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Com atendimento humanizado, médica cubana prioriza educação em Embu das Artes

“Meu nome é Maricel Mejias, sou cubana e serei sua nova médica de família. Para mim será uma alegria e um grande prazer acompanhar a sua gestação até o parto.” Foi assim que a médica, recém-levada pelo programa Mais Médicos ao município de Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo, começou seu dia de trabalho na última sexta-feira (6).

Era o primeiro pré-natal de uma jovem de 17 anos que preferiu não se identificar. A consulta, acompanhada pela reportagem da RBA, durou quase uma hora e foi permeada por muitas perguntas, das mais comuns às mais inusitadas: “Sua mãe é fumante?”; “Costuma comer a comida muito quente?”; “Quantas refeições faz por dia?”.

Todas as respostas eram anotadas com muita atenção em um extenso prontuário. Para terminar, a médica concluiu, com as mãos sobre os ombros da gestante: “Eu estou aqui para garantir sua saúde e esclarecer todas as suas dúvidas. Você pode vir sempre que quiser. Estou aqui todos os dias, das 8h às 17h. Você é muito bem-vinda”.

Médica há 27 anos, Maricel faz parte de uma equipe de seis profissionais cubanas que chegaram a Embu das Artes em 1º de novembro. Ela foi direcionada para a Unidade Básica de Saúde do Jardim Valo Verde, um bairro pobre do município, caracterizado por problemas sociais e sanitários. “Esporte e cultura também são saúde e eu não vi nenhum parque nessa região. Eu peço para as pessoas fazerem exercícios, mas onde?”, questionou.

Ainda nos primeiros 15 dias de atendimento, ela já fala português de forma bastante clara. Por via das dúvidas, é acompanhada de uma enfermeira, atenta para qualquer adaptação de linguagem necessária.

“Quando o senhor não compreender algo, por favor, pergunte. Eu preciso que você volte para a casa com todas as dúvidas esclarecidas, para que possamos fazer um bom trabalho”, explicou Maricel ao segundo paciente, um senhor de 62 anos que sofre de hipertensão. Foram mais 40 minutos de consulta, que começou por um exame detalhado dos pés do paciente.

“O senhor pode tomar todos os remédios, mas se não fizer a dieta não vai adiantar. A hipertensão é uma das piores doenças crônicas. Ela prejudica seu coração, seu cérebro, suas artérias, seus rins”, dizia em um tom quase que de convencimento. “Podemos tentar incorporar uma atividade física leve no seu dia? Vamos combinar 15 minutos de caminhada dentro de casa, antes do banho? Isso vai estimular seu organismo.”

O último atendimento no consultório foi de um bebê de cinco meses. Mais uma hora: “Ela busca o som da sua voz?”; “Reconhece o pai?”; “Faz sons com a boca?”; “Rola no berço?”. Tudo devidamente anotado. “Veja, mãe, ela já consegue passar essa caneta de uma mão para a outra! Está muito adiantada”, comemorou a cubana.

Humanização

A UBS do Valo Verde atente 1.419 famílias, um total de 4.905 pessoas. Entre os pacientes, 477 são hipertensos, 147 diabéticos e 32 gestantes. A unidade funciona acoplada a um ambulatório de especialidades, com uma equipe de 26 médicos, contando com Maricel, única clínica geral. Isto impede a unidade de completar a outra equipe do Saúde da Família, que já conta com uma enfermeira e sete agentes de saúde.

Atrair médicos para as regiões mais pobres é uma das prioridades do Mais Médicos, instituído pela presidenta Dilma Rousseff dentro de um pacto para melhorar o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), que inclui investimentos em infraestrutura de unidades de saúde.

O Brasil tem hoje 1,8 médicos para cada mil habitantes e a meta é atingir a média registrada na Inglaterra, de 2,7 para cada mil, segundo o Ministério da Saúde. O país possui um sistema de saúde público e universal que inspirou a criação do SUS. Para alcançar o índice inglês seria preciso ter mais 168.424 médicos.

Só em São Paulo, cidade da região metropolitana com o maior potencial de atração de médicos, problemas na saúde pública e carências de profissionais fizeram com que o tempo médio de espera para realização de uma cirurgia fosse de 178 dias em 2012, segundo um levantamento da Rede Nossa São Paulo. Os exames demoraram cerca de 86 dias e as consultas 66.

As vagas do Mais Médicos que não foram preenchidas por profissionais brasileiros foram disponibilizadas para estrangeiros. A maioria veio de Cuba, por meio de um convênio com a Organização Pan Americana de Saúde (Opas), em que parte do salário de R$ 10 mil é repassado para o governo cubano, para financiar o sistema de saúde, completamente público, e a formação de novos médicos. O modelo gerou polêmica e alguns cubanos foram recebidos nos aeroportos com gritos de “escravos” por parte de médicos brasileiros. “Nós não criticamos. Vocês são um país independente”, respondeu Maricel.

Para a gerente da unidade, Andrea Fonseca, a chegada recente da médica já começa a fazer com que a equipe revise seu trabalho. Enquanto os profissionais brasileiros da unidade atendem a cerca de quatro pacientes por hora, a cubana atende a um. “Ela pensa em promover saúde e não em tratar doença”, disse. “A Maricel tem o hábito de passar pouca coisa para a enfermagem e para os especialistas. Sozinha, limpa feridas, dá pontos e põe o paciente no soro”, comentou Andrea.

