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O Partido Progressista no controle do SUS

Como foi a gestão de Ricardo Barros à frente do Ministério da Saúde – e o que esperar de seu sucessor, também indicado pelo Partido Progressista

Mais uma vez, o Ministério da Saúde será comandado por alguém que não tem histórico algum com a área. O novo titular da pasta é Gilberto Occhi. O advogado foi nomeado hoje (02) por Michel Temer e deixa a presidência da Caixa Econômica Federal a pedido do Partido Progressista. A pasta já estava sob o comando do PP. Mas seu titular, Ricardo Barros, vai tentar a reeleição para deputado federal pelo Paraná e, na última terça (27/03), entregou sua carta de demissão para o presidente. Por lei, membros do Executivo que decidem se candidatar precisam deixar os cargos seis meses antes do pleito, prazo que termina em 7 de abril.

O martelo foi batido na quarta (28/03) com o presidente nacional do PP, o senador Ciro Nogueira. O Planalto assegurou que a pasta continuaria com o partido – que pode manter o atual ‘tamanho’ no governo, desde que apoie o MDB nas eleições nacionais. E isso, ao que parece, significa apoiar a reeleição de Michel Temer.

Lote a lote

Do ponto de vista partidário, o Ministério da Saúde é importante porque depois do pagamento e amortização dos juros da dívida pública e da Previdência, que tem natureza contributiva, a pasta administra o principal orçamento do governo federal. “Além disso, tem capilaridade nacional. E lida com a vida e a morte, com o bem-estar das pessoas. Em resumo, é uma área com grande implicação sobre o ciclo político-eleitoral. Pode levar à eleição dos candidatos proporcionais, dos candidatos majoritários e, inclusive, à campanha pela Presidência da República. Não podemos esquecer José Serra em 2002″, resume Carlos Ocké, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES). Outra característica que torna a caneta do ministro da Saúde particularmente cheia de tinta é que dois terços desse orçamento são repassados para estados e municípios. E, segundo Ocké, essa dinâmica de transferências ganha importância em períodos de crise, quando a economia patina. Em 2018, o Ministério da Saúde tem previstos R$ 130 bilhões.

Não é que a pasta tenha, no passado, sido protegida do loteamento político. Um mês depois de estourar o escândalo do mensalão, o governo Lula abriu mais espaço para partidos da base aliada ao governo. Na saúde, saiu Humberto Costa, um quadro do PT, e entrou o médico Saraiva Felipe, deputado federal do então PMDB. Este partido manteria o comando da pasta durante o segundo mandato de Lula indicando, contudo, José Gomes Temporão, nome técnico vinculado à saúde pública.

A situação só mudou no governo Dilma Rousseff, quando a aliança com o MDB garantiu ao partido nada menos do que a vice-presidência da República. A Saúde voltou a ser ocupada por lideranças petistas da área, como os médicos Alexandre Padilha e Artur Chioro. Mas eis que outra crise política, a que levaria ao impeachment, se anunciou no horizonte. Rapidamente (e sem cerimônias), Chioro foi trocado pelo deputado federal Marcelo Castro (MDB-PI).

Outros exemplos não dizem respeito propriamente às mudanças de nomes, mas às prioridades do governo. Como o breque ao projeto de lei de iniciativa popular (PLC 321/2013) conhecido como ‘Saúde + 10’, que reivindicava que a União aplicasse mais recursos na saúde. No seu lugar, foi aprovada em fevereiro de 2015 a Emenda Constitucional (EC) 86, que criou o orçamento impositivo na saúde, tornando obrigatória a execução orçamentária das emendas parlamentares individuais que drenam recursos do Ministério da Saúde. Ou, ainda em 2015, a sanção da lei que deu sinal verde para a entrada do capital estrangeiro na saúde, tida pelo presidente da ABrES como um dos principais retrocessos do período.

Mas na avaliação dos entrevistados do Outra Saúde há diferenças com a chegada de Michel Temer ao poder. “Não dá para dizer que quando o PT esteve no governo eventualmente não tenha utilizado [o ministério] como moeda de troca no contexto do presidencialismo de coalizão. Não dá para dizer que é uma mudança qualquer sair o Humberto Costa e entrar o MDB, sair do Chioro e ir para o Marcelo Castro. Mas se tentava preservar minimamente o SUS como política de Estado, seja por meio do secretário-executivo [cargo número dois em importância na pasta], seja por meio da orientação geral do governo”, diz Ocké.

