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Médicos populares e o contraponto à mercantilização da saúde

Criado pelo Governo Federal há dois anos, o programa Mais Médicos surgiu da necessidade de se suprir a falta de profissionais de saúde dispostos a prestar serviços de atenção básica a populações carentes em periferias e regiões remotas do país. A carência de médicos desse perfil se dá, entre outros motivos, principalmente porque boa parte dos profissionais é formada sob uma lógica mercadológica de saúde que valoriza a especialização absoluta, restringe o serviço e acaba tornando a medicina um produto que é cada vez mais comercializado pelos planos de saúde, atraindo os médicos ao setor privado e elitizando o acesso.

A lógica mercadológica que impera nas instituições, por sua vez, não vem por acaso. Pesquisa recente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), por exemplo, mostra que os estudantes que se formarão médicos têm um perfil, em geral, elitizado: 73% deles se declaram como brancos e a renda familiar mensal mais comum é a de dez a trinta salários mínimos (R$ 6.780,01 a R$20.340,00). Mais de 80% dizem nunca ter trabalhado.

Esses dados talvez ajudem a explicar um pouco também o ódio que foi disseminado por parte da classe médica brasileira quando os médicos cubanos – em sua maioria negros – chegaram ao país para suprir as vagas que eles recusaram no Mais Médicos. Em evidentes episódios de racismo, os estrangeiros sofreram constrangimentos públicos e tentativas de desmoralização de suas capacidades.

Ao mesmo tempo em que esses médicos e médicas se recusam a trabalhar pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso universal, público e gratuito que o sistema procura oferecer vem sofrendo constante ameaça diante do poderio cada vez maior dos planos de saúde e da ofensiva conservadora que está instaurada no Cnogresso Nacional, através de propostas como a Emenda Constitucional 451/2014, de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que obriga as empresas a oferecerem planos de saúde privados para todos os funcionários.

Foi com o intuito de fazer um contraponto à ofensiva conservadora na área médica, proteger e fortalecer o SUS, lutar contra a elitização e restrição do acesso e exercer medicina voltada aos interesses da população, e não do mercado, que profissionais do país inteiro criaram, em parceria com movimentos sociais – como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) -, a Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.

Concebida em julho deste ano ao longo do 13º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, em Natal (RN), a Rede conta, atualmente, com cerca de 200 – e crescendo, de acordo com os membros – profissionais espalhados pelo país.

“A Rede de Médicas e Médicos Populares nasce da necessidade de se fazer um contraponto à ofensiva conservadora também no setor de saúde e tem como missão ajudar a tecer um campo de unidade em defesa do SUS e do direito à saúde do povo brasileiro”, disse, no dia da apresentação da Rede, o médico de família Stephan Sperling.

Em entrevista à Fórum, a médica da família e comunidade Priscila Medrado, que atua no Distrito Federal e na coordenação estadual da Rede, analisou a atual conjuntura do sistema de saúde no país, a ofensiva conservadora da classe médica e falou sobre a motivação daqueles que militam pela medicina popular.

“Através das vivências, compreendi que a saúde está inserida em um contexto histórico e social, e o quanto é pautada pela lógica do mercado. Entendi a importância de se lutar por uma saúde voltada para as necessidades reais do povo (sendo ele protagonista dessa construção) onde o seu saber e cultura são valorizados e respeitados”, disse.

Confira a íntegra da entrevista e saiba mais sobre a Rede de Médicos e Médicas Populares.

Fórum – O que é ser uma médica popular? O que te motivou a isso?

Priscila Medrado – Na minha concepção, médico popular é aquele que está ao lado do povo e que tem como horizonte os interesses dos movimentos populares. Essa opção vem sendo construída ao longo da minha trajetória de militância iniciada com o movimento estudantil e aprofundada com os movimentos populares, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento Sem Teto de Salvador (MSTS). Estes cumpriram um papel fundamental na minha formação enquanto médica popular. Através das vivências, compreendi que a saúde está inserida em um contexto histórico e social, e o quanto é pautada pela lógica do mercado. Entendi a importância de se lutar por uma saúde voltada para as necessidades reais do povo (sendo ele protagonista dessa construção) onde o seu saber e cultura são valorizados e respeitados.

Fórum – Como surgiu a ideia e quais os objetivos da criação da Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares?

