Não interessa tornar a legislação mais frouxa, como querem detratores do combate ao trabalho escravo. Essa medida apenas beneficiaria poucos em detrimento da maioria dos cidadãos do País
Não é apenas a ausência de liberdade, mas principalmente de dignidade que faz o trabalho de uma pessoa ser considerado análogo ao de um escravo. Esse conceito, presente na legislação brasileira, tem sido a base para garantir a milhares de pessoas neste país o respeito a esses dois direitos fundamentais.
O trabalho forçado (manter a pessoa no serviço por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e a servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele) há muito não são mais os únicos elementos que configuram essa forma de exploração.
Quem procura grilhões dificilmente vai encontrar. O mundo evoluiu, as maneiras de encobrir o aviltamento do ser humano também. Por que a legislação tinha que se ater à de maio de 1888?
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, condições degradantes de trabalho, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador, também configuram trabalho análogo à escravidão. Não é a distância entre camas, a espessura de colchões, a falta de copos plásticos ou de marmita aquecidas e sim situações que, em conjunto, são incompatíveis com a dignidade humana.
Tudo isso está normatizado e pode ser encontrado até em um manual divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Outro elemento são as jornadas nas quais o trabalhador é submetido a um esforço excessivo, que acarreta danos à sua saúde ou risco à sua vida. Não é a quantidade de horas, mas a exigência de seu corpo para além dos limites possíveis.
Não nos admira que dezenas de trabalhadores rurais morram de exaustão por conta do serviço e há quem os culpe por isso.
A legislação brasileira é considerada de vanguarda pela Organização Internacional do Trabalho e pela relatora das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão. Vale lembrar que as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário afirmam que o consentimento do trabalhador é irrelevante. Não importa se ele quer ser escravo; um país minimamente digno não pode permitir que isso aconteça.
O Supremo Tribunal Federal já aceitou denúncias entendendo as condições degradantes como elementos constituidores do trabalho escravo. Críticos dizem que a decisão foi obtida de forma apertada. Com base nesse argumento, podemos então pensar em rever todas as decisões do Supremo que não foram consensuais. Ou as votações no Congresso Nacional.
Tentando manobras como a de questionar o conceito, os detratores do combate ao trabalho escravo promovem a “insegurança jurídica” no campo e na cidade. Afirmam que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo porque, na verdade, não concordam com um critério que traga prejuízo econômico para alguns poucos.
Mais de 3.000 estabelecimentos foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. Mais de 45 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo de dezenas de milhões de trabalhadores.
A grande maioria dos empresários segue a lei e não utiliza trabalho escravo. Ainda que diversas, as condições degradantes de hoje são equiparáveis aos grilhões da antiguidade, pois reduzem a expectativa de vida de milhares de trabalhadores que as sofrem diariamente, facilitam o surgimento de dumping social e criam assimetrias econômicas extremamente perniciosas ao bom funcionamento do mercado.
Não interessa tornar a legislação mais frouxa. Essa medida apenas beneficiaria poucos em detrimento da maioria dos cidadãos do país.
JOSÉ GUERRA, 36, é secretário executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
LUIZ FABRE, 34, é membro da coordenação nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho
RENATO BIGNAMI, 44, é coordenador do programa de erradicação do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo