. Emagreceu, deixou a insulina e aguardava pela cirurgia plástica para retirar as peles excedentes. Cuidou da saúde e aproveitava a velhice para fazer o que mais gostava: pescar.

Era o que ela estava fazendo quando foi arrastada pela lama. Do local em que ela estava não restou nada. Os tanques, os peixes, a casa, tudo se foi lama abaixo: “Tá tudo liso”, conta o filho, Wanderley Lucas, 38 anos.

O grande dilema na história de Maria e do seu filho, que ainda a aguarda, é que ela não estava entre os números. Ela morava em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte, portanto, não estava na lista de moradores de Bento Rodrigues, muito menos na lista de trabalhadores da Samarco. Fora do contexto do caos seu nome não podia ser inserido entre os desaparecidos. Ali, Maria não podia existir.

Foram mais de 30 horas, segundo Wanderley, para conseguir fazer a ocorrência. Mais de 30 horas para provar que sua mãe havia sido “tragada pela lama” que levava tudo o que estava pela frente (e continua levando) sem nenhuma piedade. Mais de 30 horas para afirmar o que ele jamais gostaria de dizer: “Minha mãe desapareceu!”.

“Eu tive uma dificuldade enorme para registrar o desaparecimento dela, mesmo tendo relatos de pessoas que viram ela sendo tragada e levada pela lama”, conta. Somente no dia 7 de novembro, pela manhã, dois dias após a tragédia, Maria passou a fazer parte da lista de desaparecidos, depois de o filho ir à Defesa Civil, Samarco, Polícia Militar e, cansado, à mídia.

O que resta para Wanderley, além de esperar, são as lembranças. Nelas, Maria se eterniza. “As oportunidades de fazer o que ela mais gostava juntos foi maravilhoso. São lembranças que jamais serão apagadas da memória.”

Cinco anos de história

Wanderley Isabel, 24 anos, fugia com os filhos Emanuele e Nicolas, 3 anos, mas foi atingido pela lama que quebrou suas duas pernas. No golpe, a filha escorregou de seus braços. A menina foi encontrada a cerca de 70 quilômetros do local onde foram atingidos. Ele não pôde participar do enterro, estava sendo operado num hospital em Santa Bárbara, a 76 quilômetros de Mariana. E ainda estava internado no dia em que conversei com sua esposa, Pâmella Raiane, 21 anos.

A mãe estava na escola na hora em que tudo aconteceu, deu tempo de correr, e do alto de Bento Rodrigues, ela assistia a tragédia, em desespero. “Eu queria ir lá pra ver como eles tavam, mas os professores não deixavam, diziam que eu ia morrer. Me restou esperar”, conta.

Pâmella tinha 15 anos quando engravidou e precisou parar de estudar. Antes da tragédia, mãe e filha caminhavam rumo à realização de um sonho: ambas se formariam este ano. Emanuele iria para a primeira série e a mãe completaria o nono ano. “Mas, aconteceu…”, lamenta.

A lama levou a jovem mãe a uma condição sem nome. Da noite para o dia ela se encontrou num vácuo onde não existe uma nomenclatura que classifique seu atual estado. Como diz Márcia Noleto, fundadora do Instituto Mães Sem Nome: “… quando se perde um filho, não há nome no dicionário para qualificar esse seu novo status quo”.

Em sua nova condição, a mãe sem nome segue tentando se reinventar. Tateando os dias com muito cuidado para entender o que a vida lhe reserva. E neste caminho, sua bagagem é feita de lembranças.

Daniel era funcionário de uma empresa terceirizada da Samarco, trabalhava na barragem no dia em que ela se rompeu. Foram dias a fio sem notícias, sem ao menos uma pista de onde ele poderia estar. Situação difícil para a família, uma vez que ele nunca deixou de avisar seu paradeiro mesmo que fosse atrasar pouco tempo do combinado.

Sua esposa, Tânia Penna Carvalho, 48 anos, se lembra do esposo cuidadoso, emocionada. Daniel esteve ao lado dela durante todo o seu recente tratamento contra o câncer, “ele sempre me ajudou e acompanhou”, conta. Além disso, era um bom pai, dedicado, “ele sempre pensou no futuro das meninas”.

O bom pai foi encontrado antes do fechamento da reportagem. Seu velório e enterro foram no último sábado (28), o que tirou Tânia da aflição diária de imaginar que “no momento em que ele mais precisava dela, ela não podia estar lá”. Seu desespero era tanto que, se pudesse, “cavava a lama com as próprias mãos”.

Ailton foi outro pai que se foi. Sua história na tragédia se difere da de Daniel apenas pelo fato de que ainda não foi encontrado. As lembranças no coração do filho, Emerson dos Santos, 30 anos, falam do grande pai que ele foi.

Mobilização

As famílias encontraram reforço junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), um grupo que, há 20 anos, atua principalmente junto às populações que são atingidas pela construção de barragens. Com o auxílio deles se organizam a fim de conseguirem garantias perante a lei.

O movimento vem intervindo na tragédia do rompimento das duas barragens da Samarco, em Mariana. Abaixo, a coordenadora estadual do movimento, Alexsandra Maranho, 28 anos, explica um pouco das ações do MAB na região.

Sobre o total de números que não me deixavam esquecer, escolho não citar. Prefiro os nomes: Antônio Prisco de Souza, Ailton Martins dos Santos, Claudemir Elias dos Santos, Claudio Fiuza Daniel Altamiro de Carvalho, Emanuele Vitória, Edinaldo Oliveira de Assis, Edmirson José Pessoa, Sileno Narkievicius de Lima, Marcos Xavier, Marcos Aurélio Pereira Moura, Mateus Márcio Fernandes, Maria Elisa Lucas, Maria das Graças Celestino da Silva, Pedro Paulino Lopes, Samuel Vieira Albino, Thiago Damasceno Santos, Vando Maurílio dos Santos, Waldemir Aparecido Leandro.

Entre mortos e desaparecidos

Os dias em Mariana me fizeram lembrar um trecho da obra “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco: “Era como se acordasse de um longo sono e, no entanto, estava ainda suspenso em um cinza leitoso. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia”. Em meio a tantas memórias, talvez essa seja a melhor maneira de definir meu tempo ali.

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