Nesse sentido, o comando do SUS federal continua sendo uma moeda de troca, mas o cenário e os atores mudaram e não querem mais imprimir as marcas do pacto social de 1988 nela. “Vemos o alargamento e a predominância de uma lógica política herdada do presidencialismo de coalizão movida à base de patrimonialismo, clientelismo e privatização. É o mesmo fenômeno, mas em um momento histórico e político diferente”, compara ele.

Também para o pesquisador José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), do ponto de vista histórico, há uma diferença “substantiva” entre os dois períodos. “Claro que o processo de instrumentalização não se iniciou com o golpe. O Ministério da Saúde foi objeto de barganha político-partidária no tempo do PT. Agora, não há dúvida que no governo Temer – e com o Ricardo Barros – isso tomou uma dimensão nunca dantes imaginada”, analisa. E afirma: “O assunto ‘saúde’ passou a ser secundário na pauta do próprio Ministério e na agenda dos seus principais gestores políticos”.

Carlos Ocké também acredita que há uma descontinuidade. “Com o golpe parlamentar, não se trata mais de um quadro de subfinanciamento que não é superado. Ou de uma relação público-privada cujo parasitismo do mercado não é superado. Agora, vemos um giro do subfinanciamento para uma política de sucateamento. É o completo desmonte do SUS”, afirma ele. Nessa perspectiva, os grupos econômicos que estão mais ou menos associados ao conjunto de partidos no poder estão olhando para o que Ocké chama de “butim” do Estado. “E para colocar a cereja no bolo, 2018 é ano de disputa eleitoral numa conjuntura em que o bloco político está muito dividido. Nesse movimento de privatização e sucateamento, quem vai se beneficiar?”, provoca.

Para Sestelo, desde o impeachment assistimos a uma espécie de saldão gerado pela crise política. “Não dá para levar a sério o atual governo como algo que seja objeto de análise em termos de propostas. É um ‘salve-se quem puder’, uma tentativa de manter-se no poder a qualquer custo. Os projetos são puramente pessoais. São barganhas comandadas por grupos políticos que, inclusive, brigam entre si”, nota.

Na Bahia, conta o pesquisador, as especulações em relação à substituição de Barros recaíram sobre o vice-governador do estado, João Leão, filiado ao PP. “Porque o Rui Costa [PT], atual governador, é candidato à reeleição, e está compondo uma chapa contando com o PP regional. Ou seja, tem o apoio do PP no estado contra ACM Neto [DEM], prefeito de Salvador, e principal adversário na disputa para governador. Aí o convite viria para desestruturar a chapa do Rui Costa e favorecer ACM Neto”, explica, ainda antes da confirmação do nome de Occhi para ministro, emendando: “Independente do nome que vingar, todo esse cálculo político tem um significado, que é a transformação do Ministério da Saúde em moeda de troca político-partidária de cima abaixo. É uma marca desse governo”.

Não é preciso pensar muito para lembrar bons exemplos de como o governo tem se valido da distribuição de cargos para se preservar em tempos de Lava-Jato. Em agosto, a Câmara dos Deputados estava às voltas com a denúncia contra Michel Temer feita pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com base nos grampos do empresário Joesley Batista. O governo chegou a trocar vários componentes da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para que o relatório que aceitava a denúncia, feito pelo deputado Sérgio Zveiter (DEM-RJ, filiado na época ao PMDB), fosse derrubado e substituído por outro, que defendia o arquivamento do caso. Figuras como o deputado Wladimir Costa (SD-PA), que fez uma tatuagem temporária no braço com a inscrição ‘Temer’ ao lado de uma bandeira do Brasil, formaram a tropa de choque do governo, que durante a votação no plenário ganhou: 263 votos contra 227.

Um desses votos foi dado pelo deputado Beto Salame (PP-PA). No dia 15 de agosto, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, assinou a nomeação do irmão do parlamentar, João Salame Neto, para assumir o Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. E não em um período qualquer, mas justamente quando todos os holofotes estavam voltados para o DAB com a proposição de mudanças na área que impactam a Estratégia Saúde da Família, um dos principais programas do governo federal desde a época de Fernando Henrique Cardoso. De um lado, Ricardo Barros e gestores estaduais e municipais queriam – e conseguiram – flexibilizar o modelo de atenção básica, fazendo com que o governo federal financiasse todos os tipos de equipes de saúde e não só as da ESF. Pesquisadores e trabalhadores, entidades acadêmicas e sindicais da saúde pública criticaram fortemente as mudanças, chamando atenção da mídia, que acompanhava o embate.