Medrado – A Rede de Médicos e Médicas Populares surge do esforço coletivo de um grupo de médicos progressistas, com a contribuição de movimentos populares, em se organizar e fazer o contraponto a essa ofensiva conservadora da categoria médica. Surge da necessidade de se criar um espaço de articulação nacional de médicos e médicas, a fim de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo continuamente ameaçado. Médicos, estes, que não se sentem representados pelas entidades da categoria e demandam voz.

Vem evidenciar que existem médicos que estão ao lado dos interesses da população brasileira e compromissados com a construção de um Sistema Público de Saúde gratuito, de qualidade, estruturado pela equidade, integralidade e universalidade. A Rede tem como objetivo combater qualquer prática de saúde que vá contra aos interesses do povo brasileiro e do SUS. Contribuindo para a construção de um movimento pela saúde, juntamente com os movimentos populares, tecendo uma identidade de médicas e médicos populares, não somente no Brasil, mas favorecendo o intercâmbio e a solidariedade em toda a América Latina.

Fórum – Como está sendo a articulação e qual será o modo de atuação?

Medrado – A Rede é um espaço democrático e horizontal, que se organiza através de núcleos, em diversas cidades brasileiras, que funcionam de forma bem flexível, respeitando a dinâmica própria de cada localidade. Os núcleos são responsáveis por construir as lutas da Rede a nível local e estadual. Cada estado possui um ou dois coordenadores estaduais que compõem a Secretaria Operativa Nacional da Rede.

As definições a nível nacional são discutidas e encaminhadas nas plenárias nacionais da Rede. Tivemos a segunda plenária nacional nos dias 29 e 30 de agosto, em Guarema, interior paulista. Nossas pautas e lutas se orientam pelas demandas dos movimentos populares com base nas necessidades concretas dos mesmos e na análise da conjuntura nacional e da saúde.

Fórum – Quantos médicos, atualmente, integram a rede?

Medrado – Hoje somos em torno de duzentos médicos, distribuídos por todo o território brasileiro, crescendo a cada dia.

Fórum – O que os médicos e médicas que integram a rede têm em comum?

Medrado – Uma ideologia progressista, a identificação e valorização das lutas populares históricas em nossa realidade brasileira e latino-americana, e a defesa pelo SUS como contribuição essencial para uma sociedade mais justa, democrática, emancipatória e popular.

Fórum – Como avaliam a situação atual do SUS?

Medrado – Na atual conjuntura, o SUS está em disputa e vem sofrendo sucessivas derrotas, sendo continuadamente ameaçado pelo setor privado, sobretudo os planos de saúde, que estão entre uma das maiores doadoras de campanha de candidatos. No Congresso Nacional, há propostas de modificação e até extinção do SUS, movidas por força de interesses econômicos.

Isto se mostra quando analisamos as propostas em tramitação no Congresso Nacional, como a “Agenda Brasil”, do Senador Renan Calheiros (PMDB/AL), e a Proposta de Emenda Constitucional 451/2014, de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que obriga as empresas a ofereceram planos de saúde privados para todos os funcionários. A aprovação dessa PEC seria um retrocesso para o SUS. Para esses setores, a saúde é tratada como mercadoria, enquanto nós a defendemos como direito universal e dever do Estado.

Fórum – Como médica, quais acredita que sejam os desafios que o país ainda tem na área da saúde?

Medrado – A luta contra o subfinanciamento do SUS é um grande desafio para a saúde pública. Seria necessária a criação de uma política econômica voltada para a garantia de direitos sociais, que viabilize um financiamento adequado para a saúde. Como a taxação de grandes fortunas e auditoria da dívida pública. Também apontaria a importância de uma reforma eleitoral no Brasil e o fim de financiamento privado de campanha como estratégia de combate ao atrelamento do Parlamento e interesses do mercado. O combate à privatização da saúde pública é outro desafio, já que essa política vem se intensificando nos últimos anos com as criações das Organizações Sociais (OS) e Empresas Brasileiras de Serviços Hospitalares (EBSERH).

Fórum – Como avaliam o programa Mais Médicos, do Governo Federal?

Medrado – Avaliamos como positivo o programa Mais Médicos para o Brasil, por ter trazido benefícios concretos para a saúde da população brasileira, a citar a ampliação do acesso aos serviços de saúde, a melhoria na qualidade do atendimento da população e a redução da mortalidade infantil. Outro eixo estruturante do programa é a formação médica, com ampliação da oferta de vagas na graduação e residência médica, buscando a interiorização e reorientação da formação. O que se configura em uma oportunidade de se revolucionar o ensino e formação médica no país. No entanto, mantemos uma postura crítica quanto aos limites do programa e entendemos que é uma política emergencial. Seguimos lutando pela construção de um plano de cargos e carreiras para todas as trabalhadoras e trabalhadores do SUS.

