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‘Não tenho como deixar de ser mulher, preta, psi e agora sindicalista nos espaços que frequento’

Em entrevista exclusiva, dirigente negra do SinPsi fala sobre a militância e racismo

Ela é negra, educadora social e psicóloga. Há 13 anos militante do movimento negro, está, pela primeira vez, no corpo dirigente da gestão do SinPsi. A campineira Cinthia Cristina da Rosa Vilas Boase tem uma trajetória respeitável para os 31 anos de idade. Formada desde 2011, é a única da família a ter concluído um curso superior. Trabalhadora do SUAS, atua no serviço de alta complexidade, no Acolhimento Institucional, modalidade Casa-Lar, que acolhe crianças e adolescentes vítimas de violação de direitos, com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a fim de garantir proteção integral. Em entrevista, Cinthia fala sobre como percebe a relação entre Psicologia e racismo, sobre a importância da militância negra e sobre a luta diária que é levar a pauta do movimento negro aos debates da Psicologia.

Sua militância começou na igreja católica. Como essa trajetória aconteceu de 2003 até hoje?

Sou filha de pais umbandistas, mas iniciei na Pastoral Afro. Fiz formações em São Paulo, busquei documentos, virei coordenadora. A resistência em estar no espaço da igreja, um espaço que escravizou, historicamente, era grande. Hoje ainda é, mas hoje eu passeio por outras possibilidades de militância. Ainda dentro da igreja católica, eu dialogava com os movimentos negros de fora. Participei ativamente de conferências de igualdade racial, para além da cidade de Campinas. Em 2010, descobri Agentes de Pastoral Negros do Brasil, que hoje, pelo cunho politico, já não estão somente na igreja – constituem um grupo ecumênico, tendo ganhado um âmbito nacional e de movimento negro. 

Faço parte hoje dos dois espaços. Quando me formei, descobri pessoas que se articulavam como Grupo de Trabalho (GT) para discutir as questões de sofrimento psíquico causado pela violência do racismo. Então resolvi procurar o CRP, do qual passei a fazer parte para estar mais próxima e levantar esse debate dentro da categoria. O GT de relações raciais em Campinas se efetivou em janeiro de 2015, após o segundo Encontro Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es) das relações raciais e subjetividades, o PSINEP. Desde então minha militância se dá nesses espaços.

E como se deu a escolha pela Psicologia?

Acredito que não escolhi a Psicologia, mas a Psicologia me escolheu. Essa frase pode ser natural para algumas pessoas, mas tem um sentido outro. Quando digo isso a mim mesma, situo a afirmação dentro da minha história e relembro tudo o que passei no período da faculdade. Fui me tornando a psicóloga que sou hoje, sem deixar de lado as minhas vivências culturais.

Não foi fácil concluir a faculdade e não é facial ser a única formada da família. Estudava em outra cidade no período da manhã e trabalhava no período da noite. Fui bolsista Educafro, durante os cinco anos de faculdade. Nos finais de semana, fazia trabalho voluntário com negros e negras de periferia. Além disso, me dedicava à militância e aos cuidados espirituais e familiares.

Partindo do princípio da singularidade de cada ser no mundo, acredito que eu, sendo quem sou e quem fui me tornando, seja referência e parte do processo de reconhecimento da construção de autoestima para várias adolescentes que gostariam de ingressar em um curso superior.

O que é racismo?

É uma violência que imprime uma marca negativa, que leva o sujeito a se enxergar de forma inferiorizada, promove humilhação, atingindo a construção da identidade.

É um problema social. E, se é um problema social, é um problema publico, é um problema de saúde pública. Temos que conversar sobre racismo com brancos e negros. Há quem diga que é um problema de pele, há quem diga que é um problema do Estado, há quem diga que é um problema do ser racista. Eu digo que é um problema NOSSO. Um problema de brancos e negros.

Segundo os dicionários por aí significa raça+ismo – 1- Teoria que afirma a superioridade de certas raças humanas sobre as demais; 2- Caracteres físicos, morais e intelectuais que distinguem determinada raça; 3- Ação ou qualidade de indivíduo racista; 4- Apego à raça.

Essa primeira definição me lembra a teoria de Darwin, quem eu considero excludente para com a população negra. Mas vale pensar que, se só os mais fortes sobrevivem, nós, negros, estamos aí, há um milhão de anos, evoluindo e evoluindo. Já o segundo conceito me faz pensar em tudo que o meu povo, esse povo lindo, carrega desde que o mundo é mundo. O terceiro conceito me faz pensar que existe indivíduo racista, perverso e violento. Por fim, o último conceito me agrada, pois se é apego à raça, eu estou fortemente apegada à minha.