Mesmo assim, saiu Allan Nuno Sousa, servidor de carreira do Ministério que estava conduzindo o processo de revisão da atenção básica, e entrou João Salame, ex-prefeito de Marabá (PA) – cargo do qual chegou a ser afastado por improbidade administrativa. Seu nome também foi citado na delação da Odebrecht em denúncia que envolve o repasse de R$ 1,5 milhão para a campanha de Helder Barbalho (atual ministro da Integração Nacional) ao governo do Pará. Perguntado sobre o currículo de Salame, o ministro Ricardo Barros afirmou que o recém-nomeado havia passado por uma pesquisa da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e que “eventuais restrições foram esclarecidas”.

Quem é Gilberto Occhi

Agora, a troca do comando do Ministério da Saúde se dá em outro contexto. Michel Temer pretende disputar as eleições presidenciais. E quer o apoio do Partido Progressista, que tem a segunda maior bancada do Congresso Nacional. “No governo Temer, o Ministério se tornou um feudo do PP”, observa Sestelo, para quem Gilberto Occhi representará interesses do setor financeiro na saúde, como as seguradoras. “Ele está na Caixa privatizando o último banco público que o país ainda tem. E agora vai fazer o quê no Ministério da Saúde, senão dar sequência a esse movimento de favorecer interesses particulares?”, questiona.

Gilberto Occhi estava na presidência da Caixa Econômica desde 1º de junho de 2016. Advogado de formação e funcionário de carreira do banco, ele foi indicado pelo PP para substituir Barros. No governo Dilma Rousseff, Occhi foi ministro das Cidades (03/2014 a 01/2015) e da Integração Nacional, cargo que entregou no dia 13 de abril de 2016 quando a bancada do PP decidiu apoiar o impeachment. No governo Michel Temer, manteve prestígio e foi indicado pelo PP para comandar a Caixa.

Em outubro do ano passado, Occhi foi citado na delação premiada de Lúcio Funaro, operador financeiro de Eduardo Cunha. Em depoimento à Procuradoria Geral da República (PGR), Funaro afirmou que Occhi tinha uma “meta mensal” de propina para bater e distribuir a políticos do PP na época em que ocupou a Vice-Presidência de Governo da Caixa Econômica. Por meio de sua assessoria, Occhi desmentiu “veementemente” a acusação.

Segundo o jornalista Gerson Camarotti, Michel Temer tentou convencer o presidente do PP a indicar outro nome para a Saúde. Isso porque as mudanças na Caixa precisam responder a alguns critérios técnicos e seria mais fácil manter Occhi por lá. Mas Ciro Nogueira teria argumentado que o deslocamento era fundamental para o partido, já que Occhi é “considerado um técnico já acostumado a trabalhar com a legenda há um bom tempo”.

‘Era’ Barros

Assim como Gilberto Occhi, o ex-ministro Ricardo Barros não tinha, quando assumiu, nenhuma relação com o campo da saúde. A indicação do engenheiro civil foi feita no período em que o impeachment de Dilma era examinado pelo Senado e quebrou uma tradição seguida nos governos do PT que, mesmo nos momentos em que entregou a pasta a aliados, teve sanitaristas à frente do Ministério da Saúde. Mas ele estava longe de ser um peixe fora d água. Mais correto dizer que Barros navegava – há muito tempo – em outras águas. Sua biografia apresenta outras particularidades que passaram despercebidas na época.

Barros é membro de um frutífero clã político. Ele é filho de Silvio Barros, que integrou os quadros da UDN entre 1960 e 1964 e, durante a ditadura, foi para o MDB, sigla na qual exerceu mandatos como deputado federal até 1973, quando foi eleito prefeito de Maringá. Silvio morreu em 1979, logo após fracassar nas eleições para a Câmara dos Deputados. Ricardo Barros e seu irmão, que também se chama Silvio, seguiram os passos do pai. Ambos foram prefeitos de Maringá – Ricardo Barros entre 1989-93 pelo então PFL, de onde partiu para quatro mandatos consecutivos como deputado federal (95-2011).