Fórum – A chegada dos médicos cubanos ao país foi marcada pela hostilização de médicos brasileiros aos estrangeiros. De onde acha que vem esse preconceito?

Medrado – Infelizmente, existe uma cultura de ódio sendo disseminada em relação aos médicos estrangeiros, em especial aos cubanos. As críticas são vazias e sem fundamentos, alguns comentários chegam a ter cunho fascista e racista. Interpreto esse preconceito sob dois ângulos. O primeiro, sob a perspectiva de classe social: a categoria médica é, em sua grande maioria, elitizada, pertencendo às classes de maior renda, tendendo a defender os interesses da elite e não os das classes populares.

Assume, assim, a defesa de posturas corporativistas e de manutenção do status de poder na sociedade. A segunda é sob uma perspectiva racial. Basta olhar para uma foto de turma de graduação de medicina para ver o retrato do racismo no Brasil. Quantos são negros? A dificuldade em aceitar médicos cubanos acoberta, muitas vezes, a dificuldade de se aceitar um médico negro. Essas coisas precisam ser debatidas na sociedade. Mas é com muito pesar que digo que muitos ainda escolhem negar que existe discriminação racial no Brasil.

Fórum – De que forma essa elitização influencia na qualidade da saúde de um país? A Rede visa fazer um contraponto a essa classe?

Medrado – De forma negativa, com certeza. Se o discurso (e a prática) da grande maioria da classe médica e entidades representativas dessa classe é corporativista e pela manutenção dos seus privilégios, cada vez mais eles se distanciam da realidade concreta e do contexto de saúde da grande maioria da população brasileira. Como construir, de fato, uma saúde popular, isto é, voltada para as necessidades de todo o povo brasileiro quando interesses individuais e do mercado estão sendo priorizados? A Rede caminha exatamente no sentido oposto. Mas aponta para muito além do contraponto a essa classe. A Rede apresenta-se como um espaço de articulação daqueles que pensam de forma diferente, possibilitando a luta concreta para transformação dessa realidade.

Fórum – Acha que há um problema na formação de médicos no país?

Medrado – Sem dúvida. Com exceção de algumas escolas que conseguiram revolucionar o seu currículo e projeto pedagógico, a grande maioria dos cursos de medicina mantém sua formação voltada para uma lógica médica centrada, hospitalar e mercantilista. O foco é na superespecialização dos médicos, com muito pouco ou nenhuma inserção na atenção primária. Nestes currículos, ditos tradicionais, pouco se trabalha o aspecto psicológico, ético e humanístico do estudante durante o curso, o que gera um profissional deficiente no lidar com aspectos subjetivos, políticos e sociais das pessoas e comunidade em que está inserido. Assim, formamos médicos deficientes, com foco na doença e na medicalização. É necessário reorientar esse modelo, repensar o projeto pedagógico dos currículos de Medicina, buscando uma formação médica voltada para as necessidades da população brasileira.

Fórum – Como a Rede de Médicos e Médicas populares pretende mudar esse cenário?

Medrado – Construindo, juntamente com os movimentos sociais, um movimento de luta pela saúde pública, que represente os interesses e as necessidades de toda a população brasileira. Contribuindo com lutas concretas e acolhendo as demandas destes movimentos. Buscamos também estimular a retomada, por parte dos médicos e estudantes de Medicina, do debate em torno das políticas públicas de saúde, contribuindo para a formação política e a participação dos mesmos nos debates estruturantes da sociedade. Neste sentido, o site saude-popular.org, organizado pela Rede, tem sido uma ferramenta importante. Através dele buscamos acolher as demandas populares e construir políticas que venham a desconstruir o corporativismo e a mercantilização da saúde. Convidamos todos e todas que têm identidade com essa luta a se juntarem à Rede. Vamos participar dessa construção!

Fórum – Há expectativa de algum tipo de vínculo ou parceria com o governo, empresas ou entidades?

Medrado – A Rede tem total independência em relação ao governo, empresas ou entidades. Por ora, estamos construindo parcerias com alguns movimentos sociais e entidades da Reforma Sanitária, como CEBES e ABRASCO. Mas também mapeamos outros possíveis parceiros durante a II Plenária Nacional da Rede.

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