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Como a sociedade forma os estupradores

O estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro na última semana serviu como fagulha para um debate que, em tempos de transformação daquilo que era motivo de vergonha em razão de orgulho, demonstrou a urgência da discussão sobre até onde avançamos e em quais campos precisamos avançar na luta pela igualdade de gênero. 

Por um lado, o caso permitiu debater se a sociedade brasileira está preparada para impedir crimes assim e atender vítimas de uma das mais abjetas formas de violência, mas também expôs que muita gente, inclusive representantes do poder público, ainda responsabiliza a mulher pela agressão. 

Os números são vergonhosos: segundo dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2014, a cada 11 minutos alguém é violentado no Brasil. Naquele ano, foram 47,6 mil pessoas, um cenário que, para a antropóloga e professora da PUC-SP, Carla Cristina, tem relação direta com o avanço do conservadorismo no mundo todo. 

“Os estupros coletivos tem aumentado por conta de uma onda conservadora forte que tem como uma das características o aumento da violência contra a mulher. Isso é perceptível também em Honduras, México e Índia”, diz. 

Os dados, porém, devem ser considerados uma estimativa porque, como ressalta a apoiadora em unidades de saúde Laís Dutra muitos casos não são notificados. 

“A violência atinge mulheres de diferentes classes sociais, inclusive, classe média e alta, mas, muitas vezes, não chegam até nós porque não utilizam o serviço público de saúde”, fala. 

Enquanto o perfil da vítima é variado, o do agressor costuma ser sempre o mesmo. “Mais de 80% dos casos de violência que atendemos na rede pública são praticados por conhecidos, ex-namorados, familiares ou alguém do bairro. No caso da violência urbana, o assédio que ocorre na rua, responde por cerca de 20% das situações.”

Expressão de desigualdade

Para a advogada, mestra em sociologia política pela USP e uma das fundadoras da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzaroli, a violência é a expressão máxima da desigualdade de poder. 

“É essa diferença de papeis entre gêneros, que se reflete também na desigualdade salarial,que naturaliza a violência e causa a cultura do estupro, permitindo que a TV aberta e as novelas naturalizem isso. No ano passado, por exemplo, havia numa novela uma cena de estupro romantizada”, recorda. 

Marina acredita que essa formação de consciência dominante atua em duas frentes, por um lado, transformando a mulher em objetivo e, por outro, atrelando-a ao espaço doméstico com responsabilidades familiares que cabem exclusivamente a ela. 

“Não à toa, até pouco tempo, as meninas achavam que era normal não reagir a agressões domésticas.”

Segundo ela, a cultura de estupro inclui ainda a culpabilização da vítima. “Assim como o empoderamento das mulheres tem evoluido, formas de violência contra elas também. É de se assustar os comentários que se você vê no Facebook e na grande mídia, o caráter de naturalização da violência e a misoginia”, destaca. 

Estamos preparados?

Para piorar, a agressão não termina quando o estuprador vai embora porque, para Marina, o Estado não está preparado para atender a mulher. 

“A vitima tem de reviver a violência ao contar o caso para um servidor, muitas vezes homem, ou, quando é mulher, mesmo em delegacias da mulher, que têm uma postura machista.

Tentam promover a conciliação do casal nos casos em que ela é vítima e precisa de medida protetiva. Passa pelo escrivão, delegado, promotor, juiz e a sensibilidade é praticamente ausente. Além de ter de ouvir perguntas como “por que estava na rua em determinada hora?”, “por que bebeu?”, “deu sinal que queria?”, “com qual roupa estava?”. A pergunta deve ser: houve consentimento?”

Por conta disso, a Rede Feminista de Juristas luta pela valorização do testemunho da violência sexual, porque, em muitos casos não há prova da ação. Outra trincheira que precisa de atenção são ações de segmentos conservadores do Congresso Nacional ainda comandado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). 

Um projeto de Cunha, aliado de Michel Temer e liderança da bancada da Bíblica, criminaliza quem induzir ou orientar gestantes que correm risco de vida ou são vítimas de estupro sobre o acesso ao aborto legal, previsto na Constituição.

“Em caso de estupro há um protocolo legal que deve ser seguido e inclui coquetel antiviral, a chamada pílula do dia seguinte e a possibilidade de aborto legal. E isso o Cunha busca derrubar”, explica.

A apoiadora da saúde Laís Dutra lembra que, ao contrário do que diz o senso comum, a prática do aborto ainda leva muitas mulheres à cadeia. “Em São Bernardo, eu conheci um caso de uma mulher que induziu o aborto, foi algemada na cama e atendida assim. Depois, foi levada para a delegacia”, recorda.  

Atendimento direto

Ainda sobre a questão estrutural, ela acredita que os diversos segmentos do Estado devem estar alinhados para que medidas positivas possam se tornar eficientes. 

“Temos a Lei Maria da Penha, construída com participação da sociedade e que é muito progressista, mas depende de outros setores para funcionar. Em São Paulo, algumas delegacias de mulher não são 24 horas e não funcionam aos finais de semana, justamente quando ocorrem muitos casos de agressão por conta de bebidas e festas. A responsabilidade, portanto, é do governo estadual nessa situação.”