Na Câmara, foi líder tanto do governo tucano, quanto do petista. Depois de uma campanha frustrada ao Senado veio um curto período sem cargo eletivo – mas não sem as emoções do poder, já que lhe rendeu investigação por suspeita de ter sido favorecido em uma licitação realizada pela prefeitura de Maringá quando seu irmão comandava a cidade.

Passado o intervalo (em que exerceu o cargo de secretário estadual de Indústria e Comércio), Barros elegeu-se pela quinta vez deputado em 2014. O maior doador individual da sua campanha foi Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de benefícios de saúde. Doou R$ 100 mil.

Na atual legislatura, Barros foi relator do Orçamento de 2016. Em meio à crise política, sugeriu um corte de R$ 10 bilhões no programa Bolsa Família. Votou a favor do impeachment de Dilma Rousseff e, membro do Conselho de Ética, foi contra a abertura do processo que levaria à cassação do então todo-poderoso presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ) – hoje preso em Curitiba.

Barros é casado com Cida Borguetti, vice-governadora do Paraná, que se prepara para assumir o cargo deixado por Beto Richa (PSDB), que, por sua vez, vai disputar uma vaga no Senado. Ele trabalha pela eleição da esposa como governadora. O casal encontra oposição no próprio partido, tentado a apoiar Ratinho Júnior (filho do apresentador de TV). Já a filha de Barros, Maria Victoria, é deputada estadual pelo PP. Ela concorreu em 2016 para a prefeitura de Curitiba, e perdeu. Tinha, então, 24 anos.

Em setembro daquele ano, a Folha publicou reportagem mostrando que Ricardo Barros fazia campanha para candidatos a prefeituras da região de Maringá – seu reduto eleitoral e cidade onde, mais uma vez, o irmão Silvio era candidato a prefeito (ele também perdeu). O então ministro omitiu sua participação em eventos eleitorais de partidos como PP, PPS, PSD, PSDB e PDT. Enquanto fazia promessas em atos e propagandas políticas, como alocação de recursos do Ministério da Saúde nas cidades dos aliados, sua agenda oficial informava que cumpria compromissos ligados ao cargo, como visita a hospitais. O furo dos repórteres Rubens Valente e Camila Mattoso causou constrangimento no governo e rendeu a Barros uma advertência da Comissão de Ética da Presidência.

Meses depois das eleições, o mesmo Rubens Valente mostraria o desenrolar de um dos negócios de Ricardo Barros. Com bens declarados à Justiça Eleitoral no total de R$ 1,8 milhão, ele adquiriu metade de um terreno de R$ 56 milhões na cidade de Marialva (PR) em 2014. No ano seguinte, novamente eleito deputado federal, Barros apoiou a liberação de R$ 450 milhões em emendas parlamentares para construir uma rodovia que passaria a 3 km do tal terreno, destinado à construção de um condomínio de alto padrão. Barros respondeu que pegou um empréstimo de R$ 13 milhões da empresa Paysage. Para tal transação, ele e sua mulher criaram duas empresas com capital social de apenas R$ 10 mil cada.

“O montante emprestado é atípico. Você cria uma empresa de R$ 10 mil para montar uma lojinha, um carrinho de cachorro quente, não para comprar um imóvel de mais de R$ 50 milhões. Não é comum no mercado”, disse à Folha o presidente do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil, Idésio Coelho. No final das contas, as duas empresas foram vendidas pelos Barros à Paysage. E isso, segundo o ministro, levou à “quitação” do empréstimo milionário.

Gafes e polêmicas

A passagem de Ricardo Barros pela Esplanada dos ministérios gerou um festival de declarações polêmicas e gafes. Logo que assumiu o cargo, ainda como interino, ele disse que o país não tinha um “nível de desenvolvimento econômico” que permitisse garantir direitos, como saúde, “por conta” do Estado. “Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”, sentenciou. E comparou: “Em um determinado momento, vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias”.

Outra declaração do ministro, mais famosa, foi dada em julho de 2016. “A maioria das pessoas chega ao posto de saúde ou ao atendimento primário com efeitos psicossomáticos. Por que 50% dos exames laboratoriais não são retirados pelos interessados? Por que 80% dão resultado normal? Porque foram pedidos sem necessidade”, disse o ministro na sede da Associação Médica Brasileira (AMB), em São Paulo. E, na ocasião, apelou aos profissionais: “Se [o paciente] não sair ou com receita ou com pedido de exame, ele acha que não foi ‘consultado’. Isso é uma cultura do povo, mas acho que todos nós temos de ajudar a mudar, porque isso não é compatível com os recursos que temos”.

