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Direito da mulher e Estado laico estão na mira de Cunha

Cercear a informação, criminalizar o trabalho dos agentes de saúde e fragilizar as mulheres vítimas de violência. Em uma só tacada, o Projeto de Lei 5.069/13, aprovado no último dia 21 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), por 37 contra 14 votos, usa todos esses mecanismos para atender a valores da bancada fundamentalista.

A opinião é de dirigentes sindicais, médicos e psicólogos que mensuram o prejuízo causado pelo texto que altera a Lei de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual e torna crime induzir ou auxiliar em métodos abortivos. 

O projeto de autoria do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), determina que mulheres vítimas de abuso sexual tenham de fazer um boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para comprovar o estupro e somente após esse procedimento recorrerem a um hospital para fazer o aborto. Atualmente, basta a palavra da gestante.

O texto ainda que irá ao plenário da Casa antes de seguir para o Senado, pode punir com prisão de até três anos agentes de saúde que orientarem a mulher sobre métodos abortivos, mesmo em casos permitidos pela lei – em casos de estupro, riscos para a mãe ou fetos anencéfalos.

Isso inclui a prescrição de métodos que podem ser considerados abortivos pela lei, como a pílula do dia seguinte, ainda que o efeito seja contraceptivo, e determina que profissionais de saúde, como farmacêuticos, se recusem a fornecer ou administrar o medicamento.

Desinformar para manipular

De acordo com dados de 2011 do Sistema Único de Saúde (SUS), 12% dos atendimentos são resultado de algum tipo de violência sexual. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2013, registra que uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos.

Como resposta ao rolo compressor de Cunha e da banca conservadora, a secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Junéia Batista, explica que a semana será de mobilizações das cutistas para barrar o retrocesso. “Faremos uma caminhada no Congresso e um diálogo com os parlamentares para defender a liberdade e a autonomia sobre nossos corpos. E cobraremos que essa questão seja discutida na conversa que teremos com a SPM (Secretaria de Políticas para Mulheres) nesta terça (27)”, explica.

A psicóloga Márcia Valéria, que coordenou por 14 anos uma casa abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica em São Paulo, afirma que o texto apenas joga ainda mais sombra sobre um assunto que há muito tempo causa polêmicas.

Ela cita um caso em que encaminhou duas mulheres vítimas de violência para o serviço de aborto legal do Hospital Municipal do Jabaquara, na capital paulista, e as pacientes foram barradas pela segurança, que impediu o acesso ao serviço.

“O pessoal que cuida do acesso disse que o serviço não existia, que não era lá. Conseguiram ser atendidas somente após furarem o bloqueio. Se hoje já são mal orientadas, às vezes por desconhecimentos, às vezes por pessoas que não concordam com a decisão que tomaram, imagine com a aprovação de uma nova lei que dificulta ainda mais. As mulheres vão arcar com os resultados dessa violência sozinhas”, avalia.

Marcia explica que a gestante já passa por uma entrevista e precisa escrever de próprio punho a situação de violência, mas não é obrigada a passar pelo constrangimento de comparecer a uma delegacia. A forma como são tratadas, explica, pode empurrar as mulheres para clínicas clandestinas, aumentando o risco de morte.

“As queixas de estupro costumam ser muito mal atendidas e em muitas delegacias elas têm de responder perguntas como onde estavam, por que estavam em determinado lugar, qual roupa vestiam. A esfera policial tende a culpabilizar a mulher pela situação.”

A psicóloga conta ainda que o PL ampliará o risco de situações como o caso da Casa de Saúde da Mulher Dr. Domingos Delascio, da Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo), serviço de excelência no atendimento à mulher que quase fechou por falta de demanda de pacientes que não são encaminhadas para o serviço.

“Muitas vezes têm-se a ideia de que a violência, quando é praticada pelo marido, não é estupro, porque o marido pode fazer o que quiser, nem todo mundo tem noção de que, se não houver consenso, é violência. E esse texto não ajuda a conscientizar e derrubar esse mito.”

Cerco fechado

Médica ginecologista, Ana Lúcia aponta que o aborto não deixará de existir porque aumentará a proibição, mas afirma que continuará a divisão entre mulheres com recursos para recorrerem a clínicas particulares e mulheres que se submetem a métodos pouco seguros.

“A maioria dos médicos não conhece a lei, se diz contra o aborto e isso precisa ser discutido. O Estado tem a obrigação de encontrar profissionais que realizem o procedimento e não discutimos isso com profundidade. O médico tem muito medo de fazer qualquer coisa que esteja fora da lei e mantém uma visão de classe média, muitas vezes hipócrita. Para o Estado, a obrigação é garantir o atendimento”, define.

Além disso, explica Ana, a maioria dos serviços de saúde estão nas mãos de Organizações Sociais (OSs), entidades pagas para cuidar de gestão de hospitais e cuja administração é, em alguns casos, afetada pela orientação religiosa.

“As unidades da Santa Marcelina, por exemplo, que é responsável por quase 80% funcionários da zona leste, inclusive, do Hospital Tiradentes, não faz laqueadura, não distribuiu pílula do dia seguinte e não faz planejamento familiar. A lei da laqueadura é federal e não está sendo cumprida. Quando chega, então, a possibilidade de negar a prescrever pílula do dia seguinte, temos uma aberração, porque existe portaria do Ministério da Saúde dizendo que pode”, denuncia.

Tática do medo

Para o presidente do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, Rogério Giannini, o objetivo do PL 5.069 é justamente fechar portas na área da saúde, onde as mulheres encontram maior acolhimento.

“O projeto de Eduardo Cunha vai funcionar como tática do medo, porque, muitas vezes, para mulher é mais tranquilo ir ao serviço de saúde onde tem acolhimento e proteção, já que boa prática de estupros é de pessoas próximas. E ir à delegacia é como se dissesse “tem certeza que vai denunciar? Além disso, cria-se uma insegurança jurídica, porque o texto tem alto grau de subjetividade. O que seria propaganda de métodos abortivos, aos quais o projeto se refere?”, questiona.

Para Giannini, essa é mais uma cruzada do presidente da Câmara dos Deputados contra os direitos da mulher. Segundo ele, as investidas parecem obsessão dos setores conservadores em relação à sexualidade feminina, facilitando a vida do estuprador e dificultando a vida da mulher.

“Não existe agente de saúde propagandeando aborto, ele cumpre as leis. Se a mulher tem gravidez de risco, ela pode ser interrompida legalmente, como nos casos de estupro. Isso já está normatizado”, defende.

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