“Uma vez ela pediu uma banheira. Não entendemos por que, mas conseguimos uma. Ela disse corajosa: ‘Tem uma criança com febre e sou eu quem vai baixar a temperatura dela’”, contou Andrea. “Outra vez ela pediu uma tesourinha. Quando vimos, a doutora, uma médica, estava cortando as unhas de uma criança e mostrando para a mãe: ‘É assim que tem que ficar para ela não acabe doente’”.

Aos 51 anos e natural da província de Camaguey, na região central de Cuba, Maricel é especialista em Medicina Geral Integral. “É uma especialidade que te permite conhecer a família integralmente, do ponto de vista genético, físico, moral, econômico e social. Em Cuba, dizemos que somos médicos da alma”, disse. “Nós trabalhamos com as pessoas que não têm doenças, para prevenir. Como? Educando, mudando seus hábitos e promovendo cultura. Quem não tem cultura não tem liberdade.”

A missão internacional no Brasil já é a segunda da qual Maricel participa movida por um interesse pessoal. Antes disso, esteve por dois anos na Bolívia, próximo à capital La Paz, atendendo a comunidade indígena Yungas, uma das mais pobres do país.

“Na literatura, o caminho que leva até elas é chamado ‘caminho da morte’. Muitas vezes eu andava de frente para uma montanha de pedra, com um precipício atrás de mim, carregando uma mochila, para atender a uma única família”, relatou. “Nessa região, as pessoas não conheciam sequer um termômetro e não sabiam medir a temperatura. Fizemos um grande trabalho de educação e quando saímos, eles tiveram uma melhoria muito expressiva em saúde”, contou emocionada.

Maricel deixou em Cuba os pais, o marido, um casal de filhos, três netos e um irmão, que é cirurgião maxilofacial e que retornou de uma missão na África no último mês. “Um dos meus netos fez aniversário dia 5, teve festa e eu estava longe. Mas eles estão felizes de eu estar trabalhando aqui. Minha filha, que também é médica, está esperando eu voltar para que ela possa também sair em missão.”

‘Um favor’

Atualmente, pelo menos 48 mil médicos cubanos atendem em missões internacionais em 58 países, incluindo China, Catar, Argélia, México e agora Brasil, segundo o Ministério da Saúde de Cuba.

“Muitas pessoas dizem que estamos aqui obrigados. Não é verdade. O diretor da unidade de saúde em que trabalho em Cuba comunicou que o Brasil abriria vagas para missão e que os interessados poderiam se inscrever para um exame de competência. Eu vim porque quis e se quiser volto”, afirmou. “Há muitas críticas ao nosso trabalho, ao nosso país, ao nosso sistema político, ao nosso presidente (Raul Castro) e até a Fidel Castro (ex-presidente). Nós não estamos aqui por política, estamos aqui fazendo um favor.”

Outros 11 médicos cubanos chegarão a Embu das Artes nesta sexta-feira (13), ultrapassando o total de 15 profissionais solicitado pela prefeitura ao Mais Médicos. A intenção é, segundo o prefeito Chico Brito (PT), completar as equipes de do programa Saúde da Família, um modelo de atendimento em que médicos, enfermeiros e agentes de saúde visitam as famílias pobres em suas casas para orientá-las sobre formas de vida saudável e acompanhar doenças pré-existentes.

“A demanda por médicos é muito grande na região metropolitana e Embu das Artes não tem condições de disputar em salários com cidades com o triplo de arrecadação”, disse o prefeito, durante a solenidade de recepção das médicas, em novembro. “Ainda existe uma injustiça tributária no Brasil que não garante recursos suficientes para os municípios poderem contratar mais profissionais.”

Embu das Artes tem 240 mil habitantes e 62 médicos. “Falar em número de profissionais não significa que o número de horas de trabalho necessárias para atender à população seja suficiente”, explicou a secretária municipal de Saúde, Sandra Magali, também na chegada das profissionais. “Temos contratos de 10 ou 20 horas semanais. Sofremos um déficit de horas.”

Atendimento domiciliar

Uma das atividades preferidas de Maricel são as visitas domiciliares. Ela estruturou um cronograma junto aos agentes comunitários do programa Saúde da Família, que prevê três períodos por semana dedicados ao atendimento domiciliar. “Quando vamos às casas dos pacientes olhamos as condições de higiene, os hábitos sociais e fazemos educação”, disse.

Na sexta-feira foi a vez de atender à família do motorista de ônibus Fabio Carareto, de 36 anos, que há dois anos foi vítima de um atropelamento e ficou paraplégico. Ela receitou um remédio para dor e verificou a pressão. “Está um pouco alta hoje, mas nas outras medições não estava. Vamos ter que voltar na segunda e na terça para verificar se realmente é apenas algo pontual, certo?”, perguntou ao paciente.

Fábio ainda aguarda duas cirurgias para finalizar o tratamento e retomar de vez suas atividades. “É a segunda vez que a doutora vem à minha casa. Foram dois momentos muito felizes. Ela já mostrou que irá me ajudar muito na recuperação.”

“Depois das cirurgias ele vai voltar a nadar, como fazia antes do acidente. É o que eu digo, se ele quer, ele pode”, observou Maricel, já em tom de amizade. “O Fábio também planeja fazer um curso de eletrônica e montar uma oficina. Ele tem uma condição psicológica boa e isso é ótimo para o tratamento. A alegria também é saúde.”

“O SUS tem uma concepção excelente. Vocês estão agora encontrando um caminho e têm tudo para conseguir. Nós estamos aqui para ajudá-los nisso”, concluiu a cubana.

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