No mesmo mês, Ricardo Barros atingiu o ápice da escala da falta de tato político ao dizer que homens trabalham mais do que mulheres, “são os provedores da maioria das famílias” e, por isso, “não acham tempo para se dedicar à saúde preventiva”. Um ano depois, o estilo continuou o mesmo. “Muito sinceramente, o senhor [presidente Michel Temer] sabe que sou uma pessoa muito pragmática e clara. Vamos parar de fingir que pagamos o médico e o médico vai parar de fingir que trabalha”, disse num evento realizado em julho passado no Palácio do Planalto.

Mesmo diante dessas declarações e das diversas vezes em que a imprensa especulou que estava prestes a ser substituído, Barros se manteve no cargo. A despeito do surto de febre amarela que se aproximou, durante sua gestão, perigosamente dos maiores centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. Embora impopular, ele soube construir uma relação de simbiose com os gestores estaduais e municipais, recebeu em um ritmo alucinado parlamentares em seu gabinete e adotou várias bandeiras do setor privado, sendo a mais famosa delas a criação dos planos populares de saúde.

Para Carlos Ocké, sua atuação à frente da pasta foi “agressiva”. “Foi um ministro que se destacou bastante por um projeto de fortalecimento do setor privado e de seus grupos políticos de apoio. É um adversário muito difícil”, reconhece. “Foi extremamente agressivo na condução do ministério a luz dos interesses das forças sociais, políticas e econômicas que ele representa e defende. É um inimigo da Constituição e do SUS”, completa.

“É um homem inteligente, tem méritos pessoais e, claro, usa isso de acordo com seus propósitos que, a meu ver, são os piores possíveis. Mas há que se reconhecer que ele foi muito habilidoso na gestão do Ministério”, concorda José Sestelo. “Ele chegou logo de cara com a ideia dos planos populares, algo formulado pelas empresas que financiaram sua campanha política a deputado federal. Encampou e levou adiante essa política claramente favorável a interesses particulares dentro de uma pasta que cuida de um tema que tem relevância pública. E essa foi sua marca: franquear a saúde aos diversos interesses, que sempre existiram, mas com ele ganharam notoriedade e dominância nunca vistas no Ministério”.

Isso porque nem só de declarações estridentes foi feita a gestão Ricardo Barros. Muito pelo contrário. O ex-ministro conseguiu modificar (ou foi longe tentando) um conjunto de regras referentes aos mais diversos assuntos. E de forma rápida. O projeto dos planos populares de saúde, rebatizados depois da repercussão negativa como ‘acessíveis’, é um marco do estilo Barros. Em 5 de agosto de 2016, ele assinou uma portaria definindo um prazo de 120 dias para que uma proposta de plano ‘acessível’ saísse do papel. Para tanto, criou um grupo de trabalho com uma composição, no mínimo, estranha: lá estavam o Ministério, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a principal interessada no novo produto: a Confederação Nacional das Empresas e Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CnSeg). E, detalhe: a ANS sequer tinha sido avisada sobre a criação do GT. Na visão de críticos, a proposta é um risco ao consumidor porque restringe a cobertura. Atualmente, um novo marco legal para os planos privados está em discussão no Congresso Nacional.

Outro exemplo da capacidade de Ricardo Barros para negociar interesses é menos conhecido fora da área da saúde. Trata-se da portaria 3.992, que introduz uma nova lógica ao repasse de recursos federais para estados e municípios (leia reportagem do Outra Saúde sobre o assunto aqui). Antes, o Ministério da Saúde distribuía o dinheiro em seis blocos distintos, de modo que atenção básica e vigilância em saúde, por exemplo, não ficassem à míngua graças à concentração de investimentos em serviços de média e alta complexidade. Agora, esse montante é repassado em duas contas: custeio e investimento. Na avaliação de Carlos Ocké, a medida dividiu o bloco político em defesa do SUS porque a municipalização e a descentralização são pleitos históricos do movimento sanitário.