Como você vê o posicionamento d@s psicólog@s em relação às pautas do movimento negro?

Pensar o posicionamento da Psicologia brasileira em relação ao preconceito e à descriminação racial é pensar na trajetória de muitas psicólogas e muitos psicólogos. As pautas são diversas dentro dos movimentos negros existentes. Hoje as entidades estão mais ativas no que se refere às questões raciais em comparação a 13 anos atrás.

Falar de negritude é falar de negritude e falar de branquitude é falar de branquitude. Sim, uma coisa está ligada à outra, mas me pergunto todos os dias se o branco fala de si. Vejo todos os dias os outros falando dos negros e geralmente falando mal. Sim, existe preconceito racial. A população negra é sempre estatística negativa no que se refere à visão do branco. Tentamos, como movimento, mudar o curso dessa história, realizando projetos e ações; nós por nós. Tenho o tempo inteiro que me enxergar como uma mulher negra e me colocar na vida assim, não para mim, porque eu já sei, mas para quem não sabe. Essa é uma das minhas brigas políticas.

Não quero ser vítima nem vitimada, quero ser parte integral; quero falar a partir do meu núcleo de conhecimento com pertença e sabedoria ancestral; quero poder expressar minha cultura sem ser discriminada; quero falar sobre a história da população à qual eu pertenço. Não tenho como deixar de ser mulher, preta, psi e agora sindicalista nos espaços que frequento.

Pensar essa ciência que cuida do sofrimento psíquico é pensar na escuta qualificada, na possibilidade de amplitude, de expansão. Mas também é pensar o quanto ela colaborou com a destruição sutil de não ouvir, de não dar visibilidade às questões raciais. Enfim, hoje a Psicologia está se posicionando mais, mas ainda é pouco. São anos de História, portanto anos de reparações. 

Hoje em dia existem muitos grupos dentro das instituições da Psicologia, produzindo e falando sobre a temática, apontando o sofrimento psíquico, indo dialogar com os movimentos e transversalizando questões de raça e etnia. É uma caminhada que começou devagar, sem publicização. Hoje há ferramentas que facilitam o acesso, o que não exclui o fato de sermos perpassados pelo racismo institucional a cada ação, todos os dias. Ainda temos que pensar em como o tema é falado, trazido ou trabalhado dentro das teorias, dentro dos consultórios, das organizações, dos hospitais, das escolas; na atuação d@s psicólog@s nesses espaços.

Qual a importância de ter uma mulher negra ativista na direção do sindicato?

A lógica de ter uma mulher preta vai para além de ser um sindicato visto como inclusivo. Acredito ser muito importante e necessário, porém é imprescindível que mulheres ou homens negros sindicalistas se reconheçam como negros. Pela trajetória histórica das mulheres negras no Brasil, eu diria que estou fazendo parte de um lugar de direito. Pode ser que, para uma parcela da categoria, eu, como mulher negra, não faça diferença alguma nesse espaço, mas para uma outra eu acredito que existem possibilidades de reconhecimento estético e reconhecimento popular.

Acredito também que ter uma mulher negra nesse espaço é ter a possibilidade de pensar a mulher negra em outros espaços de pesquisas e conversas dentro do SinPsi, dentro das questões trabalhistas, do mercado de trabalho, da acessibilidade às políticas, quem são as pessoas que a lei condena ou protege.

As mulheres negras, que com suas mãos fortes ajudaram a construir o Brasil, se tornaram lideranças e articulam políticas e ações voltadas para a superação das desigualdades, antes mesmo de existirem as políticas públicas. Estavam no mercado de trabalho, antes mesmo de existir a Consolidação das Leis Trabalhistas. Temos uma história ancestral, carregada de resistência e luta, de coragem e choro, de gritos e silêncios.

São recorrentes casos de ataques racistas em ambientes de trabalho no Brasil. Como o trabalhador deve agir quando vítima de racismo?

A empresa não assume os casos de racismo no ambiente de trabalho, porque “prioriza um ambiente acolhedor”, mas não dá conta de cuidar das pequenas ações que podem causar grandes estragos. Por exemplo, para quem sofre racismo: pode gerar uma ansiedade generalizada, uma angústia em ter de estar diariamente naquele local, afastamento dos colegas, crises de autoestima baixa, crises de choro, dores de barriga, dores de estômago. Esses sintomas podem ser tratados, quando nomeados, mas se a pessoa não consegue identificar se a questão de fundo foi de cunho do preconceito racial, sempre serão sintomas tratados como problemas pessoais, ou simplesmente velados.

