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Freud, o homem que construiu sua época

São muitos os estudos e textos já publicados sobre a vida e a obra de Sigmund Freud. Várias dezenas de biografias foram escritas, desde a primeira, de seu discípulo Fritz Wittels, publicada com o pai da psicanálise ainda vivo, em 1924, até a de Peter Gay, lançada em 1988 (e um ano depois no Brasil, pela Companhia das Letras). Cada escola psicanalítica – freudiana, pós-freudiana, kleiniana, lacaniana, culturalista entre outras – tem seu próprio Freud. Por que, então, apresentar mais uma biografia? 

Conversas com o historiador Jacques Le Goff e o acesso à biblioteca do Congresso de Washington inspiraram a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco a elaborar o mais recente livro com a proposta de apresentar Freud inserido nas diversas tramas que envolveram sua produção intelectual e sua vida privada. 

Em 524 páginas, Freud em sua época e em nosso tempo retoma informações biográficas já apresentadas por outros autores, acrescenta outras, mas, principalmente, desenvolve uma análise vigorosa da história de Freud, suas relações, inquietações e ambiguidades.  Resgata seu lado humano, o vínculo com a família e as amizades profundas e instáveis com os parceiros. Num estudo minucioso, dividido em quatro partes, articula o autor e pensador ao pesquisador incansável, o temperamento obstinado e intenso com sua história pessoal.  É como a própria autora diz: “Freud construiu sua época e foi construído por ela”.

Escreve a autora: “O acúmulo de comentários, fantasias, lendas e rumores terminou por encobrir o que foi o destino paradoxal desse pensador em seu tempo e nos dias de hoje. Eis por que, após um longo convívio com textos e cenários da memória freudiana, no âmbito de meu ensino ou por ocasião de viagens e pesquisas, resolvi expor de maneira crítica a vida de Freud, a gênese de seus escritos, a revolução simbólica de que ele foi o inaugurador.”

O livro traz detalhes de sua infância e juventude, a origem judaica com ascendência oriunda da Galícia Oriental e seu interesse precoce pela história do Egito e pela saga de Moisés. Nascido em uma família numerosa, filho do terceiro casamento de seu pai, o pequeno Sigmund expressava paixão explícita pela mãe. Jovem inteligente, amante da filosofia e dos estudos de fisiologia e neurologia, caminhou para a medicina.

Recolhido e tímido, com saúde frágil, chegou a dizer que “só o homem que sofre é capaz de realizar alguma coisa”. Da personalidade introspectiva acabou por se apaixonar aos 26 anos por Martha Bernays, com quem se casou e teve seis filhos e manteve estreita amizade com a cunhada, Minna, por toda a vida. 

Pesquisador ambicioso, recebeu influência do Iluminismo. A gênese de seus escritos estava contagiada pelo raiar da Belle Époque, pelos tormentos pessimistas dos Anos Loucos e pelos momentos dolorosos da destruição das conquistas dos regimes ditatoriais. Podemos entendê-lo como um conservador esclarecido que buscava libertar o sexo para melhor controlá-lo, decifrador de enigmas, um observador atento da espécie animal, um estoico fanático por antiguidades e, paradoxalmente, um herdeiro do romantismo alemão. Sua relação com Goethe, por exemplo, parece contradizer o lado positivista e racional.

A maior das idiossincrasias, porém, parece ser a de que, apesar de haver desenvolvido uma singular teoria sobre a sexualidade e ter registrado vários sonhos eróticos ao longo da vida, deixou de ter vida sexual por volta dos 40 anos, por apresentar impotência. No entanto, sua capacidade para sublimá-la o levava a intermináveis pesquisas e longas conversas com seus discípulos, numa trama de relações carregadas de afetos, parcerias e rompimentos bruscos. Foi assim com Wilheim Fliess, Sándor Ferenczi e Gustav Jung, entre outros. Inspirado em Hamlet, de Shakespeare, e Édipo, de Sófocles, anunciou o conceito do ser humano que constrói o próprio universo inconsciente a partir da culpa e da repressão da liberdade.

Com a perda de sua filha Sophie em uma epidemia e as tristezas vividas durante a I Guerra Mundial, Freud é atingido pelo desencanto e escreve à amiga Lou Salomé, em 1912:  “Não duvido que a humanidade venha a se recuperar dessa guerra; mas tenho certeza de que eu e meus contemporâneos não veremos mais o mundo risonhamente. Ele é muito feio. O mais triste nisso tudo é que ele é exatamente tal como deveríamos ter representado: os homens e seus comportamentos segundo as experiências instigadas pela psicanálise. Foi por conta dessa posição a respeito dos homens que nunca pude me colocar em uníssono com seu bem-aventurado otimismo. Concluí, no recôndito de minha alma, que, uma vez que vemos a cultura mais elevada de nosso tempo tão horrivelmente aviltada pela hipocrisia, é porque organicamente não éramos feitos para essa cultura”.

Mais uma vez, Freud afirmava que sua doutrina era reveladora dos aspectos sombrios da humanidade e, condizente com essa percepção, escreveu em 1920 o texto “Além do princípio do prazer” e, posteriormente, o ensaio “O mal-estar na civilização”.

Seu trabalho interessou escritores, poetas e historiadores e repeliu os adeptos das ciências positivas – justamente quem Freud tanto buscava convencer. Fiel às tradições da mitologia e do romantismo, abraçava a ideia dos trágicos gregos, segundo a qual o homem é o ator inconsciente de sua própria destruição, em razão de seu enraizamento numa genealogia de que ele não é senhor. 

Mas, afinal, por que trazer Freud para o “nosso tempo?” O olhar de Elisabeth Roudinesco não dispensa o contexto histórico e cultural da época e legitima sua importância para os dias de hoje. Para Roudinesco, o mundo contemporâneo tem fortalecido os modelos de ciência apoiados em bases naturais estritamente biológicas. A cada dia, a condição humana fica mais à mercê dos catálogos e protocolos classificatórios. É contra este movimento de medicalização radical, patrocinada pelos laboratórios farmacêuticos, que a autora resgata o olhar da psicanálise enfraquecido na Europa e Estados Unidos. “Atualmente, a psiquiatria está desaparecendo, e os neurologistas se transformaram em simples distribuidores de remédios. Isso ocorre porque tratar um paciente com um remédio padronizado é menos custoso do que oferecer um tratamento personalizado, que de fato permita a evolução do indivíduo. Nesse contexto, é normal que a psicanálise e sua maneira de entender as doenças da alma incomodem.”

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