“Ele foi extremamente habilidoso porque soube pegar problemas administrativos concretos enfrentados por estados e municípios no que se refere à transferência de recursos – que sempre foi bandeira da reforma sanitária. Não dá para dizer que ele dividiu o movimento com palavras vazias. Ele colocou uma política que atendia a um conjunto de reivindicações dos gestores. A questão é que se existe alguma unidade em relação ao diagnóstico, existe unidade em relação à alternativa? Ou seja, o fato de você identificar que efetivamente existiam problemas administrativos no modelo de repasse anterior significa que a alternativa posta – que dividiu o movimento – era a melhor possível na atual conjuntura histórica?”, questiona ele.

E responde: “Dentro do contexto de austeridade fiscal, essa portaria tem também por objetivo descentralizar para desobrigar. Estados e municípios estão falidos. Quando você coloca custeio e investimento e não quer fazer novas habilitações – que vão ficar a cargo de estados e municípios sem recursos – a União, no fundo, está se desresponsabilizando do ponto de vista político e econômico”.

Crise à vista

Para José Sestelo, uma crise sanitária se aproxima do horizonte. Sob Barros, o Ministério da Saúde teria abandonado o papel de coordenação exercido pela União em nome do pragmatismo dos apoios e cálculos da pequena política. “Os efeitos do congelamento das políticas sociais ainda não se fizeram sentir plenamente, mas a partir de 2019 isso já será mais visível. Não tem dinheiro, mas o dinheiro que tem vai de forma discricionária favorecer interesses particulares. E muitos prefeitos e secretários estaduais e municipais de saúde estão plenamente de acordo com o ministro. Vamos voltar ao tempo do Odorico Paraguaçu [personagem de Dias Gomes, prefeito da ficcional Sucupira]”, compara. “As verbas, os recursos não vão carimbados. Isso dá uma margem muito grande para o gestor fazer o que ele quer. E o que ele vai querer fazer? Vai favorecer os grupos regionais que o colocaram lá. Infelizmente, é isso que está acontecendo – e tudo indica que vai acontecer cada vez mais”, lamenta.

No último mês à frente do Ministério da Saúde, Ricardo Barros concedeu nada menos do que 106 audiências a parlamentares – as fotografias estão disponíveis no perfil que a pasta mantém no Flickr. A intensa agenda de audiências no gabinete do ministro foi uma tônica desde o início da gestão de Ricardo Barros. Esse ano, R$ 1,5 bilhão de emendas parlamentares foi liberado no Ministério da Saúde. Os parlamentares optam quase sempre por empregar essa verba na compra de ambulâncias ou na inauguração de serviços de assistência, como UPAs. E quase nunca, tendo como exemplo o surto de febre amarela, em investir na vigilância epidemiológica de um corredor ecológico. Tudo isso, na visão do vice-presidente da Abrasco, põe em risco o nexo sanitário.

“Estamos no pior dos mundos. A perspectiva é de crise sanitária, tanto assistencial como uma crise da saúde pública no sentido das doenças imunopreveníveis, infectocontagiosas, questões que haviam sido superadas, como a febre amarela. Essa falta de capacidade de articulação do Ministério, o esvaziamento de seu papel de agente a nível nacional que coordena as políticas regionais se agravou muito”, diz Sestelo.

Na leitura de Carlos Ocké, não dá para desprezar o papel que a liberação de emendas parlamentares na área da saúde pode ter nos resultados das eleições em 2018 no contexto em que as doações empresariais de campanha foram proibidas. “Há um clima antipolítico na sociedade e isso tem a ver com financiamento de campanha. Essa articulação em torno dos recursos do SUS tem hoje, de certa forma, um efeito substituição para o financiamento empresarial de campanha. Eu olho para o ciclo político-eleitoral, olho para o regramento do financiamento setorial, para esse movimento do ex-ministro e de seu partido e para sua força no interior do governo para manter sua posição na Caixa Econômica e num ministério que tem o principal orçamento da União e formulo uma hipótese de caráter político de que, hoje, o aumento das emendas é explicado pelo fortalecimento de uma agenda clientelista que particulariza o SUS. E, portanto, destrói o SUS. E que, por sua vez, tem a ver com a reprodução política desses mesmos deputados no ciclo eleitoral. O cara vai estar eleito se, este ano, tiver recursos de emenda liberados para a construção da UPA”, supõe.

E la nave va.

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