30mai2025 Por Vinícius Saldanha*
A passagem da banda armênio-americana, System Of A Down, pelo Brasil no início de maio gerou grande repercussão dada a verdadeira catarse coletiva observada em seus shows em terras brasileiras, assim como observado também em outros países da América do Sul que receberam a considerada histórica, antes mesmo de terminar, Wake Up South America Tour. Reconhecida como uma das bandas mais inovadoras da história do rock, ao misturar, entre outros, estilos como metal, punk e música tradicional armênia, o grupo, na ativa desde 1994, conquistou uma enorme base de fãs no Brasil. Nessa passagem recente, que ainda reverbera, a banda arrastou multidões em 5 shows (um em Curitiba, um no Rio de Janeiro e três em São Paulo).
Diante de todo o engajamento que tem gerado essa atual passagem, é importante evidenciar as mensagens transmitidas pela banda, afinal, a mesma nunca foi um mero entretenimento, muito menos veículo de uma revolta abstrata; sempre procurou mobilizar, através da música, reflexões e sentimentos capazes de ampliar a crítica social, de modo a denunciar e se opor a situações de opressão, muitas vezes mencionando situações concretas, como o genocídio armênio, que, de diversos modos, afetou a vida de todos os integrantes, – que são de ascendência armênia -; a indústria bélica e a cultura de guerra; a violência policial; a manipulação midiática; o consumismo, a devastação do meio ambiente; dentre muitas outras. Aqui, chama-se atenção para a questão das drogas, abordada em diversas canções nas quais a banda denuncia a hipocrisia como a questão é tratada pela sociedade, por exemplo, em músicas como Sugar e Cigaro. Mas é em Prison Song que a banda dá uma verdadeira aula sobre a história do proibicionismo de drogas, transmitindo uma visão estrutural da questão.
Prison Song (Canção da Prisão) se inicia já com a denúncia de um fato que caracteriza uma das principais intenções da falaciosa “Guerra às Drogas”, com o sussurro: “eles estão tentando construir uma prisão”. Os versos seguintes contextualizam o surgimento do proibicionismo moderno: “perseguindo os movimentos por direitos, você os reprimiu com punhos de ferro”, que se refere ao fato, amplamente comprovado na literatura científica antiproibicionista, do governo estadunidense ter se utilizado de um aparato repressivo contra os movimentos populares que, sobretudo na década de 1970, passaram a fazer amplas mobilizações por direitos, por liberdade de expressão, pelo respeito à diversidade, contra a opressão exercida sobre as minorias e por uma ordem social mais igualitária, antagônica aos interesses das camadas plutocráticas e das grandes corporações. Pelo fato de ser inviável criminalizar diretamente os movimentos e as minorias sociais, a estratégia utilizada foi a de associá-los ao uso e/ou à venda de drogas tornadas ilícitas, sustentando um argumento falacioso de que se combatia as drogas, quando, na verdade, combatia-se esses grupos e, mais do que isso, os ideais e as possibilidades de mudanças que eles carregavam, inclusive de legalização e de uso consciente e crítico de determinadas substâncias.
De maneira hipócrita e aparentemente contraditória, as drogas passaram a ser cada vez mais ofertada à juventude, como cita o verso seguinte, “drogas se tornaram convenientemente disponíveis para a garotada”. Destaca-se que o aumento da oferta não se deu ao acaso, mas sim como uma estratégia, não apenas para a ampliação da repressão, especialmente contra uma juventude que questionava e enfrentava a ordem vigente, mas também para fins de acumulação de dinheiro ilícito, que depois se torna lícito e irriga outros setores capitalistas e até mesmo alguns Estados-Nação. Em seguida, a música aponta para a inerente relação entre drogas e sociedade, a despeito da hipocrisia com a qual o tema é frequentemente tratado, com o eu lírico citando que compra drogas onde quiser, inclusive “aqui mesmo em Hollywood”, ainda que a repressão não esteja em todo lugar.
Na preparação para o refrão, que repete diversas vezes a denúncia de que a “Guerra às Drogas” tem como objetivo o encarceramento, a música apresenta dados desse encarceramento nos EUA, “2 milhões de americanos estão encarcerados no sistema penitenciário dos EUA”, refletindo os dados da época em que a música foi lançada, no ano de 2001, acrescentando que o número de pessoas encarceradas no país havia dobrado nas últimas décadas. A letra ainda chama a atenção para a criminalização de menores de idade em decorrência da Lei de Drogas, também vítimas desse encarceramento em massa, e para o fato de a falaciosa “Guerra às Drogas” ser financiada pelos impostos pagos pela população, apontando para um ciclo perverso no qual os cidadãos pagam por uma guerra que é voltada contra eles próprios, sobretudo contra a parcela mais pobre. A repetição da frase “para você e para mim”, sucedendo em alguns trechos a frase “eles estão tentando construir uma prisão”, aponta para o fato de que a banda se identifica enquanto membro da classe oprimida por essa guerra, não como um mero observador supostamente neutro, e que, de certa forma, a falaciosa “Guerra às Drogas”, dados seus diversos impactos negativos sobre a sociedade em diversos âmbitos da vida, como a saúde e a segurança públicas, afeta o conjunto da sociedade, embora a repressão violenta incida sobre as minorias.