Costumo dizer que trabalhador e trabalhadora precisam denunciar no Disque Racismo do município, se tiver. Tem de denunciar no Ministério Público, tem de denunciar na empresa e denunciar para o movimento sindical. Precisa tornar o ato público, para que outras pessoas se juntem na luta. Se estivermos em muita gente, todas as dores se amenizam e conseguiremos transformar essa luta em luta política, baseada no Estatuto da Igualdade Racial, na Constituição Civil, em resoluções de conferências, campanhas contra o racismo, conselhos da comunidade negra locais, entre outras resoluções.

Como psicólog@s podem auxiliar no amparo à saúde mental de quem tem experiência traumática com preconceito racial?

Sofrimento que não é verbalizado vira sintoma e sintoma não tratado vira loucura somatizada. É violência. Psicólog@s devem fazer a escuta qualificada e a observação sistemática das falas corporais. Quando alguma questão é verbalizada fica mais fácil trabalhar, porém, se não souber, é preciso procurar ajuda e geralmente os movimentos conseguem ajudar.

Pensando no racismo e na saúde mental, faço um pequeno histórico: 

De como éramos na África: diversos, etnias, referências importantes, oralidade africana, as rodas, as brincadeiras, a educação, os povos, as línguas… 

De como viemos para cá: escravizados, apanhando, morrendo, em condições sub-humanas, como animais, como serviçais na casa, na cama e no campo… nas senzalas, submissas, trabalhadores… Lei Áurea. Quais vivencias do povo negro para construção da sociedade não deram certo? E da sociedade para o povo negro?

De como estamos hoje: Favelas, pobreza, falta de acesso, falta de respeito, falta de referência, baixa autoestima. Enfim, estamos com muitas coisas negativas ou as coisas positivas não nos aparecem? E será que isso não é proposital?

Então, se pensarmos que nossa construção como humanos parte da visão do outro e que a História positiva não nos é contada, estamos em constante angústia. Usamos construções históricas como parte da História e a nossa história nos foi negada, não foi contada, foi distorcida.

O preconceito racial pode apresentar questões de estruturação de linguagem quando adiciona significantes para as coisas, ações ou pessoas. Isso sem falar que muitas vezes negros e negras não se sentem pertencentes às suas realizações, às suas posições, às suas possibilidades, às suas contribuições. Isso causa desequilíbrio emocional. Cada um é cada um, há diferentes maneiras de sofrimento. E como fica a construção da subjetividade da população negra? E o mito da democracia racial, serve para quê e para quem? 

Como a Psicologia avança em relação ao tema?

O Conselho Federal de Psicologia criou a Resolução Nº 018 em 2002, que estabelece normas de atuação para psicólog@s em relação ao preconceito e à discriminação racial. Porém, na prática, a realidade é outra. Existe a discriminação institucional, quando profissionais da área não estão preparados para atender a população negra ou até são preconceituosos, levando a diferenças e desvantagens no tratamento devido à raça.

Por que o dia 20 de novembro é uma data importante?

Assim como o dia 13 de maio simboliza a continuação da luta do povo negro por uma liberdade ainda não conquistada, o 20 de novembro simboliza a vitória de Zumbi em uma guerra perversa declarada por colonizadores racistas.

Hoje Zumbi é rei e ancestral vitorioso, que nos dá ânimo para a luta de todos os dias. A escravidão, no lugar de ser configurada apenas como trabalho compulsório, passa a ser transposta nas diversas formas de exclusão às quais negras e negros vêm sendo submetidos em toda a História do Brasil.

Nesse sentido, faz-se necessário denunciar a exclusão do povo negro sistematizada nos sistemas de saúde, na educação, na moradia digna, no trabalho e demais elementos da cidadania. Porém, a forma mais nefasta de exclusão de negras e negros constata-se no extermínio dessa população, principalmente jovens, apontada pelos indicadores de violência como vítimas potenciais de homicídio.

A principal causa do genocídio de jovens negras e negros é a associação entre negritude e criminalidade, reforçada cotidianamente pela mídia racista e pelas práticas discriminatórias existentes em todos os espaços de socialização.

Temos que promover debates, palestras, audiências públicas e mobilizações que visem denunciar o genocídio da população negra configurado, sobretudo, pela violência policial e por outras formas de exclusão do direito à vida e à igualdade de oportunidades, assim como elaborar ações concretas que visem ao fim dessa discriminação.

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