Laís tem opinião semelhante. “Em nível nacional, durante os governos Lula e Dilma, tivemos vários avanços de políticas públicas. Ministério das Mulheres, conferências, a própria Lei Maria da Penha, o Disque 180. Mas os outros equipamentos precisam receber recursos, investimentos, só que isso não acontece. Uma demonstração de como as mulheres não são prioridade num modelo de política dominado por homens”, define. 

O que podemos fazer?

Todas elas acreditam que além de cobrar o Estado para que cumpra suas obrigações e ofereça estrutura para atender a vítima, é preciso fazer o trabalho preventivo de combate ao machismo. E essa luta passa pela educação. 

“Devemos ensinar os meninos a respeitarem as mulheres e não as mulheres a se protegerem. É outra masculinidade que fará com que isso não aconteça mais. Talvez ensinar outro tipo de paternidade para outro tipo de relação afetiva entre as pessoas que possa fazer com que o respeito aumente. Fundamentalmente, educar para a diversidade e para que os meninos respeitem todos os humanos que não sejam eles”, defende a antropóloga Carla Cristina.

Um trabalho que não deve ser apenas atribuição da mãe, mas uma responsabilidade parental, diz Marina. “O papel da educação não pode recair só sobre a mulher porque aí vamos vitimizar e culpabilizar mulheres por machismo. Todos devem estar envolvidos numa educação mais inclusiva e humana. A família e a escola devem vir acompanhas de políticas públicas para discutirmos sexualidade e papel de gênero nas escolas e em casa.” 

Para Marina, a educação sexual é fundamental, mas não deve se restringir ao conhecimento sobre o corpo. “A educação sexual é um debate que vem dos anos 1980 no Brasil. Quando falamos de sexualidade também devemos falar de papéis de gênero e temos um novo debate, que é a violência nas redes. Você pode atuar no seu microcosmo, educando de forma inclusiva, sem obriga-los a ser algo, no seu trabalho e na família em relação a piadas homofóbicas, em relação a vídeos que você recebe e que foram gravados sem autorização da vítima”, exemplifica. 

Também é preciso discutir o papel que a mídia exerce ao reforçar estereótipos e minimizar a agressão, acrescenta. “Há um perfil de homens construídos socialmente e refletidos numa mídia que banaliza estupro, homens que fazem apologia a isso sem serem punidos, que têm aval da sociedade para achar que são proprietários das mulheres”. 

Luta nas bases

No ambiente de trabalho, a violência contra as mulheres costuma vir em forma de assédio moral e sexual. Coibir isso é parte da luta da classe trabalhadora e algumas categorias já têm cláusulas específicas para isso. 

Caso da FEM (Federação dos Metalúrgicos da CUT-SP), que busca sensibilizar sindicatos para que façam esse tipo de discussão na mesa de negociação. 

“A ferramenta que temos são as convenções coletivas. Uma delas estabelece que a trabalhadora vítima de violência doméstica possa se afastar por 30 dias para colocar a cabeça no lugar. No nosso caso, temos representantes dos sindicatos no local de trabalho e a CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) para receber as denúncias e ajudar a trabalhadora”, explica Andréa de Sousa, secretária da Mulher da FEM.

A preocupação também é grande entre as bancárias. Além da orientação direta sobre como e para quem denunciar, a Contraf (Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro) produziu uma cartilha que orienta sobre o assédio sexual. 

Secretária da Mulher da organização, Elaine Cutis Gonçalves, diz que a questão apareceu como uma das prioridades que a confederação deveria tratar durante a preparação para a as negociações salariais. A ideia era fazer uma campanha conjunta com a Fenaban (Federação Nacional dos Bancos) contra essa forma de violência, mas os empregadores não aceitaram. 

Talvez porque encampar essa ideia seria admitir a existência da situação, queimando a imagem de responsabilidade social que tentam vender. 

“Nos últimos cinco anos, transitaram pelo canal de atendimento que criamos cerca de 1.700 denúncias de assédio. E isso reflete o cenário de uma categoria que ainda tem de lutar contra a cultura machista que se expressa no apelo por venda de produtos, por exemplo. Muitos superiores incentivam a mulher a usar atributo físico para vender, dizem que temos de usar o charme, que se fossem mulher venderiam rapidinho. E esse é apenas um pequeno detalhe do que enfrentamos diariamente”, diz.

A transformação passa pelo empoderamento da mulher e a ocupação dos espaços públicos, defende Marina Ganzaroli. 

“Já mudamos algumas coisas, ainda há muito racismo no Brasil, mas já não se aceita na esfera pública você fazer uma piada racista. A gente espera um dia alcançar essa elevação cultural e social também para o preconceito contra LGBTs e as mulheres. Para isso, quanto mais mulheres empoderadas, participando da vida política, pública e discutindo o machismo, melhor será para homens e mulheres”, afirma.

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