Prison Song chama ainda atenção para o fato de que “todas as pesquisas e políticas bem-sucedidas sobre drogas mostram que o tratamento deve ser ampliado e a aplicação da lei diminuída, enquanto se abolem sentenças mínimas obrigatórias”, reconhecendo que as melhores políticas de drogas a abordam na perspectiva da saúde pública, no olhar atento sobre as demandas mais amplas de usuários e do conjunto da sociedade, na descriminalização e, em suma, portanto, na defesa dos direitos humanos. Fechando essa verdadeira aula sobre a história do proibicionismo, a música ainda aborda a geopolítica das drogas: “utilizando drogas para financiar guerras secretas ao redor do mundo, as drogas agora são sua política global, agora você policia o globo”. Esse trecho contextualiza o papel imperialista da “Guerra às Drogas”, que, no quis diz respeito ao proibicionismo moderno, desde o início se mostrou como um instrumento criado e utilizado pelos EUA com finalidades imperialistas, sendo a política proibicionista propagada em escala global durante décadas por meio de organismos internacionais como forma de interferir na soberania de outros países, implantar medidas protecionistas à sua indústria farmacêutica e ampliar o controle social global contra as camadas populares para sustentação do receituário neoliberal. Afinal, uma ordem social extremamente desigual não se sustenta sem uma violenta repressão, porém essa repressão é mascarada de repressão às drogas, quando, na verdade, é uma repressão contra determinados grupos e territórios.
Por fim, Prison Song, ao analisar de ponta a ponta a política proibicionista de drogas, evidencia o fato de que “dinheiro do tráfico de drogas é usado para manipular eleições e treinar ditadores brutais patrocinados por corporações ao redor do mundo”. Não por acaso, os segmentos beneficiados pelo comércio de drogas ilícitas são justamente aqueles que se identificam como os combatentes nessa guerra, os que supostamente querem defender a família, os bons costumes, a sociedade, da violência e do uso de drogas, mas que, paralelamente a esse discurso, controlam direta ou indiretamente o tráfico, obtendo desse comércio ilícito cada vez mais poder e dinheiro que, em uma retroalimentação, ramificam-se pelas diversas estruturas estatais e pelos mais diversos âmbitos da sociedade. Não por acaso se observa o crescente aumento da influência da lógica miliciana sobre a política e o avanço do autoritarismo, do golpismo e do fascismo.
O contexto muito bem descrito, inclusive com amparo científico, pelo System Of A Down em Prison Song, apesar de não citar especificamente o caso brasileiro, traz, portanto, uma série de reflexões que nos ajudam a identificar as raízes e os impactos dessa falaciosa “Guerra às Drogas” no Brasil, que, uma vez ainda tristemente situada na política proibicionista de escala global, não poderia ter resultados muito diferentes dos observados nos EUA, sendo também aqui observados o encarceramento em massa, a brutal violência estatal exercida contra comunidades periféricas, a convivência com supostos tratamentos desprovidos de caráter científico e violadores de direitos humanos e o extermínio da população jovem, pobre e negra, inclusive pelo fato de que essa guerra é funcional à perpetuação da lógica colonial e escravocrata nunca suficientemente enfrentada e que, por isso, atualiza-se constantemente.
Analisar criticamente a “Guerra às Drogas” é, portanto, refletir sobre como nos constituímos enquanto país, onde nos encontramos agora e para onde caminhamos. Falar sobre drogas, de maneira séria, é perceber que precisamos falar muito mais de outras coisas correlatas, da nossa história, das relações econômicas, sociais, políticas, dos interesses antagônicos que marcam nossa sociedade, sendo a questão das drogas uma expressão de tudo isso. A relação entre drogas e sociedade é algo que remonta aos tempos mais primórdios e os problemas atribuídos ao uso e à comercialização de drogas hoje ilícitas é que são muito mais recentes do ponto de vista histórico e que guardam muita relação com quando as drogas passaram a ser tratadas como caso de polícia.
Em seus 3 minutos e 21 segundos, a canção não apenas condensa uma ampla literatura científica antiproibicionista, como também, com sua musicalidade, é capaz de nos despertar para a indignação e a revolta que deveriam ser inerentes a todo cidadão capaz de reconhecer as injustiças decorrentes dessa violenta repressão. Que a referida canção, perante os ouvidos brasileiros, não seja uma prisão voltada em si mesma. Em especial, nesse mês da Luta Antimanicomial, que a mensagem expressa na música, sua visão de mundo, seus ideais e sua disposição para a luta não sejam encarcerados pelas grades da indústria do entretenimento. Nunca foi só sobre música. Assim como nunca foi só sobre drogas. Não só ouça. Escute.
____________________
